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5. A TRAJETÓRIA DO PESQUISADOR

5.2. Meias verdades: a percepção das representações

A VERDADE DIVIDIDA

A porta da verdade estava aberta mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava

só conseguia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia os seus fogos. Era dividida em duas metades

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era perfeitamente bela. E era preciso optar. Cada um optou

conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

(Carlos Drumond de Andrade In: Contos Plausíveis)

Quando concluímos a etapa no SAME, chegou o momento de iniciarmos as entrevistas com os internos. É relevante salientar que não há naquela instituição uma infra- estrutura de atendimento de acordo com as recomendações, como por exemplo, da Lei

8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA9 em relação à separação dos jovens internos.

Como não havia preferências de sexo para a realização das entrevistas, foi nas enfermarias masculinas que elas aconteceram em primeiro lugar, por questões operacionais. Na ocasião elas estavam com suas estruturas organizacionais melhor definidas, fato que diferenciava da feminina que passava por um processo de reformulação. Esta decisão foi tomada para evitar que em algum momento, a nossa presença pudesse prejudicar o ambiente que passava por mudanças.

Os casos que atendiam o perfil a ser pesquisado foram disponibilizados com profissionalismo pelo responsável de cada setor, assim como pela maioria dos funcionários. Este perfil refere-se aos jovens entre 14 e 25 anos, com diagnóstico sobre sofrimento psíquico. Foram recolhidas informações relativas às Questões de Gênero, Diagnósticos

(Casos Psiquiátricos - CP e Comorbidade - CO), Tipo de Internação (1ª internação-Interno - IN ou a partir da 2ª internação-Reinterno - RE), Idade e Procedência. Com o início destas

entrevistas, revelaram-se as condições da estrutura de atendimento aos pacientes, considerando que os jovens só poderiam ser entrevistados nos momentos em que o efeito da medicação administrada permitia melhores condições de lucidez. Isto possibilitou momentos de reflexão, detalhe importante para relembrar fatos e situações, permitindo registros satisfatórios. ‘Satisfatório’ aqui, entendido do ponto de vista do pesquisador que necessitava dos depoimentos, mas do ponto de vista dos entrevistados, toda e qualquer palavra que pudesse expressar ou que remetia ao drama existencial de sua trajetória, estas sim, para eles, foi um verdadeiro desafio. Falar, conversar e confiar, nas condições que eles vivenciavam, dependia de muita força de vontade e neste caso, foi muito mais que isso, foi um momento

9O Capítulo IV do ECA que dispõe sobre as medidas sócio-educativas, contém o seguinte contexto em seu parágrafo 3º: "Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e

que os levava a transpor o próprio sentido daquele ambiente para cada um. Constatamos, como pesquisador, que diariamente aqueles jovens selecionados aguardavam ansiosamente para relatarem suas histórias.

Durante a etapa das entrevistas, em seus intervalos, aproveitávamos a oportunidade para acompanhar e conhecer o trabalho institucional de esclarecimento e apoio, que acontecia no IPQ, sobre orientações assistenciais nas áreas da psicologia, enfermagem e serviço social, às famílias dos internados. A freqüência nessas reuniões nos levaram a perceber lacunas importantes sobre situações que envolviam as dúvidas dos participantes em relação à forma de como esclarecer, de maneira didática, estes familiares.

As possibilidades de experiências adquiridas com a passagem pelas enfermarias masculinas e as entrevistas foram aproveitadas ao máximo, porque as condições na enfermaria feminina não seriam iguais. Havia diferenças significativas entre estes dois setores devido à reestruturação que estava ocorrendo nas instalações, o que diferenciava os espaços e execução das tarefas.

A enfermaria feminina, numa primeira impressão, lembrava as instituições desassistidas e despreocupadas com a qualidade de atendimento, inúmeras vezes retratadas pela literatura específica que denuncia as condições institucionais. No entanto, percebíamos uma motivação presente nos profissionais deste setor, que procuravam enfrentar as dificuldades com perseverança e dedicação. Tentavam criar condições para que as entrevistadas pudessem atender os requisitos do pesquisador. O esforço era significativo, a colaboração era motivadora na superação das dificuldades para individualizar as entrevistas. Procuravam viabilizar as condições para que as jovens estivessem lúcidas no momento das entrevistas, questão importante para resgatar suas histórias e que mesmo assim, em determinadas ocasiões, foram prejudicadas pelo efeito medicamentoso.

O roteiro das entrevistas centrou as questões nas situações de internamento, nas relações familiares e nas relações escolares. Esclarecemos aos sujeitos da pesquisa, sobre a ética e o respeito à individualidade em relação ao material coletado.

É interessante revelar também o paradoxo envolvendo os familiares dos jovens internados em relação ao consentimento, a finalidade das entrevistas e os objetivos da pesquisa. O consentimento e anuência aconteciam no ambiente hospitalar, mas quando procurados fora da instituição, a receptividade foi inversa e indiferente. Então, a partir dessas situações conflitantes, optamos pelos casos que consentiram sobre a continuidade dos trabalhos fora da instituição, prosseguindo com o processo de pesquisa. Conforme orientação específica do profissional especializado em psicoterapia e colaborador da pesquisa, a seqüência do processo foi analisarmos estes casos, aprofundando as situações reveladas e repetitivas nos outros entrevistados.

Destes casos foi importante a liberdade de trabalho disponibilizada pela família do caso feminino. Não aconteceu da mesma maneira com o caso masculino que apresentou dificuldades nos encontros, mas os desafios foram superados e conseguimos relatos importantes.

CAPÍTULO 6