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3. INSTITUIÇÃO TOTAL E AS PRÁTICAS PSIQUIÁTRICAS

3.2 O despojamento do ‘eu’ na instituição total

O hospital psiquiátrico, local onde os jovens sujeitos dessa investigação são destinados, é considerado como uma das instituições totais que dão suporte à ordem social moderna. As instituições totais mantêm uma característica específica em relação ao internado e o mundo exterior. Elas parecem cooperar para um ‘desculturamento’ quando criam e sustentam uma tensão entre a realidade doméstica e o mundo institucional e utilizam essa condição constante como uma força estratégica de controle.

Para o interesse da sociedade este sujeito precisa ser mantido inofensivo, retirado do meio para que satisfaça e deixe tranqüilos os parentes e a consciência pública lembrando as

lettres de cachet, conhecidas como mandatos de prisão em forma de cartas sobre o

“internamento voluntário”, um tipo de relação que se estabelece entre o poder, o discurso e o cotidiano, uma prática socialmente aceita do uso legítimo da força.

Até a Idade Média a confissão dos pecados ganhava as luzes e os contornos da linguagem, tendo como o outro a figura do padre. Com o advento das monarquias absolutistas a intimidade silenciosa passou a ser denunciada para a figura do rei, tornando-se assunto público por meio de escrivãos e petições. Esses se encarregaram, então, de cercear as

existências através das lettres de cachet, que materializavam em palavras um impedimento real, inferindo sobre a privacidade dos corpos.

As lettres de cachet lançavam um foco de luz sobre o corpo, tornando públicos os seus atos através de um discurso, lembrando que não partia unilateralmente do rei, mas fundamentava-se em denúncias do povo.

A interpretação da instituição total começa a atuar automaticamente, logo que o internado é admitido, pois a equipe dirigente compreende que o internamento é a prova incontestável de que o sujeito é o tipo de indivíduo que a instituição tem como objeto de tratamento. Desde a sua chegada, o internado passa por uma trajetória de privações e vivencia uma cultura oposta à originária de um ‘mundo da família’, com uma gama de experiências que caracterizam uma noção admitida do eu e que permite condições de defesa, praticadas de acordo com sua necessidade de enfrentamento diante dos conflitos, dúvidas e fracassos. (GOFFMAN, 2003, p. 23)

Inexperiente, ele chega à instituição, com uma concepção de si que possibilitou experiências sociais estáveis em seu mundo doméstico e ao entrar, é totalmente despojado destas possibilidades passando por uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e transgressões do eu. Tem-se a partir daí o início de alterações radicais em sua ‘carreira

moral’, uma trajetória composta pelas contínuas mudanças que ocorrem nas crenças que tem a

seu respeito e a respeito dos outros, que são significativas para ele. (GOFFMAN, 2003, p. 24) Ainda segundo o autor, são os processos relativamente padronizados nas instituições totais, como a barreira que é colocada entre o internado e o mundo externo, que caracteriza a primeira privação do eu. Nas instituições totais, inicialmente, se proíbe as visitas vindas de fora e as saídas do estabelecimento, o que certifica uma ruptura inicial profunda

com os papéis anteriores e uma avaliação da perda de papel4 . No entanto, diz Goffman (2003), alguns papéis podem ser restabelecidos pelo internado se e quando o indivíduo voltar ao mundo externo. É visível que outras perdas pareçam irrecuperáveis e podem ser dramaticamente sentidas como tais.

Nas instituições totais, segundo este mesmo autor, o grupo controlado – os internados – vive na instituição e tem contato restrito com o mundo existente fora de suas paredes. Ao contrário da equipe controladora ou de dirigentes que trabalham num sistema de horários e está integrada no mundo externo.

Explica Goffman (2003), que a multiplicidade de maneiras pelas quais os internados devem ser considerados fins em si mesmos e em conformidade com os princípios morais gerais da sociedade mais ampla de uma instituição total, está numa prática onde o objetivo principal da equipe dirigente é conseguir um controle dos pacientes de maneira influente e eficaz, independente do bem-estar dos pacientes. A partir destes modelos de tratamento, a equipe dirigente é “lembrada das obrigações e direitos”, dilemas clássicos que precisam ser enfrentados por aqueles que governam e como instituição total, ela funciona de forma análoga como um Estado, onde a equipe dirigente padece com os problemas enfrentados pelos governantes.

Tal como as representações produzidas nas instituições totais, também as práticas e linguagens sociais adotadas em relação à loucura constituem códigos que funcionam discriminando comportamentos, atitudes, sentimentos e posições, desdobrando-se em códigos de valores, certo e errado, bem e mal, desejável e indesejável etc. Tais códigos sociais, que trazemos dentro de nós, regulam nossa subjetividade na relação com os outros. A loucura manifesta-se para a sociedade como algo estranho, que foge a nossa compreensão de conduta

4O termo se refere ao papel social, que T. Parsons define como conjunto de normas e códigos sociais a serem observados pelas pessoas ou grupos em interação. Também é o setor organizado de orientação de um ator que constitui e define sua participação num processo de interação. (FERRARI, 1983, p. 163)

como uma perda de sentido. A experiência da loucura é sentida como se algo nos escapasse, algo que não conseguimos identificar como nosso. A experiência da loucura é a perda ou ameaça de perda da própria identidade. Ela se apresenta então como algo que se passa em nossa subjetividade, para o qual não conseguimos encontrar uma linguagem capaz de defini- la. Dessa forma podemos dizer que essa experiência, a qual damos sentido, reflete códigos sociais por nós interiorizados. "Enlouquecer é ser submetido à angústia e ficar prisioneiro do universo do não sentido, em que nossa linguagem fica aquém da possibilidade de interpretar o que experimentamos". (BIRMAN, 1980)