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Diante dos desafios acima colocados é que decidi trabalhar com outras categorias teóricas de polêmico entendimento, entre elas a relação entre memória e história. Sobre essa questão pude perceber que existem limites e que, certamente, ainda continuarei limitado. Mas certamente estarei mais atento, reconhecendo que muitas lembranças, silêncios e esquecimentos, presentes nas memórias de alguns destes sujeitos sociais em Itapuranga, foram essenciais para que eu pudesse compreender a ausência de algumas experiências, efetivamente realizadas, em suas narrativas.

Quando lidamos com a memória não podemos esquecer que ela envolve a capacidade de narrar. Enquanto pesquisador, torno-me um mediador dessas várias narrativas, que dizem muito dessa invenção do cotidiano das pessoas. Como recomenda Certeau (2001, p, 35), acreditamos que “os relatos de que se compõe esta obra pretendem narrar práticas comuns”, e é preciso ir além deles para descobrir o que ficou de fora.

Tal como constatou Silva (2003), em seu estudo sobre a Guerrilha do Araguaia, feito a partir das memórias dos camponeses que viveram tal movimento, deve-se ficar atento, nessa coleta de narrativas, aos vários silêncios e esquecimentos, aos gestos, às trocas de olhares, e a particularidades da expressão verbal que podem ocorrer no momento de nossa interação com estes sujeitos sociais (Silva, 2003, p. 72).

Todas essas precauções, recomendadas por outros pesquisadores, foram importantes para que eu pudesse analisar alguns estudos existentes sobre memórias e narrativas acerca da experiência de alguns movimentos sociais em Itapuranga. Pude verificar que nem todos os personagens neles citados foram efetivamente consultados, já que alguns deles se recusam terminantemente a falar sobre sua história e participação em alguma organização pelos seus direitos sociais. Assim, fui percebendo que esse novelo do universo de várias lembranças, esquecimentos e silêncios, que compõem essas tais histórias, apresenta características definidas por dimensões subjetivas e também por fenômenos de caráter social. Conforme afirma Pollak (1992, p, 2),

a priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes.

A memória de alguns destes sujeitos sociais foi se tornando importante para muitos campos da pesquisa, principalmente porque muitas destas lembranças podem apontar conexões entre essas várias memórias, confirmando a afirmação de Benjamin (1994, p. 215) de que “o comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada”.

Nesse sentido, cabe considerar também a afirmação de Pollak (1992, p. 2):

é perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada. De fato – e eu gostaria de remeter aí ao livro de Philippe Joutard sobre os camisards –, podem existir acontecimentos regionais que traumatizaram tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação.

A memória pode, então, atuar como elemento que serve para identificar uns em relação aos outros, e também em relação aos vários mediadores que apareceram ao longo da trajetória desses trabalhadores. É o que se confirmou no meu processo de

interação com esses trabalhadores, pois, em muitos casos, tive que convidar alguma pessoa que fizera parte da sua história coletiva, para que os mesmos pudessem relembrar fatos relevantes de seu envolvimento em tal organização. As limitações envolvidas nesse tipo de situação são analisados por Bosi (1994, p. 38), quando afirma:

gostaria de que compreendessem os limites que os narradores encontraram. Faltou-lhes a liberdade de quem escreve diante de uma página em branco e que pode apurar, retocar, refazer. Suas memórias contadas oralmente foram transcritas tal como colhidas no fluxo de sua voz.

Como a memória tem capacidade seletiva, ao se colocarem diante de um interlocutor, as pessoas estão sujeitas a lembrar, a esquecer ou a silenciar. Foi o que verifiquei quando decidi entrevistar o Sr. Cândido de Barros, um dos membros das 32 famílias que lutaram pela terra na Fazenda Córrego da Onça, em Itapuranga. Como todo pesquisador que lida com a oralidade, fiquei empolgado com a possibilidade de ouvir as narrativas deste senhor, e quando tive o primeiro contato, para agendar a entrevista para o dia seguinte, houve uma boa receptividade por parte dele, que dava sinais de se lembrar da história que eu desejava conhecer. Fiquei assim esperançoso com a possibilidade de ouvir seus relatos. Mas, para minha surpresa, ao chegar no dia agendado, com toda a parafernália de pesquisador, sorridente e ansioso por ouvi-lo, fui recebido no portão de entrada, com a afirmação de que ele não poderia falar nada sobre aquele assunto, porque não se lembrava de mais nada. Segundo ele, a sua memória estava falha e havia esquecido de quase tudo. Mas fez a indicação de um vizinho seu, que morava ali perto, e que poderia contar-me o que havia ocorrido.

Num primeiro momento, esse silêncio me assustou. Na continuidade de meu trabalho é que fui compreendendo esta dimensão da memória que é o silêncio voluntário e intencional. Posteriormente, fiquei sabendo que ele havia consultado seus familiares sobre a entrevista que daria, quando tomaram a decisão de não falar mais naquele passado, para eles de trauma e sofrimento, o qual não deveria mais ser comentado. Na verdade o que houve foi um acordo em não dizerem mais nada sobre a experiência na terra, portanto silêncio consentido, deliberado e não esquecimento como dimensão biológica da memória.

Em vários outros momentos constatei ser a memória uma capacidade de narrar fatos individuais e coletivos, que opera com previsível seletividade. Constatei

também a necessidade de conhecer como atua essa capacidade psíquica, quando se discute e se estuda o que narram os entrevistados acerca de um passado que ressurge presentificado em suas falas. Nossas observações encontram suporte no que Bosi (2003, p. 44) afirma sobre esse processo de narrar:

ouvindo depoimentos orais constatamos que o sujeito mnêmico não lembra uma ou outra imagem. Ele evoca, dá voz, faz falar, diz de novo o conteúdo de suas vivências. Enquanto evoca ele está vivendo atualmente e com uma intensidade nova a sua experiência.

Se quando contam suas vivências, as pessoas se valem de lembranças, esquecimentos e silêncios, é preciso estar atento aos vários interditos que aparecem neste diálogo. Procurando entender o que de fato ocorre nesses momentos de interação, Bosi (1998, p. 38) acrescenta:

Fomos ao mesmo tempo sujeito e objeto. Sujeito enquanto indagávamos, procurávamos saber. Objeto quando ouvíamos, registrávamos, sendo como que um instrumento de receber e transmitir a memória de alguém, um meio de que esse alguém se valia para transmitir suas lembranças.

Para compreender melhor essa relação de aproximação entre memória e história busquei outros autores, entre eles Dihel (2002, p. 120), que considera necessário, para lidar com essa categoria, uma atenção especial para “a necessidade de contextualidade [tanto] do objeto da memória como do agente rememorador; a necessidade de temporalidade; a necessidade da narrativa (da poética) e, finalmente, a necessidade de sua problematização” (2002, p. 120).

Portanto, o estudo dessas dimensões da relação entre história e memória serviu para balizar as possibilidades de entendimento e de utilização da fonte oral, mesmo porque não era nosso objetivo trabalhar com a memória como uma categoria essencial nesta pesquisa. As memórias aqui colhidas seriam usadas no sentido de favorecer a problematização das fontes documentais existentes, e a compreensão melhor dos inúmeros

esquecimentos e silêncios em relação às organizações e aos embates dos quais participaram os trabalhadores rurais em Itapuranga. Não seriam tomadas, é claro, no sentido da constatação de sua veracidade.