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2. A INFÂNCIA DAS MENINAS XETÁ: ENTRE A MATA E A FAZENDA

2.1 As memórias mais antigas

Neste ítem abordamos as falas das narradoras sobre as memórias que consideraram mais antigas e buscamos destacar como se dá a presença dos não-índios nessas memórias, a relação das sujeitas com estes não-índios, e como estas mulheres apreendiam o processo de esbulho territorial que já estava ocorrendo, destacando os modos de readequação as dificuldades que a fuga nos não-indios dentro da mata ou a convivência em um novo núcleo familiar lhes causaram.

2.1.1 Haan

A primeira sujeita desta narrativa, e mais velha remanescente Xetá é Haan, hoje com 69 anos, residente na Terra Indígena de São Jerônimo da Serra, numa casinha mais distante das outras famílias que ali residem. Haan é a mulher Xetá que teve maior espaço de fala no trabalho de Silva (1998), e a única das quatro remanescentes que consegui falar com mais detalhes sobre a cultura dos Xetá quando ainda estavam na Serra dos Dourados.

Por intermédio da etnografia dos Xetá elaborada por Silva (1998), vemos que quando perguntada sobre suas memórias mais antigas, suas lembranças mais vivas são as dos rituais de iniciação masculina, eu que os meninos tinham o lábio inferior perfurado, das cantorias, fuga dos não-índio mata adentro e conflitos internos causados pelos roubos das mulheres.

Nos trabalhos de Silva (1998) Haan conta que se lembra de ter participado do ritual de iniciação masculina de Tuca na Óka-wautxu4, onde, como era de costume entre as mulheres Xetá, ajudou servindo a bebida de guavirova5 aos homens com uma cuia, enquanto estes cantavam e desenvolviam o ritual. Também se lembra das brincadeiras, da preparação e distribuição dos alimentos, de seus parentes mais próximos e das longas caminhadas na floresta com seu pai, memórias que também fizeram parte das narrativas de Tiguá e Ana Maria.

O pai de Haan morreu pelas mãos de Ajutakã, em vingança pela morte do irmão e do roubo de sua mulher. Já sua mãe, faleceu algum tempo depois por intoxicação alimentar causada pela ingestão de charque e farinha, e Haan, órfã, acabou ficando na companhia de Mã [Haikumbay].

Sobre seu primeiro contato direto com os não-indios, Haan conta que em uma das constantes fugas um dos Xetá perdeu o Tambetá6, possivelmente o Mã, que mandou que voltasse para procurar, e foi nesse retorno que Haan deu de encontro com os agrimensores que vinham logo atrás. Por meio se sua fala vemos que foi um momento de muito medo, e que ela somente se acalmou quando um índio Xetá que acompanhava a expedição falou na língua, e pediu para que voltasse e buscasse os outros, e assim o fez. O índio que acompanhava a expedição era Ajutakã, irmão de Mã [Haikumbay], depois de muita conversa os integrantes da expedição se aproximaram e os convenceram a ir para a fazenda de Carolina Alves de Freitas, esposa de Antônio Lustosa de Freitas. Na fazenda comeram o açúcar que lhes foi dado, e mais tarde, todos voltaram para a mata. Assim, Haan e seu grupo passou a transitar entre a mata e a fazenda (SILVA, 1998).

2.1.2 Tiguá

A segunda narradora Maria Rosa Tiguá Brasil, mais conhecida como Tiguá7, como prefere ser chamada, tem 69 anos, é moradora da cidade de Umuarama –PR, é mãe de duas filhas, avó de três netos, mora com a família de sua filha mais velha, Indianara Brasil Tiguá, 35 anos, o marido Reginaldo Dias Soares, 40 anos, e seus três netos Willian Weitzmann, 20 anos, Larissa Brasil Soares, 15 anos, e Taina Brasil Soares, 12 anos. Sua filha caçula, também casada, se chama Tânia Dornelo Sabino. Sobre suas memórias mais antigas ou seu passado na Serra

4 Na língua Xetá significa aldeia grande.

5 Fruta da qual se extraia o suco e transformava em bebida tradicional para ser servida durante o ritual de iniciação

masculina (SILVA, 1998).

6 Objeto duro e inflexível usado pelos homens no lábio inferior. Sua colocação se dava durante o ritual de iniciação

dos Dourados Tiguá não se recorda de muita coisa além das longas caminhadas e das solitárias buscas por comida, ainda assim, vemos que já nestas memórias mais antigas a família Lustosa já se fazia presente:

Aí eu lembro que eles iam longe na frente eu era pequenininha e eu ficava pra trás, daí o meu padrinho falava que as vezes ele também tava junto e ele achava falta de mim ele pedia para eles esperar e voltava para trás aí eu vinha vindo, aquele Toquinho desse tamanho correndo atrás dele, daí me pegava no braço, me colocava no braço dele e me trazia, daí ia todo mundo até chegar na fazenda, porque o índio caminha muito rápido né, então eles caminhavam muito rápido e eu era muito pequenininha não acompanhava e ficava pra trás (Entrevista concedida por Tiguá. Xambrê - PR, 29 de setembro de 20188)9.

Disse não se lembrar de quase nada sobre sua vida antes de morar com a família Freitas, e para Silva (1998), justificou seu esquecimento como uma forma de não sofrer com as lembranças. Entre suas falas para o trabalho de Silva (1998) e as coletadas para esta pesquisa, percebemos uma mudança no tom de narrativa de dona Tiguá. Em 1998 Tiguá demonstra maior pesar ao lembrar do seu passado, acentuando a dor do afastamento de seus parentes e a impossibilidade de falar na língua Xetá, enquanto em 2018, existe menos luto em sua fala sobre o mesmo período.

A forma como cada narradora constrói sua narrativa está relacionado com a maneira em que acredita que esse passado impactou em seu presente. Até 1997 Tiguá acreditava ser uma das últimas de seu povo, juntamente com dona Ana. Isto posto, retomando Portelli (2001) associamos esta transformação na forma de recordar a mudança da perspectiva de seu presente, e seu futuro enquanto indígena Xetá a partir de 1997, quando houve o reencontro com outros sobreviventes Xetá, pois, constatou que seu povo ainda vivia e que suas memorias não seriam mais apenas lembranças de um passado, mas sim, parte de toda uma história que continuaria se reconstruindo e sendo base para o fortalecimento de sua identidade indígena.

As histórias que conhece dos Xetá, sobre o paradeiro de seus pais, ou do seu passado na Serra dos Dourados foram contadas por terceiros, como seu primo Geraldo, que cresceu na mesma fazenda em Douradina:

8 Entrevista concedida por TIGUÁ, Maria Rosa Brasil. Maria Rosa Brasil Tiguá: entrevista [set. 2018].

Entrevistadora: Beatriz Rosa do Carmo Silva. Xambrê – PR, 2018. 3 arquivos de mp4. Entrevista concedida para

a pesquisa “A trajetória das remanescentes Xetá da Serra dos Dourados no Paraná de 1950 a 2019” da Universidade

Estadual de Maringá - PR. A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação.

Os outros índios contavam que eu era pequenininha assim, tinha seis ou sete anos que eu já não tinha nem pai nem mãe, né, e eu tinha que ir no mato cata fruta para mim comer, e esses dias eu ainda estava comentando com Indianara,

eu falei: “Indianara, diz que quando era pequenininha, que tinha uns cinco,

seis a sete anos eu tinha que ir para mata buscar fruta para mim comer (Entrevista concedida por Tiguá. Xambrê - PR, 29 de setembro de 2018).

De acordo com Bosi (1994), quando recordamos fatos, nossas memórias mais antigas, sobretudo de nossa infância, apenas recordamos porque testemunhas desta lembrança nos fazem evocá-las. Ao mesmo tempo que Bosi (1994) questiona se é possível recordar sem ter pertencido ao grupo que sustente nossa memória, questiona se apenas o que chamamos de memória coletiva seria capaz de dar todas as explicações de todos os fatos da memória individual.

Desta forma, vemos que Tiguá ao rememorar sua infância não narra apenas o que se recorda ao ser confrontada sobre este período, mas o que as pessoas que a criaram contaram a ela sobre sua infância, uma memória depende da outra, a coletiva e individual, pois se completam. Evocar as memórias individuais por meio da memória coletiva é ao mesmo tempo, completar esta memória, dar explicações a ela e dar forma ás mais remotas memórias individuais.

2.1.3 Ana Maria

Nossa terceira narradora, Ana Maria Tiguá, atualmente reside na casa de Suely, filha mais nova da família que a criou. Uma irmã de criação por quem tem muito apreço, junto com seu filho Paulo Sérgio Ferreira, 31 anos, na cidade de Douradina – PR. Atualmente viúva de Luís Carlos Ferreira, e com 64 anos aproximadamente.

Ao ser perguntada sobre suas lembranças do passado na Serra dos Dourados, inicialmente, Ana Maria sempre insistia que não “lembra das coisas”, ainda assim, com o desenrolar da conversa lembrou com muito carinho de alguns momentos de convivência entre os Xetá, sobretudo aqueles em que estava com seu pai, irmão e outras crianças. Lembrou das brincadeiras no rio, de subir nas árvores para pegar fruta e de como eram servidos alimentos como a carne de cobra:

Então, aí meus pais matavam a cobra e enrolava que nem uma linguiça, até

meus irmãos tirava sarro: “Há nós comia linguiça lá no mato” ((risos)). Aí diz

que eles colocavam a cabeça da cobra pra baixo, que tudo que é de ruim vai

gente ia pegar? Ele que dava, que tirava os “fiapinho” pra gente, ai a gente

comina né?! Por que diz que o espinho é o veneno né, aí quando acabava de comer eles enterravam o espinho, num buraco bem fundo pra gente não pisar em cima (Entrevista concedida por Ana Maria. Douradina - PR, 15 de setembro de 2018)10.

Suas lembranças mais antigas são do tempo que ainda vivia com seu pai e sua madrasta na Serra dos Dourados, das coisas que faziam juntos, como quando ele preparava da carne da cobra, e do cuidado que se tinha em relação ao preparo e descarte dos espinhos, ou ainda, as caminhadas na mata sob os cuidados de seu pai:

[...] aí meu pai não deixava eu ficar atrás não, sempre na frente dele, sempre, sempre, quando ele esquecia que eu vinha atrás ele pegava e colocava eu na frente dele pra andar (Entrevista concedida por Ana Maria. Douradina - PR, 15 de setembro de 2018).

Sua mãe biológica faleceu quando tinha aproximadamente 5 anos, momento que passou a viver apenas com seu pai, até que ele se casou novamente, com uma das mulheres de Ajatukã, ficou na companhia dos dois até por volta de 1963, quando foi pega por Antônio L. de Freitas para ser criada por sua filha Nilda Lustosa de Freitas. De acordo com Silva (1998), entre 1959 e 1963, Ana Maria, seu pai e madrasta viveram em uma aldeia nas proximidades do local onde o grupo de seu avô paterno teria morado no rio Indoivaí.

O modo de recordar a infância de dona Tiguá e dona Ana são bem diferentes, quase opostos, uma vez que enquanto dona Tiguá se mostrou muito à vontade com toda a situação, a preparação para a entrevista, quem éramos nós os pesquisadores e o que nos motivava estar ali, ao ponto de suas narrativas serem muito claras e bem delineadas, dona Ana, apesar de se mostrar interessada e disposta a participar da pesquisa, repetia inúmeras vezes que não se lembrava de quase nada, e o que se lembrava não era da sua vida na Serra dos Dourados.

A relação de ambas com seu passado se mostra diretamente ligado a permanência de suas identidades indígenas ao longo de suas vidas, sendo assim, vemos que a memória coletiva não é uma memória compartilhada por todos os indivíduos da mesma forma, sendo a memória algo individual e que se relaciona com a capacidade particular com que o indivíduo se

10 Entrevista concedida por Ana Maria Tiguá. Ana Maria Tiguá: entrevista [set. 2018]. Entrevistadora: Beatriz

Rosa do Carmo Silva. Douradina – PR, 2018. 3 arquivos de mp4. Entrevista concedida para a pesquisa “A trajetória das remanescentes Xetá da Serra dos Dourados no Paraná de 1950 a 2019” da Universidade Estadual de Maringá - PR. A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação.

relacionou com o acontecimento, como ocorre com as memórias de infâncias das narradoras Xetá, para uma a separação de seu núcleo familiar se traduziu em tragédia, enquanto para outra o trauma foi menor.

2.1.4 Maria Thiara

A quarta integrante desse trabalho não pode ser narradora uma vez que é desconhecido seu paradeiro. Maria Thiara Marques também é indígena Xetá e foi tirada de sua família aproximadamente no mesmo período que Haan, Tiguá e Ana Maria. A reconstituição de sua história é uma tarefa desafiadora, pois desde pequena, quando foi levada de sua família, mantiveram-na longe daqueles que um dia conheceu e do lugar que reconhecia como seu lar. As informações que nos permitiram traçar um pouco de sua trajetória foram retiradas dos trabalhos de Silva (1998), de seu processo criminal e recortes de jornal.

De acordo com Silva (1998), durante seus trabalhos de campo com os Xetá e com os dados tirados dos depoimentos de Maria Thiara, constatou-se que assim como as outras remanescentes, foi roubada de sua família quando tinha em torno de 5 anos por um casal de não índios e foi levada para morar em um sitio próximo a Campo Mourão, onde cresceu sendo maltratada pela família, prestando serviços domésticos em regime de semiescravidão e sem ter acesso a escola.

Em um exame psiquiátrico feito a pedido de seu advogado de defesa por volta de 1979, Maria Thiara revelou que, ainda menina, foi estuprada por um jovem da família que a tirou da Serra dos Dourados, o que de acordo com os relatos trazidos por Silva (1998), levou essa família a entregá-la para uma senhora dona de uma casa de prostituição. Estas informações escassas são as únicas que dispomos sobre a infância de Maria Thiara, sua rotina ou adaptação com a família é desconhecido, os próximos vestígios de sua trajetória viriam apenas anos depois.

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