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2. A INFÂNCIA DAS MENINAS XETÁ: ENTRE A MATA E A FAZENDA

2.2 Separação da família Xetá

No início da década de 1960, os Xetá já transitavam entre a mata e a fazenda, isto posto, diferente do caso de Haan, que tinha conhecimento da existência e presença do não-índio, mas nunca havia tido contato direto com eles até o dia em que foi encontrada pela expedição do SPI, tanto Tiguá quanto Ana Maria cresceram na presença dos fazendeiros da região, e ao analisarmos as suas memórias mais antigas, aspectos como as idas e vindas entre a mata e a fazenda, as brincadeiras com os não-índios, o trabalho que os pais realizavam em troca de

alimento e abrigo estão sempre presentes em suas narrativas de infância ou das memórias que elas determinaram como as mais antigas.

Alguns anos antes, por volta de 1955-1956 as remanescentes Xetá Haan e Tiguá deixaram de conviver com seu povo na mata, e passaram a trilhar novos caminhos, diferentes daqueles trilhados por seus antepassados. O mesmo ocorreria com dona Ana anos mais tarde, por volta de 1963.

2.2.1 Haan

Como apontado por Silva (1998), em novembro de 1955 uma expedição do SPI, acompanhada por Tuca e Kaiuá, visitou a aldeia onde Haan e seus parentes estavam parados. A menina reconheceu seu irmão e seu primo e ficou muito emocionada. Quando a expedição se organizou para ir embora, Haan quis acompanhar seu irmão, mesmo Mã não querendo aceitar sua ida, ela foi, ambos acreditando que ela retornaria, no entanto, isto não aconteceu.

O caminho da aldeia até onde estava o carro era longe, Haan comenta que foi carregada por Tuca, Dival José de Souza, chefe da 7ªIR/SPI, e depois foi no lombo de um burro.

Figura 3: Haan com SPI

Fonte: Museu do Indio/FUNAI, 1950.

De acordo com uma guia de entrega de mercadorias referente a compra de medicamentos exposto por Mota e Faustino (2018), sabemos que na data de 11 de novembro de 1955 Haan já estava sob os cuidados de Dival J. de Souza em Curitiba - PR, e que estavam sendo providenciados para ela medicação e roupas novas. Em sua narração feita a Silva (1998), demonstra o pesar por ter deixado sua terra, ao passo que demonstra o quanto não imaginava como aquela decisão mudaria sua vida. As diferenças culturais se apresentaram antes mesmo de saírem da Serra dos Dourados, quando Haan lembra que seu irmão Tuca precisou caçar algo para ela comer porque estava com fome e não queria comer outra comida. Recorda o momento em que ao fim da caminhada chegaram ao carro: “Próximo ao carro, eu não queria entrar naquilo de jeito nenhum, eu achava que carro comia gente. Era isso que minha gente pensava. Era isso que nossa gente pensava” (apud SILVA, 1998, p. 68).

Ainda assim, mesmo resistindo, o carro com os membros da expedição saiu em direção a Curitiba - PR, e restou a Haan apenas se consolar junto a seu irmão. O período de adaptação a esta nova rotina foi diferente para cada narradora. No caso de Haan, depois que entrou no carro com seu irmão foi levada para Curitiba - PR onde morou por um tempo em uma pensão com a família de Dival J. de Souza, que já vinha cuidando de Tuca e Kaiuá. As diferenças culturais que se seguiram marcaram sua fala, relatou o estranhamento com aquele mundo novo,

quando retiraram dela seus adornos, como um cordão de fibra de caraguatá, um brinco pequeno de pena de papagaio e outro de couro de baitaca, o primeiro usaria até entrar na adolescência, tudo descrito por Haan como um momento de muito pesar.

2.2.2 Tiguá

Sobre como Tiguá foi tirada de sua família, Silva (1998) traz a narrativa que Antônio L. de Freitas deu ao Projeto Memória Indígena do Paraná, em que o mesmo afirma que por volta de 1965, quando Tiguá tinha cerca de 8 anos, funcionários de sua fazenda encontraram-na perdida na floresta depois de se desprender de sua família durante uma caminhada. De acordo com a narrativa de Freitas, os pais de Tiguá foram até a fazenda buscar a menina, no entanto, em nenhuma das tentativas foi permitido que a levassem de volta.

Em contrapartida, de acordo com o relato de Tiguá (2018), seus pais morreram quando ainda estava vivendo na mata, passando a ser cuidada por seu tio, que já estava velho e doente. Foi aí que no convívio que se tinha entre a mata e a fazenda, a esposa de Antônio Lustosa de Freitas pediu para ficar com ela, pedido que foi concedido:

[...] por que aí os outros índios falavam que diz que ele deu por que ele tava doente já, ele achou que ele ia embora, daí ele tinha que me deixar em bom lugar, ai me deixou com ela, daí eu fui me criando (Entrevista concedida por Tiguá. Xambrê - PR, 29 de setembro de 2018).

Por outro lado, sobre o dia em que ficou definitivamente com o Sr. Antônio e Dona Carolina, Tiguá conta que não se lembra do momento como uma ruptura, diferente dos relatos de Haan e Ana Maria sobre a mesma situação, mas sim que foi se acostumando a morar com eles e com a rotina do dia a dia, possivelmente por já não estar mais na convivência de seus pais, foi se aproximando da família Lustosa sem o sentimento de abandono ou saudade, o que poderia se confirmar quando revelou não ter mais vontade de voltar a morar com seu tio na Serra dos Dourados, se essa possibilidade existisse.

2.2.3 Ana Maria

Sobre a convivência entre a Serra dos Dourados e a fazenda, Ana Maria diz que nesta época, enquanto seus pais trabalhavam na roça ela e as outras crianças brincavam e não tinham muito envolvimento com o trabalho, uma vez que ainda eram pequenos:

Eu alembro que a gente ficava lá na fazenda, e eu ficava junto com meus pais, junto com eles ainda, e meus irmão tudo, né?! A gente saia bastante, ia pros mato, ia pro rio tomar banho, eu meus irmão, depois a gente ficava um tempo lá no mato depois a gente voltava pra fazenda de novo, a gente fazia aquela vida né, ia pro mato, depois ia pra fazenda de novo, ai a gente foi se conhecendo (Entrevista concedida por Ana Maria. Douradina, 15 de setembro de 2018).

E assim era a rotina dessas famílias. Transitavam entre a mata e a fazenda de acordo com suas necessidades e interesses pela busca de alimento, mas principalmente um lugar seguro para se estar, no entanto, depois que foram levadas de seus familiares, suas rotinas e costumes foram transformados.

Por volta de 1963, em um acordo feito entre seu pai e Antônio L. Freitas, Ana Maria foi dada para Nilda Lustosa de Freitas e Carlos Florêncio de Barros criarem. Para Ana Maria também não foi fácil deixar seu povo para viver na fazenda, quando perguntada sobre suas lembranças deste dia Dona Ana relembra:

Ai essa mulher que me pegou pra criar ela apareceu lá depois, [...] pediu pro pai dela, ai o pai dela foi lá e pediu pro meu pai, o pai dela foi lá e falou assim, que queria menina e tal, que achou ela bonitinha, aquela coisinha toda, ai meu pai falou que sim, ai eles falara que sim, tinha um dos índios que falavam na língua deles... Queria volta pra casa ((risos)) ... Eu passei a noite inteira

chorando, diz que eu fiquei ‘cocada’ assim, de bruços chorando, e queria

voltar né?! Aí o pai dela teve que ficar dois dias indo na casa dela por causa de mim, ele não podia voltar e deixar eu daquele jeito (Entrevista concedida por Ana Maria. Douradina, 15 de setembro de 2018).

O casal na época morava em Douradina –PR, já tinha três filhos, Nilda, Suely e Carlos, e possuía um pequeno comercio na cidade. Logo que foi pega, a família Freitas a batizou. Sua certidão de batismo confirma que à época da adoção Ana Maria tinha aproximadamente 4 anos, ainda muito jovem precisou lidar com grandes desafios, como o de se acostumar com a ausência dos pais, a nova alimentação, e posteriormente, a rotina de trabalhos domésticos da casa.

Dona Ana conta que o Sr. Antônio L. de Freitas, com a ajuda de Geraldo, indígena Xetá que falava na língua e também vivia na fazenda, foi convencendo seu pais de que seria bom para ela não ficar mais na mata devido as mortes que vinham ocorrendo, as constantes fugas e a pouca oferta de alimentos, e já no outro dia levaram-na de seus pais. Ainda que tanto seu pai quando Antônio L. de Freitas tenham lhe explicado para onde estava indo e os motivos da mudança, dona Ana lembra que ficou noites sem dormir:

[...] igual eu falei pra você, eu não dormia a noite, dei um trabalho danado pra eles lá, eles não dormiam também, ficava a noite inteira chorando querendo ir

embora (Entrevista concedida por Ana Maria. Douradina, 15 de setembro de 2018).

Ao recordar esse período de sua infância dona Ana esteve sempre com uma expressão séria e de pesar, ficou marcado no seu tom de voz a tristeza por saber que não havia escolha, que teria de aceitar sua nova realidade junto a família Freitas, embora, não desejasse estar ali, longe de seus pais e da vida que levavam na Serra dos Dourados.

Tiguá e dona Ana não tiveram um encontro com os não índios narrado de maneira tão delineada como de Haan, pois, de acordo com suas narrativas de infância, suas lembranças já eram da convivência com seus parentes em seu território tradicional e as fazendas, como a de Antônio Lustosa de Freitas. Sobre este fato Tiguá recorda:

Eles vinham, iam para o mato, ficavam dois três meses na fazenda Santa Rosa, na fazenda do meu padrinho, e depois voltava ou senão iam lá pra Fazenda São Francisco, que morava o seu Paulo (Entrevista concedida por Tiguá. Xambrê - PR, 29 de setembro de 2018).

Inclusive, afirma que era nessas visitas que revia seus parentes e tinha a oportunidade de conviver com eles, assim como com o tio que a criou depois da morte de seus pais até ser adotada pela família Freitas. Segundo Tiguá ele sempre a via na fazenda, no entanto, nunca a convidou para voltar para a mata com ele pois sabia que estava em boas mãos.

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