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MEMÓRIAS LITERÁRIAS UMA INTERFACE DA ABORDAGEM DE HISTÓRIAS DE VIDA

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CAPÍTULO III – HISTORIANDO O PROJETO DE LEITURA E ESCRITA DESENVOLVIDO COM A 4ª SÉRIE A

FOTOS 6: escritor Aristides Theodoro e a aluna Carolina Simplício na Escola Estadual Iracema de Barros

3.4 MEMÓRIAS LITERÁRIAS UMA INTERFACE DA ABORDAGEM DE HISTÓRIAS DE VIDA

Movida pela identificação com o texto de Neves, produzido para a 6ª edição da coletânea: Pesquisa Autobiográfica e Educação, Narrativas de Formação e Saberes Biográficos (2008, pg. 59), no qual a autora revisita a obra de Câmara Cascudo relacionando-a à perspectiva autobiográfica, com plena consciência, segundo ela própria, quanto aos riscos implícitos na aproximação de uma obra empírica a uma perspectiva acadêmica; atrevo-me também a escrever a seguir um ensaio, na tentativa de relacionar a perspectiva autobiográfica às memórias literárias - apresentadas no livro produzido por meus alunos.

Antes, porém, é preciso recuperar como foi naquele contexto, nossa aproximação com o gênero Memórias Literárias, ou por assim dizer, como fomos, gradativamente, aprendendo a escrever, tendo como fonte inspiradora as vivências cotidianas.

Partindo do pressuposto que se aprende a escrever escrevendo e que cabe à escola assumir o papel não apenas de ensinar, mas também de ensinar o prazer pela atividade de escrita, lançamos logo no início do ano a proposta de trabalho com diários pessoais. Para tanto, reservávamos um espaço, ao final do período de aula para que as crianças produzissem escritas individuais, onde relatavam como havia sido o dia na escola. Assim, os alunos foram sendo estimulados a escrever sobre acontecimentos cuja vivência lhes pertencia.

Para esta tarefa combinamos que o que quer que fosse registrado, só poderia ser compartilhado com o grupo, com os alunos, com a professora ou mesmo com os pais destes alunos, com a permissão dos mesmos.

Interessante foi perceber que a grande maioria sempre me procurava para mostrar seus registros, principalmente quando emitiam opiniões negativas sobre a aula do dia, sobre uma postura inadequada da minha parte, ou quando queriam revelar um dos seus segredos - próprios da idade. De certa maneira, pareciam estar testando minha fidelidade ao combinado, meu respeito às suas opiniões, ou ainda, minha empatia com este universo tão próximo e tão distante do meu. Este

trabalho, sem dúvida, favoreceu consideravelmente a criação de vínculos entre mim e os alunos.

Quanto às correções, posso dizer que eram muitas as que mereciam ser feitas uma vez que este grupo tinha, como já foi dito, inúmeras dificuldades de escrita. Mas, frente a elas, tive que me abster, pois, diante do combinado de não interferir sem autorização, eles optaram por não me autorizarem na maioria das vezes.

Penso que o grupo assimilou muito bem o objetivo desta produção escrita, um objetivo ligado ao desejo, prazer e à possibilidade de escreverem e compartilharem esta escrita sem serem submetidos a julgamentos, seja pela sua forma, seja pelo seu conteúdo.

É claro que o convite para que as crianças escrevessem era feito sempre sob a perspectiva de que quem escreve, sempre o faz para um suposto interlocutor, uma terceira pessoa e por isso mesmo é preciso “cuidar”, dentre outras questões, dos aspectos ortográficos, para que quem leia possa compreender o que se espera transmitir. Os alunos da 4ª série não ignoravam esta premissa, porém, naquele momento, ao produzirem escritas com “erros”, em sua maioria ortográficos, havia certa satisfação por verem-se “liberados” da crítica.

Segundo Lerner (2001), existe uma tensão institucional gerada pelas duas necessidades legítimas da escola: uma diz respeito ao ensinar e a outra ao controle das aprendizagens. Isto se explica quando pensamos que como escola é preciso conhecer os “resultados de seu funcionamento” e muitas vezes ao tentarmos exercer um controle exaustivo sobre as aprendizagens, acabamos propondo situações de aprendizagens “somente no marco que permitem ao professor avaliar”; assim é que se põem em primeiro plano, certos aspectos em detrimento de outros. Quando propus a escrita dos Diários, tinha em mente trabalhar com o desejo, o prazer pela escrita e sabia que, para isso, haveria de me conformar em não exercer quase nenhum controle sobre esta aprendizagem.

Como aponta-nos Lerner (2001, p.21), o ensino da competência leitora e escritora exige do professor a capacidade de equilibração entre estas duas tensões:

É assim que o ensino põe em primeiro plano certos aspectos em detrimento de outros que seriam prioritários para formar alunos como leitores e escritores, mas que são menos controláveis. Apresenta-se, pois, inadvertidamente, um conflito de interesses entre o ensino e o controle: se se põe o ensino em primeiro plano, é preciso renunciar a controlar tudo, se se põe o controle das aprendizagens em primeiro plano, é preciso renunciar a ensinar aspectos essenciais das práticas de leitura e escrita.

Outra questão difícil de lidar foi o entendimento dos pais frente algumas propostas, em minha opinião algo perfeitamente compreensível, pois, se como professores muitas vezes temos dificuldade em compreender a necessidade de mudanças na prática pedagógica e de olharmos para aquilo que fazemos com um olhar de dúvida, questionamento, o que podemos dizer dos pais de alunos que diferente de nós, professores, concebem a educação apenas sob o prisma do vivido.

Foram as próprias reuniões de Pais e Mestre que me deram a oportunidade de dialogar com estes pais e esclarecer muitas das ações propostas, ações que como estes mesmos afirmaram eram bem diferentes do que conheciam até então. Com relação ao trabalho com Diários pessoais, o argumento que mais os convenceu foi o de que haveria outros espaços na escola para o trabalho com revisão textual.

Durante o ano, esta proposta foi sendo substituída por outras, como por exemplo, os cadernos de enquete12 feitos também em sala de aula concebido sob o mesmo princípio.

Outra proposta de leitura e escrita que tinha como referência o sujeito e também a comunidade foi desenvolvida a partir da nossa participação na terceira edição do Prêmio Escrevendo o Futuro!

O Prêmio Escrevendo o Futuro faz parte das ações do Programa Escrevendo o Futuro, que foi desenvolvido pela Fundação Itaú Social, em colaboração com o Ministério da Educação (MEC), com base em um conjunto de atividades voltadas à melhoria da produção escrita nas escolas públicas brasileiras.

12 Cadernos com perguntas, elaboradas pelos alunos, cujo objetivo é passar de mão em mão coletando assim, o máximo de informações pessoais sobre os colegas da sala.

Nossa participação consistia basicamente em realizar as oficinas propostas no material elaborado pela Fundação Itaú Social e ao final do trabalho, enviar para a coordenação do projeto a produção escrita de alguns alunos da escola.

O material destinado à 4ª série tratava do gênero memórias, nele havia uma introdução ao gênero e mais doze oficinas, compostas por situações didáticas que objetivavam guiar passo a passo o trabalho do professor.

Uma das primeiras orientações do material era quanto à necessidade de compartilhar com a sala um significado comum de memórias, haja vista que o termo memórias nos remete a um universo amplo de significados. Introduzimos esta discussão com a leitura do livro “Guilherme Augusto Araújo Fernandes”, Mem Fox, brinque-book, 1995. Este livro fala do envolvimento de um menino com os idosos que moravam em um asilo próximo a sua residência, e como ele consegue ajudar uma das senhoras do asilo a recuperar parte de suas lembranças. Abaixo um trecho desse material:

Um dia Guilherme Augusto escutou seus pais conversando, preocupados com D. Antonia, pois já estava com noventa e seis anos e havia perdido a memória. Guilherme Augusto, curioso, quis saber o que era memória e não satisfeito com a resposta do pai – que memória é algo de que você se lembre – procurou seus amigos do asilo para saber mais.

A senhora Silvano disse para o menino que memória era algo quente; o Sr. Cervantes explicou que era algo bem antigo. O Sr. Valdemar falou que, para ele, memória era algo que fazia chorar, bem ao contrário da Sr. Mandala, que pensava que memória era algo que fazia rir. Finalmente o Sr. Possante lhe contou que memória era algo que valia ouro. Também como parte da mobilização inicial para o trabalho com memórias, lemos para os alunos alguns trechos do livro “Velhos amigos”, de Ecléa Bosi. São Paulo: Companhia das Letras. Destacamos um deles a seguir, (2003, p. 11):

De onde vêm as histórias? Elas não estão escondidas como um tesouro na gruta de Aladim ou num baú que permanece no fundo do mar. Estão perto, ao alcance de sua mão. Você vai descobrir que as pessoas mais simples têm algo surpreendente a nos contar.

Quando um avô fica quietinho, com o olhar perdido no passado, não perca a ocasião. Tal como Aladim da lâmpada maravilhosa, você descobrirá os tesouros da memória. Se ter um velho amigo é bom, ter um amigo velho é ainda melhor.

A partir daí, seguiram-se várias oficinas, dentre as que mais marcaram, destaco a que propôs a realização de entrevistas com alguns idosos do bairro. Para esta atividade, preparamos em grupo um roteiro de “possíveis” perguntas e conversamos bastante sobre a atitude de respeito e atenção que eles deveriam manter durante este “bate papo”. Algumas destas entrevistas foram realizadas com os próprios vizinhos dos alunos, outras com parentes e um dos alunos chegou a realizá-la na Associação dos Aposentados do bairro. A pergunta disparadora era se eles tinham alguma foto ou objeto que os ajudavam a lembrar alguma “passagem” de sua vida na cidade de Mauá.

A orientação para prosseguirmos com os trabalhos era que as crianças deveriam escrever sobre as histórias coletadas, depois haveria uma primeira leitura dessas histórias para a sala e como última etapa do trabalho, cada aluno ou dupla deveria escrever um trecho dessas histórias em primeira pessoa e narrá- lo para a sala, como se tivessem de fato vivido aquela situação.

Eu não havia imaginado, ao propor esta situação de pesquisa, tamanho envolvimento, assim como o grau de sensibilização que a mesma causaria entre o grupo. O fato é que tivemos a oportunidade de ouvir histórias das mais diversas, desde histórias que relatavam o sofrimento pessoal de um idoso que trabalhando anos a fio em fábrica de cerâmica da cidade de Mauá, sem equipamentos de segurança adequados, encontrava-se com a saúde extremamente fragilizada; até

histórias cômicas como a do cemitério da cidade que ficou pronto, mas demorou anos a ser inaugurado por falta de óbito na cidade.

Creio que ambas as experiências, seja a proposta de escrita de Diários pessoais, como as entrevistas realizadas com os idosos, foram atividades valiosas no sentido de subsidiarem a escrita do livro de causos escritos pelos alunos.

Passamos a compreender que para escrever Memórias Literárias é preciso recuperar experiências vividas, pois, são elas que dão a sustentação ao texto escrito. Quem escreve deve desdobrar-se entre o papel de autor, narrador e personagem da história e por mais que não se pretenda a narração exata de uma dada realidade, é sempre sob o pano de fundo de um tempo histórico que essas narrativas se desenvolvem.

E que semelhanças podemos encontrar entre as Histórias de Vida como Abordagem de Pesquisa e Formação e as Memórias Literárias como Gênero Literário produzidas por um determinado grupo ou pessoa? Que tipo de relação pode ser feita?

Dentre estes aspectos, entendo que os que melhor exemplificam esta relação são oferecidos pela valorização do sujeito comum, pela recuperação da história da comunidade e pelo sentimento de pertencer a determinado lugar.

O trabalho com o gênero Memórias Literárias nos trouxe a possibilidade de atuarmos para muito além dos aspectos linguísticos, e apesar de não termos isto como claro a época, foi no decurso desta pesquisa que identificamos no trabalho com este gênero aspectos comuns à abordagem bibliográfica.

Na pesquisa, as histórias de vida do sujeito o leva à tomada de consciência, quanto suas potencialidades como ator social; na formação, é por meio da reflexão sobre suas histórias e do processo de espelhamento que são oferecidos ao sujeito a oportunidade de tomada de consciência sobre os processos vividos.

No gênero Memórias Literárias, aquele que escreve, ou seja, o escritor experiente, parece já ter, em certa medida, incorporado o valor de suas experiências para uma situação social de comunicação. São estas experiências que, servindo como base às produções literárias, nos possibilitam a identificação de um sujeito “singular plural”.

Reconsidero que ao introduzir o trabalho de escrita de causos na sala de aula, mesmo sem um objetivo consciente, explícito e declarado neste sentido, o que ocorre é uma valorização do sujeito comum, da história de um determinado grupo, que mesmo sendo único consegue, por meio das narrativas produzidas, oferecer ao leitor uma identificação (no caso) com o ambiente escolar.

Reexaminando esta história, sinto que o trabalho proposto caminhou no sentido de “autorizar as crianças” a narrarem suas histórias e assim fazendo, contribuiu, mesmo sem saber, para a inserção do grupo em uma proposta de valorização do sujeito e da sua história.

CAPÍTULO IV – A MESMA HISTÓRIA CONTADA A PARTIR DE OUTROS

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