• Nenhum resultado encontrado

3.3 – PROJETO DIDÁTICO: ESCRITA DE UM LIVRO DE CAUSOS

No documento Download/Open (páginas 65-73)

CAPÍTULO III – HISTORIANDO O PROJETO DE LEITURA E ESCRITA DESENVOLVIDO COM A 4ª SÉRIE A

3.3 – PROJETO DIDÁTICO: ESCRITA DE UM LIVRO DE CAUSOS

O projeto do livro, “Histórias hilárias de uma 4ª série”, surge no 2º semestre, em decorrência da rotina que acabo de descrever, que enfatizou ao longo do ano o trabalho com a linguagem escrita.

A escolha deste novo projeto focado em narrativas, especificamente de “causos,” se deu em função do interesse da turma por histórias do cotidiano, interesse despertado após a participação no projeto “Escrevendo o Futuro” da Fundação Itaú Social que retratava o gênero memórias e pela oportunidade que visualizei em aproveitando este interesse transformá-lo em condição facilitadora para uma boa intervenção no que diz respeito às questões ortográficas e gramaticais.

Tinha claro que neste tipo de trabalho são dois os propósitos inicialmente declarados, propósitos que se aliam em torno de uma determinada construção, preservando o interesse dos alunos e o objetivo didático do professor. O objetivo compartilhado com os alunos era a própria produção do livro; os objetivos didáticos eram facilitados durante o percurso, sendo construídos e aceitos como necessários.

Listo, a seguir, alguns dos objetivos didáticos, distinguindo-os entre práticas de escrita e práticas de leitura:

Práticas de escrita

# Utilizar recursos adequados à produção de textos narrativos;

# Utilizar expressões próprias da língua escrita e/ou manter marcas da oralidade; # Utilizar expressões que caracterizam os personagens (tipo físico e estado psicológico);

# Utilizar expressões próprias da língua escrita para a descrição de cenários e para o encadeamento de episódios do texto como os conectivos;

# Garantir a sequência dos fatos e acontecimentos ao escrever; # Sugerir e escrever listas de títulos a serem escolhidos pelo grupo;

# Acompanhar as situações de elaboração coletiva dos textos, dando ideias acerca do que escrever, do que pode ser modificado, utilizando sinais de pontuação já estudados em aula.

Práticas de leitura

Interessar-se em ler e ouvir causos em situações de leitura compartilhada; Manifestar sentimentos, experiências, ideias e opiniões, definindo preferências e critérios para selecionar o que querem;

Reconhecer algumas convenções típicas do gênero;

Identificar aspectos culturais, através da familiaridade com causos lidos e ouvidos;

Antecipar e inferir sobre o conteúdo dos textos lidos a partir dos títulos, subtítulos, imagens e capa;

Adquirir mais confiança em si mesmos como leitores, atrevendo-se a antecipar o significado dos textos lidos e preocupando-se em realizar e verificar suas antecipações;

Distinguir o que se entende e o que não se entende no texto que está sendo lido;

Utilizar recursos para compreender ou superar dificuldades de compreensão durante a leitura (pedir ajuda aos colegas ou ao professor);

Procurar compreender o significado de uma palavra desconhecida no texto, a partir do contexto e do estabelecimento de relações com o que se lê.

Com relação às etapas previstas, estas são sempre elaboradas pelo professor de forma ampla, conferindo ao trabalho intencionalidade, sem, no entanto, anular a participação dos alunos durante o processo. Ao terem clareza do que se pretende, antecipando certas passagens, os alunos se sentem respeitados e se dispõem ao trabalho, certos de que suas sugestões poderão ser, de alguma maneira, contempladas. Abaixo, também em forma de listagem, descrevo as etapas inicialmente propostas:

1. Sugerir ao grupo a escrita de um livro de “causos”, discutindo possibilidades para sua produção final;

2. Combinar com o grupo a pesquisa de materiais para o desenvolvimento do projeto, bem como comunicar aos pais o trabalho que estamos realizando;

3. Propiciar leituras e debates a respeito de causos;

4. Levantar com o grupo temas possíveis para nossas primeiras produções; 5. Dar início ao processo de produção e revisão, a princípio em pequenos

grupos com auxílio e orientação da professora e posteriormente realizar uma revisão final coletivamente;

6. Discutir a viabilidade de se produzir ilustrações para esta produção; 7. Projetar a maneira pela qual poderemos multiplicar a produção final,

através de outras cópias.

Ao sugerir este projeto ao grupo, fiquei extremamente feliz em ter acertado quanto à receptividade dos alunos. Trabalhar com projetos não era algo novo para os alunos, pois, já havíamos realizado outros no primeiro semestre e eles se mostraram empolgados com esta nova proposta.

Foram experiências ricas que nos possibilitaram conferir a satisfação de trabalhar em busca de um produto final, elaborado coletivamente. Por outro lado, também já sabíamos antever a carga suplementar de trabalho desta proposta, que

ao se pressupor democrática, tem como princípio permitir a reelaboração de suas etapas, a partir da participação ativa de seus protagonistas.

Em se tratando de um gênero pouco conhecido, também tínhamos um novo desafio: descobrir a diferença entre “causos e casos”. Não encontramos, a princípio, em nenhum dos dicionários consultados uma definição que nos contentasse, também não tivemos sucesso na coleta de matérias fora do ambiente escolar.

Após muitas dúvidas e até contradições nas definições encontradas, conseguimos encontrar uma “definição” que, de certa forma, nos satisfez a respeito da problemática levantada. Foi em um material sobre projetos, da Fundação Vale do Rio Doce/RJ – que encontramos na pesquisa da professora (cujo nome não é especificado no texto em si, apenas no índice geral), certo alento a nossa inquietação. Neste material, a professora aponta em sua justificativa que “causos” são histórias de tradição oral, transmitidas de geração em geração, podendo ser inventadas, mas também fruto de histórias verídicas. O que normalmente diferencia um causo de outro tipo de texto são as situações inusitadas que relatam.

Em conversa com o grupo, apesar da aparente aceitação, faltava-nos ainda encontrar livros do gênero, para que pudéssemos de fato compreender melhor a questão do “inusitado”.

Entre as várias leituras realizadas, destaco a de Cascudo/Contos tradicionais8 e a de um livro encontrado na própria biblioteca da escola intitulado: “Novos Causos do Correio”, organizado por Zuenir Ventura9. Fizemos várias leituras dos dois livros, comentários e relações entre as duas obras. As histórias narradas, especialmente as de Câmara Cascudo, remeteram-nos a lembranças passadas, “acho que já ouvi algo parecido” e assim por diante. Mas, é com o livro organizado por Zuenir Ventura, que a identificação do grupo é maior, creio que isto ocorreu até mesmo pela linguagem empregada. Com tais leituras, além de nos divertimos muito, o grupo passou a compreender claramente a questão do inusitado.

8 CASCUDO, Luis Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro, Ediouro, 1997. 9 VENTURA, Zuenir. Novos Causos do Correio. São Paulo, Correios, 2000.

O material do correio surgiu a partir de um concurso realizado com carteiros de todo o país e posteriormente tornou-se um livro, através da organização de Zuenir Ventura.

Após conhecer o livro dos correios, a turma se animou a escrever seus próprios “causos”, mesmo sem saber ao certo por onde começar; eles queriam fazer algo parecido, ou seja, escreverem histórias nas quais pudessem ser os protagonistas; já tinham tido, neste mesmo ano, a oportunidade de entrevistar alguns idosos do bairro e transformar estas entrevistas em histórias, como se as tivessem vivido, agora teriam a oportunidade de, quem sabe, produzirem suas próprias histórias. Por outro lado, eu já havia solicitado uma pesquisa sobre causos e tinha como ideia aproveitar o material coletado junto às famílias para a elaboração do nosso livro.

Quanto a escrever seus próprios “causos”, sugeri que assim como os carteiros, eles tentassem resgatar fatos interessantes ocorridos ao longo do ano de 2006, na E.E. Iracema de Barros Bertolaso; assim teríamos um ponto de partida. Eles adoraram a idéia; no entanto, ainda tínhamos de decidir o que fazer com os “causos” pesquisados, pois, já havíamos realizado várias leituras e era consenso na turma que muitas histórias pesquisadas eram boas e neste caso, seria um desperdício não as aproveitar.

Bem, como sempre ocorre no decurso de um projeto, tínhamos várias ideias que precisariam ser debatidas, a fim de tornar o produto final algo realmente compartilhado e não imposto - o que definitivamente não combina com a proposta de projeto. Ao sugerir, devido ao tempo de que dispúnhamos e do meu entendimento de que o livro deveria ser uma coisa ou outra, ou seja, narrar histórias da escola ou histórias contadas por seus pais, eis que surge nosso primeiro embate.

Com o argumento principal de que alguns de meus livros traziam a possibilidade da divisão em blocos para histórias diferentes, eles me convenceram a incluir no livro as duas produções: os causos vivenciados e os causos pesquisados em família por eles.

Inicialmente, partindo de nossas conversas, fomos organizando possíveis títulos para as histórias a serem escritas em sala.

Para a elaboração destes textos, a sala foi dividida em pequenos grupos, e estes escolhiam o tema que mais lhes interessava, para ser escrito. Por incrível que pareça, esta escolha foi tranquila, pois era fácil encontrar nos grupos pelo menos uma criança que fora protagonista de uma destas histórias, e quando não havia nenhuma, ainda restava a possibilidade de escrever sobre os “micos” da professora.

Todos sabiam, desde o início, que faríamos várias revisões em grupo para que as histórias ficassem bem interessantes. Como de costume, escolhemos quem seria o escriba, quem faria as inscrições, evitando que todos dessem ideias ao mesmo tempo e ainda um último elemento que, de certa forma, coordenasse o grupo, chamando o grupo à responsabilidade, cuidando para que fossem poucas as dispersões, bagunças, etc.

Enquanto produziam, eu caminhava pelos grupos acompanhando e fazendo questionamentos acerca das histórias. Neste primeiro momento, minha intenção era explorar as ideias que iriam para o papel, sugerir que “recheassem” os textos, levando o grupo à autocrítica, fazendo-os pensar se a história que estavam escrevendo estava se tornando realmente interessante, do ponto de vista de quem lê. Este trabalho foi realizado durante aproximadamente três semanas.

Alguns grupos precisariam, no entanto, de muito mais do que três semanas para melhorar seus enredos. O que nos levou a pensar em outra estratégia a ser utilizada posteriormente - uma reelaboração coletiva, na qual eu sugeria alterações (grifando partes do texto), que poderiam ser melhoradas, solicitando então uma intervenção colaborativa de toda a sala. Valendo-me de algumas escritas, às quais considerei como “boas”, começamos paralelamente um trabalho de revisão gramatical e ortográfico, primeiro dos próprios grupos e depois estendida a toda a sala.

Apesar de bem trabalhoso e produtivo, temos certeza de que muitos aspectos passaram despercebidos, o que de certa maneira deve ser compreendido como algo natural em um processo de escrita, onde a revisão nunca é finita.

Com relação aos “causos” escritos em sala, conseguimos à custa de muito trabalho escrevê-los e revisá-los, porém quanto aos causos pesquisados, seria impossível revisá-los em tão pouco tempo. Então, escrevi um bilhete aos pais

cujos filhos tiveram os causos selecionados para que os ajudassem neste trabalho.

Um sinal de ingenuidade de minha parte, porque apenas dois causos voltaram revisados. Eu havia desconsiderado que muitos daqueles pais, mesmo que envolvidos com o trabalho, não tinham a mínima condição de ajudar. No entanto, para minha satisfação, no dia 13 de novembro, em um curso sobre linguagem escrita, oferecido pela Diretoria de Ensino de Mauá, do qual fazia parte, abordou-se justamente o tema revisão. Nesta aula, discutimos a proposta do professor Arthur Gomes de Moraes10 que sugere novas propostas no trato

gramatical e ortográfico. Em sala de aula, a partir daí selecionei nestes últimos textos os erros mais cometidos, realizando com a sala o “ditado interativo” e a “releitura com focalização” e a “refacção”, propostas sugeridas pelo autor estudado. Esta proposta nos deu condições de revisar, coletivamente, os textos pesquisados.

A sala tinha uma outra característica importante e que fora fundamental a este trabalho, as crianças adoravam desenhar e o faziam muito bem, creio até que este fato seja reflexo do trabalho de bons professores de Arte que tiveram, entre os quais gostaria de destacar a figura do professor Ronaldo Batista Moraes, responsável pela ONG “Quartun Crescente” - Mauá, espaço frequentado, pelo menos, por dois de meus alunos. Porém, para incluirmos as ilustrações neste projeto, novamente chocávamos com a questão do tempo, apesar de esta etapa estar prevista e de compreendermos que excluí-la neste momento, seria além de desestimulador, uma total falta de respeito com os alunos; ao considerá-la, mais um desafio estava posto. Ignorá-lo, neste momento, poderia ter sido um dos meus maiores equívocos, e lá se foi mais uma semana para as produções e votações dos desenhos que fariam corpo à obra. Fui novamente voto vencido, ao propor que cada história tivesse apenas uma ilustração; no trabalho final, devido às votações, algumas histórias terminaram com duas e até três ilustrações.

Por fim, nos concentramos nos acertos finais, como capa, números de páginas, dedicatória, glossário (ideia dos alunos) e agradecimentos. Com exceção da dedicatória, que fora escrita por uma professora e a apresentação escrita por

10 O conteúdo em questão pode ser consultado em: MORAES, Artur Gomes de. Ortografia: ensinar e aprender: São Paulo, Ática, 2002.

um poeta da cidade, ambos escolhidos pelo próprio grupo, estas últimas etapas foram executadas na penúltima semana de aula.

Creio que trabalhamos o tempo todo com possibilidades, que não se esgotam em uma aula, em um conteúdo, em um dia, em um produto final; o resultado desta ação se dará daqui alguns anos; tenho apenas como certo que uma prática que procura ouvir, respeitar e levar ao educando novas formas de trabalho é, sem dúvida, uma ação que ficará marcada como algo positivo no processo educativo das crianças.

Como uma das últimas etapas deste processo, tivemos a honra de receber em nossa escola alguns escritores do município de Mauá, participantes ativos do grupo de poetas da Taba de Corumbé11, dentre os quais, destaco a figura de Aristides Theodoro, o qual (me arrisco a dizer) demonstrou ser o mais empolgado com o trabalho destes jovens escritores, comprometendo-se, inclusive, a escrever a “orelha” do livro, caso conseguíssemos patrocínio para editá-lo.

11 Corumbê: é uma corruptela de karumbe, o significado é o nome genérico para jabuti, tartaruga, cágado, etc. Segundo os integrantes da “TABA” o nome foi escolhido como forma de lidar de maneira bem humorada, mas também crítica, com o jargão preconceituoso e bem conhecido na região do ABC, que diz que em Mauá só há índios.

Foto 3

Legenda:

No documento Download/Open (páginas 65-73)