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2. Guerrilha: substantivo feminino

2.3. Guerrilha: vozes femininas

2.3.2. Memórias subterrânea: prisão e tortura

As torturas durante o regime militar brasileiro (1964-1985) continham alto grau de sadismo e crueldade. Muitas eram as “técnicas” utilizadas para imprimir na vítima sofrimento, dor e humilhação. Havia, no Brasil, um “método científico” de tortura, incluído no currículo de formação militar. No ensino prático desse método, os moradores de rua e presos políticos236 eram usados como cobaias humanas nesse aprendizado.

A partir de 1968, com o AI-5, a tortura passou a ser amplamente utilizada para obter confissões e delações de pessoas envolvidas na subversão. O ano de 1969 foi o período de intensificação da tortura e também de fortalecimento dos movimentos de guerrilha. Não é a intenção, aqui, no entanto, analisar-se em profundidade a tortura. Pretende-se no entanto apresentá-la como sintoma traumático da memória das guerrilhas.

É impossível falar da memória das guerrilhas sem entrar na questão que envolve prisão e tortura. A leitura de gênero evidencia a tortura sexual, física ou psicológica sofrida pelas prisioneiras a partir da visão machista dos militares e torturadores. As mulheres que atuaram ativamente na resistência à ditadura tinham o comportamento desviante da mulher comum à sua época, o que tornava ainda mais acirrada a questão de gênero na prática da tortura, conforme depoimento de Criméia:

Todos esses preconceitos com relação à mulher, mulher é mais fraca, mulher fede, mulher menstrua, mulher fica barriguda grávida, como era o meu caso. Todos esses preconceitos, pra eles, gravidez era uma deformidade, tudo isso aparece, é usado contra a gente. É claro que, para os homens, eles devem ter também usado uma série de outros preconceitos, principalmente os homofóbicos, né, mas com a gente isso aparece muito claro.237

Bourdieu lembra que na tortura a feminilização é usada para humilhar os homens, com “deboches a respeito de sua virilidade, acusações de homossexualidade ou, simplesmente, a necessidade de se conduzir com eles como se fossem mulheres”,238 no sentido de expô-los à humilhação e subordinação. Rosalina, em seu depoimento, também ressalta a diferença de gênero na prisão e na tortura. Assim como Criméia, ela especula

236 Dulce Chaves Panolf foi um exemplo de presa política utilizada como cobaia em sala de aula, de acordo

com petição anexada nos autos, em 1970 (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 2009, p. 30; BNM, n. 22, v. 1º, p. 351).

237 ALMEIDA, Depoimento, 2014.

238 BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina: a condição feminina e a violência simbólica. Rio de

sobre o sofrimento masculino, relacionando-o ao machismo, a homofobia e como isso pode ser um assunto velado nos depoimentos dos homens. Seguem as palavras de Rosalina:

Não sei se é mais fácil ou mais difícil. Às vezes, tenho pensado que talvez para os homens seja mais difícil. Não sei se todas as mulheres pensam, mas às vezes eu penso isso, porque eu acho assim. Primeiro, quando nós fomos presos, no Brasil todo, não havia torturadora mulher, nunca ouvi falar, nem de homem nem de mulher que fosse torturado por mulher. Mulher estava na hora da campana, na hora da prisão, na da tortura era homem.

Então eu acho que a relação homem e mulher é muito presente na tortura. Eu acho que a relação de um homem e uma mulher na tortura tem várias questões, primeiro que você está vivendo uma relação onde o seu torturador faz a figura do seu pai, do seu marido não é, o teu irmão, dos homens teus, que ele é o homem que te tortura e ele usa tudo isso. Ele usa o corpo, porque estamos sempre nuas, como uma forma de você ter essa relação de agredir ou de seduzir, mas eu acho que isso, para o homem, eu tenho visto os homens contarem as questões de tortura, todos, acho difícil, eu não vi nenhum homem que contasse que foi estuprado. Eu acho que se eles estupravam mulheres, eles estupravam os homens, um homem estuprava um homem. Quando um amigo meu, essas semanas aí, contou que, quando ele foi preso, os caras mijaram na cara dele, aí eu disse: “Mijaram, mas não esfregaram o pinto na sua boca, na sua cara? Não botaram...”. Porque as pessoas que contam de estupro é assim, que teve o ânus queimado pela vela, teve o ânus empalado com o cassetete, como o Mario Alves. Por que não punham o pênis nesses homens, se isso os humilharia mais ainda? Pegava um sargento do exército, um cara da polícia militar, um companheiro que está lá, como muitos, com militância de esquerda. Um sargento, que foi violentado, que foi morto, diz que teve o ânus queimado por vela, e por que não estupravam? Eram estuprados. Estupravam mesmo, nós [mulheres] era mais perigoso porque engravidávamos, isso causaria, entenda como quiser.239

Rosalina não foi estuprada, mas foi torturada sexualmente, tendo sido mantida nua o tempo todo:

Me punham para andar no quartel, teve uma hora que me puseram quase que como se fosse um corredor polonês, todo mundo gritando: “Que mulher magra! Como não tem peito! Onde é que está a bunda dela?”. Isso tudo é uma coisa de muito, pra algumas pessoas, insuportável, pra mim suportável, não tinha grandes problemas naquela época com o meu corpo. Claro que ficava muito emputecida, com raiva daquilo, mas suportável, mais do que o choque elétrico, com fio na sua vagina, com

fio no seu peito. Me lembro que a coisa, eu acho, que sexualmente mais complicada, foi o dia em que eu estava no Dops em Niterói.240

Criméia também traz em sua memória a questão da nudez como forma de tortura e humilhação:

Nua, o interrogatório era sempre nua. E uma das coisas que eu me recusava era tirar a roupa, então eles me arrancavam a roupa, porque eles até queriam que a gente tirasse a roupa, para humilhar bastante. Então, com isso, as minhas roupas eram todas rasgadas, porque eles arrancavam violentamente, cada dia tinha um botão a menos, uma costura a menos, você ficava se ajeitando, [...] o que me segurou muito foi a raiva que eu tinha deles. Isso me segurou. Porque aí, como eles tiravam a roupa, é muito constrangedor, você na frente de estranhos, de inimigos, não é só estranhos... se eu estivesse nua no meio da rua me sentiria melhor. E eu custei para sentir isso, não vou sentir, então eu cruzava as minhas perninhas, cruzava os meus bracinhos, o objetivo era tampar os peitos e a bunda, sentada e ficava como uma lady, assim, “sim, senhor, não...” De vez em quando, eles te arrancam dali, tiram a cadeira, você tem que ficar de pé, daí você encosta na parede, você tenta se cobrir, porque é muito constrangedor, agora o objetivo deles é te constranger, e se o objetivo é esse, eu vou ficar que nem uma lady aqui, como se eu estivesse no salão de festas, não vou me derrubar por isso.241

Criméia também afirma não ter sido vítima de estupro, além de ser poupada de algumas torturas por estar grávida. Entretanto, se por um lado a maternidade a livrou do estupro, dos choques e outras torturas físicas, a tortura psicológica foi intensa. Os ataques físicos dos quais Criméia foi poupada foram transferidos para sua irmã, Amelinha, conforme documento do Dops, de 7 de março de 1973:

Presos na OBAN: [...] De início torturaram o César Augusto, e ele quase morre por estar doente, e pararam de torturar. E como a Cremilda [sic] está grávida, M. Amélia está sendo a mais torturada. Eles perguntam muito a respeito da irmã e do marido dela, mas ela disse que está tranquila, pois não sabe nada a respeito dos dois. SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA, DEPENDÊNCIA: DELEGACIA ESPECIALIZADA DE ORDEM SOCIAL-DOPS.242

Sobre seu sofrimento nos porões da ditadura Amelinha relata a humilhação, nudez e violência física a qual foi submetida:

240 Ibid. Na última frase, refere-se ao episódio onde apanhou após informar suspeita de gravidez, conforme

depoimento apresentado no capítulo anterior.

241 ALMEIDA, 2009 apud RAGO, 2010, p. 170. 242 BRASIL NUNCA MAIS apud RAGO, 2010, p. 169.

Quando eu vou me dirigir ao comandante, que na época era o Comandante Carlos Alberto Brilhante Ulstra [...], ele já: “Foda-se sua terrorista”. E me dá um tapa com as costas da mão, mas com tamanha força que me joga no chão. Aí eu já começo a ser arrastada pelo corredor [...], e já arrancam a roupa, a primeira coisa que eles fazem é arrancar a roupa e fazer comentários sobre o corpo da mulher. [...] nos homens também [...], a tortura está presente nos homens e nas mulheres. E tem a questão da maternidade, quantas vezes eles falaram para mim que a minha filha estava morta, que ela estava dentro do caixão, “sua filha Janaina está dentro do caixãozinho”, eles falaram para mim, o César não lembra de terem falado isso para ele. [...] me deram um papel, que iam fazer um aborto na Criméia e que eu era a responsável [...] eu falei: “não assino de jeito nenhum, vocês fazem o que vocês quiserem comigo, mas eu não assino”.243

Rosalina foi torturada por 52 dias e perdeu 14 quilos. Seu depoimento apresenta a perplexidade da tortura psicológica e como foi subjugada, não tendo controle da própria vida:

Eu acho que uma das coisas difíceis são os momentos de tortura psicológica, que é essa tortura que você vai perdendo a noção de tempo. Eu acho, pra mim houve um enlouquecimento, você sentir que você não tem domínio, né [...]. Eu lembro do dia em que eu quis muito morrer. Eu não aguentava, então pedia a ele: “Me mata. Não estou querendo, mas não aguento, então me mate”. E ele diz: “Eu não lhe mato, eu lhe mato quando eu quiser e se eu quiser. Eu te mato, mas quando eu quiser. Vou te fazer em pedacinhos, pelo tempo que eu quiser”. Quer dizer, isso é o absoluto poder do torturador sobre você, sobre sua vontade, seu desejo, sobre seu corpo. Eu acho também que isso é de homens e mulheres.244

A temática da violência associada à memória oral apresenta-se como um desafio difícil de ser superado. “Como trabalhar com o testemunho pós-traumático sem ‘explorar’ a dor, sem reificar o sofrimento, escapando da vitimização e da heroicização do depoente?”245 Jessie Jane, em seu testemunho, tenta justamente se distanciar da posição de vítima:

Aí é a coisa da violência do sistema. Então vivi muito essa coisa... Da tortura. De acompanhar as pessoas que foram presas, lá em casa se falava muito disso. Não é que eu tenha vivido isso tranquila. Mas sabe, eu distingui muito esse troço. Não ter um pouco de vitimização nessa vivência. Mas eu acho que tem muito dessa coisa, que é uma coisa da

243 TELES, Depoimento, 2014. 244 LEITE, Depoimento, 2014. 245 ARAÚJO, 2012, p. 78.

classe média. É uma violência muito cultural, mas que se abateu sobre nós, mas ela sempre esteve presente. Sempre se abateu sobre os pobres no Brasil, não é uma coisa só nossa. E acho que esse pessoal viveu muito isso de uma forma vitimizadora.246

A formulação do questionário de entrevistas não deu ênfase à questão da tortura, com o intuito de privar o depoente de reviver essa dor, portanto, torna-se difícil uma análise ampla e profunda do assunto. Entretanto, os relatos de dor e sofrimento específicos da condição feminina impostos pela tortura apareceram em quase todos os depoimentos, o que tornou impossível não dedicar algumas páginas dessa dissertação à memória desse momento traumático.