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CAPÍTULO 1- Introdução ao Tema de Pesquisa

1.5 Messianismo e Santo Daime - A Nova Jerusalém

Uma questão muito associada ao Padrinho Sebastião é o messianismo. O Padrinho afirmou diversas vezes que o mundo estaria na iminência de passar por um sério “balanço”, onde quem não estivesse vivendo em profundo contato com Deus e com a natureza passaria por muito sofrimento e todos testemunhariam drásticas mudanças na Terra.

Em nossa dissertação, formulamos o conceito de teoecologia, ou seja, uma noção de sagrado vinculada à natureza, muito presente no Santo Daime. Muitos autores, sobretudo antropólogos, apontam para uma herança das crenças xamânicas do Alto Amazonas, que consideram sagrados o Sol, a Lua, as Estrelas, as águas e a floresta.

É relevante assinalar que a floresta, os rios, o mar e todos os elementos naturais estão muito presentes também no conteúdo dos hinos. Surge aí o que se pode chamar de teoecologia, uma concepção que vê o religioso aliado à natureza e preocupado com sua preservação, já que nela estão contidos os mistérios e ensinamentos do Daime. O conceito

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de teoecologia parte do ponto de vista de que a natureza, além de imprescindível para a sobrevivência do homem, é uma fonte inesgotável de cura e de ensinamentos.

O que se observa no Santo Daime, desde seu início, são constantes menções e louvores à natureza, relacionando estes elementos a figuras do catolicismo popular nordestino e as crenças do caboclo amazônico. Há numerosos hinos do Mestre Irineu e de seus seguidores, inclusive do Pd. Sebastião, que relacionam a Lua à N.Sra. da Conceição e Jesus Cristo ao Sol. Segundo o líder daimista e psicólogo Paulo Roberto:

(...) isso dá à Doutrina um aspecto ecológico, porque a Virgem deixou de ser uma estátua dentro da igreja e voltou a ser a Mãe Terra. (...) Ele (Irineu) cristianizou a doutrina, sem anular absolutamente os valores anteriores. Isso ninguém tinha feito. Ao invés de negar o culto ao Sol, ele o enfatizou dizendo “Jesus Cristo está no Sol. O Sol é Jesus”.(...) Assim como Cristo não negou o Velho Testamento (...) O M. Irineu não negou toda esta parte pré-cristã da Doutrina, sua tradição inca. (Revista do 1º Centenário do Mestre Imperador Raimundo Irineu Serra, 1992 pg 43) Há tanto entre daimistas rurais quanto urbanos constantes referências a um “fim dos tempos”, ou, para usar a expressão nativa, um forte “balanço” pelo qual o planeta Terra está prestes a passar. É interessante notar que o discurso ecológico assumido pelos daimistas a partir da década de 70-80 é muitas vezes atravessado pelas constantes menções a este

“balanço”, que é entendido geralmente como um período conturbado fruto da ação desequilibrada do homem sobre a natureza e em relação a seus semelhantes: o desmatamento, o aquecimento global, a ameaça de falta de água e os conflitos urbanos e escalada da violência seriam precisamente sintomas desse apocalipse, após o qual bem poucos vão sobreviver. Vamos examinar um pouco o que vem a ser messianismo e nos deter adiante no caso específico do Santo Daime.

Consideramos relevante discutir brevemente as características messiânicas do Daime pois esta concepção religiosa, em nossa opinião, revela um forte elo entre a doutrina, suas práticas religiosas e laicas relacionadas à natureza e a religiosidade nordestina. Segundo o líder daimista e escritor Alex Polari, o fato da doutrina daimista ter se difundido pelos grandes centros urbanos não apresentou um rompimento com a linha do Mestre, mas uma reforma em que determinadas características são acentuadas:

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A própria trajetória do Pd. Sebastião, um dos principais galhos brotados do tronco original do M. Irineu, confirma em certo sentido esta regra. Na medida em que sua “reforma” ou evolução da tradição doutrinária, (comunidade, expansão planetária da doutrina, ênfase messiânica e aceitação de outras plantas sagradas) (grifo meu) não puderam ser absorvidas pelos mecanismos institucionais que sobreviveram ao Mestre fundador, foi ele obrigado a ser protagonista de certas mutações e evoluções. (ALVERGA,1992, p.103)

Podemos considerar que os daimistas possuem fortes traços de messianismo em suas concepções religiosas. Existem constantes menções à idéia de que Cristo teria voltado novamente a Terra, mas desta vez sob forma vegetal, presente no chá, a fim de trazer diretamente aos adeptos Suas mensagens. Entendemos o messianismo aqui segundo a definição de Norman Cohn (1980): cristãos que esperam uma segunda vinda de Cristo, acompanhada de um “fim dos tempos”- o milenarismo, onde alguns seriam salvos e outros tantos condenados (no caso do messianismo cristão, os que seguem os ideais de pureza, humildade e retidão – em muitos casos, também de pobreza). Ele aponta as seguintes características para o milenarismo:

- a salvação seria coletiva, extensiva aos fiéis daquela seita ou movimento;

- terrena, pois realizar-se- à na Terra e não num mundo além;

- iminente, pois a idéia aqui é que não falta muito para o fim dos tempos;

- total, transformando completamente a vida na Terra, onde uma organização perfeita será instaurada;

- miraculosa, na medida em que deverá ser realizada ou ajudada por seres sobrenaturais;

Embora o estudo deste autor trate de seitas e movimentos surgidos entre os pobres da Europa medieval dos séculos XI a XVI, a noção ampla de milenarismo não se mantém circunscrita à Europa Medieval.

Os milenaristas medievais consideravam o mundo e a realidade objetiva associados à corrupção e ilusão, e pregavam a humildade, a simplicidade, a fraternidade e a pobreza.Inspirados nestes ideais, surgiram irmandades que freqüentemente se colocavam- ou eram colocadas- à margem da estrutura social. O antropólogo Victor Turner (1974) propôs a idéia de “communitas”:

A “communitas” irrompe nos interstícios da estrutura, na liminaridade,

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nas bordas da estrutura, na marginalidade; e por baixo da estrutura, na inferioridade. Em quase toda parte a “communitas” é considerada sagrada ou “santificada”, possivelmente porque transgride ou anula as normas que governam as relações estruturadas e institucionalizadas, sendo acompanhada por experiência de um poderio sem precedentes.

(TURNER, 1974 p.156)

Podemos considerar que as construções sociais e culturais daimistas se alinham a esta idéia de “communitas” de maneiras diferentes ao longo da história da doutrina. Em vários momentos, começando pelos seringueiros nordestinos/amazônicos seguidores do Mestre Irineu e seguindo adiante com a comunidade do Mapiá criada pelo Pd. Sebastião (que sofreu profunda influência dos hippies brasileiros e pessoas oriundas dos movimentos esquerdistas da década de 70) nota-se uma liminaridade e inferioridade estrutural que se une a modelos culturais utópicos e igualitários, tanto no âmbito religioso quanto secular:

Mantém-se uma conexão bastante regular entre liminaridade, inferioridade estrutural, a mais baixa posição social e estrangeirice estrutural, de um lado, e de outro, valores humanos universais, como paz, harmonia entre os homens, fecundidade, saúde do espírito e do corpo, justiça universal, camaradagem e fraternidade (...) tem especial importância a permanente conexão entre igualdade e ausência de propriedade. (TURNER, 1974 pg 163,164)

Turner propôs que a liminaridade e a marginalidade social são condições que freqüentemente geram mitos, símbolos rituais, sistemas filosóficos e obras de arte, o que permite aos indivíduos envolvidos nesta experiência modelo construir reclassificações periódicas da realidade e do relacionamento do homem com a sociedade, com a natureza e a cultura. É preciso notar que aí temos mais que reclassificações puramente subjetivas, uma vez estas impulsionam os indivíduos ao pensamento e à ação.

Embora a História do Santo Daime ateste que Irineu Serra agregou várias famílias de seguidores em torno de si, foi com o Pd. Sebastião que essa tendência comunitária se intensificou, bem como a idéia de unir pessoas que seguissem os ensinamentos contidos nos hinos.

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Fig. 10 Igreja do Céu do Mapiá em dia de Hinário. Fonte: www.santodaime.org . Acesso em 02 out. 2008

A idéia de unir um povo que vivesse na prática os ensinamentos daimistas articula-se à idéia de que este povo deveria articula-se preparar para o “balanço”, entendido como um período em que a humanidade atravessaria graves dificuldades e tormentos, ou até uma extinção em massa. Não é por acaso que o segundo hinário de Sebastião, iniciado por volta de 1979, quando a proposta comunitária estava a pleno vapor, chama-se “Nova Jerusalém”

e inicia-se com uma citação do Apocalipse, 21:2,3.

O messianismo neste caso pode estar ligado aos fortes vínculos entre o Daime e o catolicismo popular nordestino, o qual possui fortes traços messiânicos. Padrinho Paulo Roberto, em seu depoimento, afirmou que quando o Daime foi perseguido pelas autoridades brasileiras na década de 70: “Ele8 me mostrou um telex do Abi-Ackel- Ministro da Justiça do governo Figueiredo -pedindo soluções globais sobre o “problema”. Eles

8 A referência aqui é ao Coronel Guarino, responsável pela investigação policial feita contra o Daime na década de 70. Foi nesse ponto que os daimistas conseguiram convencer as autoridades que deveria ser feito um estudo científico sobre o Daime e a doutrina, e não uma investigação policial. Isso gerou, mais tarde, uma comissão mista formada por policiais, médicos e antropólogos que acabou resultando no relatório do CONFEN favorável ao Daime.

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tinham um medo enorme que o Padrinho fosse um novo Antonio Conselheiro, que quisesse sublevar a população.” . (REVISTA DO CENTENÁRIO, 1992, pg 45). Também não é por acaso que o segundo hinário do Pd. Alfredo, iniciado em pleno movimento de expansão da doutrina, chame-se “Nova Era”.

Embora a data prevista para este “balanço” tenha sido o ano 2000, as crenças daimistas não se enfraqueceram. Os hinos recebidos recentemente por alguns líderes continuam a mencioná-lo, e as práticas de preservação ecológica dos adeptos estão muito ligadas à idéia de que em breve, haverá uma generalizada falta de água e recursos naturais, trazendo tempos difíceis para os habitantes do planeta Terra.

Segundo Cohn, o messianismo é característico de momentos de crise social, quando as estruturas e instituições se mostram incapazes de prover segurança à população. Na atualidade, tal como foi apontado por Soares (1994), o questionamento às instituições e às respostas fornecidas pela ciência geraram um contingente de “buscadores” que procuram na natureza e em culturas “antigas” e/ou “arcaicas” as respostas que a religião tradicional e o sistema capitalista são incapazes de fornecer.

A crença de que haverá em breve uma mudança radical que afetará todos os habitantes do planeta Terra é justificada pelos daimistas por uma frase atribuída ao M.

Irineu, que teria dito ao Pd. Sebastião de que “só os que estivessem segurando nos raminhos verdes iriam se salvar”, e há também menções a uma miração de Sebastião em que ele sobrevoava o planeta e via tudo queimado, menos um pedacinho de floresta com a comunidade daimista.

Esta crença no balanço (no sentido de crise social e ecológica) permaneceu no Santo Daime e ainda é defendida de forma mais ou menos rigorosa entre as lideranças daimistas e fardados em geral. No entanto, é preciso ressaltar que as advertências são feitas em geral com o objetivo de fazer as pessoas mudarem atitudes e hábitos pessoais nocivos (não condizentes com a doutrina). Não há em geral uma orientação no sentido de que o grupo deve fazer algo em relação ao fim dos tempos. Há uma ênfase em relação à transformação pessoal que deve ser empreendida para que todos e cada um possam ser “merecedores”de fazer parte no “Novo Povo”, da “nova Era” que se avizinha.

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Note-se que a questão do messianismo é também um tópico pouco pesquisado considerando o que já foi produzido sobre as religiões ayahuasqueiras. Uma boa possibilidade de abordagem envolveria uma pesquisa sobre a menção a este tema dentro dos hinos e possivelmente também através de entrevistas.

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