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CAPÍTULO 1- Introdução ao Tema de Pesquisa

1.7 Santo Daime e religiosidade antropofágica brasileira

Seja em artigos científicos ou reportagens divulgadas na mídia, a questão do sincretismo no Santo Daime sempre chama a atenção. Reportagens e opiniões mais superficiais sobre o Daime ressaltam este elemento “exótico”, e por vezes surge o comentário de que “esta religião é uma colcha de retalhos”, entre os que não conhecem mais a fundo a questão. Os relatos sobre a união entre as culturas “branca, indígena e negra” presentes no panteão daimista também fazem parte do discurso dos fardados da doutrina, que consideram esta “soma” um elemento que enriquece a doutrina.

No Daime se defende um “ecletismo evolutivo”, onde vários seres são louvados e cultuados, mas se encontram sob o comando de Jesus Cristo e da Virgem da Conceição. O contato com estes seres divinos acontece dentro da miração e é mencionado abundantemente nos hinos da doutrina.

Uma vez que no Daime esse ecletismo/sincretismo apresenta características diferentes em relação às religiões afro-brasileiras, consideramos oportuno realizar uma breve revisão sobre a questão do sincretismo, extensamente analisado pelas escolas antropológicas.

A discussão sobre o conceito de sincretismo é longa, e foi muito enriquecida com as pesquisas sobre a religiosidade brasileira. Cientistas Sociais de primeira linha, como Levi Strauss, Roger Bastide e Gilberto Freire abordaram o sincretismo e suas relações com a cultura e as relações de poder no Brasil.

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A partir da pesquisa bibliográfica, observamos que grande parte das discussões no que toca às formas de sincretismo no Brasil dizem respeito às diversas formas de prática religiosa envolvendo o catolicismo e as religiões de matriz africana, como por exemplo os candomblés da Bahia, os Xangôs de Pernambuco, e a Casa de Minas do Maranhão. Mais recentemente este assunto é mencionado também quando se fala da Umbanda e da crescente inserção do kardecismo nos afro-brasileiros.

O assunto é controverso mesmo dentro da antropologia, e consultamos alguns autores que tratam deste conceito sem chegar a uma formulação única. Segundo um dos autores consultados:

Apesar de abordado e de ser muito encontrado na realidade, nota-se que existe certo tabu contra este fenômeno. Parece que se procura negá-lo ou ocultá-lo, embora se reconheça que todas as religiões são sincréticas. O sincretismo é um tema confuso, contraditório e ambíguo. Muitos não gostam, recusam-se a abordá-lo e evitam mesmo o uso da palavra.

(FERRETI, 1995, p.87)

A tendência de discussão mais recente, segundo o autor, surgiu a partir da década de 80 e procura estudar alguns aspectos específicos do sincretismo: critica a noção de sincretismo como estratégia de resistência e também a idéia de uma justaposição de elementos religiosos, porque o que se verifica é que muitas religiões tem seus aspectos sincréticos bem integrados, não funcionando como bricolagens ou colchas de retalhos, tal como foi defendido por alguns antropólogos, dentre os quais Levi Strauss.

A questão é que o conceito sincretismo parece estar sempre ligado ao corpo de idéias e teorias professadas por diferentes escolas antropológicas:

O evolucionismo viu o sincretismo como ilusão da catequese. Na teoria culturalista, o sincretismo foi estudado através de conceitos antropológicos como aculturação, neocultaração,transculturação e reinterpretação. Cada conceito pretende esclarecer ou ampliar a análise do fenômeno. Em substituição a estes, Bastide propôs o princípio de fusão.

Utilizou também o conceito de “bricolagem” proposto por Lévi Strauss. O uso destes diversos conceitos caracteriza exames do fenômeno em diferentes perspectivas teóricas.(FERRETTI, 1995,p.88-89)

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Há também uma abordagem que procura analisar o sincretismo numa perspectiva dualista, procurando colocar pureza versus mistura, ou fusão versus separação.

Consideramos esta abordagem equivocada e particularmente ineficaz se formos pensar em religiões. Afinal, nossa posição teórica compreende as religiões como construções sociais vivas, numa dinâmica de perpétua mudança, assimilando determinados conceitos e práticas e deixando outros caírem no esquecimento.

As religiões populares brasileiras parecem ser particularmente “antropofágicas”, pois mostram uma extraordinária capacidade de incorporar novos conceitos a seus ethos, crenças e práticas e integrá-los com grande “naturalidade”. A lógica das religiões parece girar em torno de uma noção de eficácia (no sentido de que se algo funcionar para um determinado grupo, progressivamente será aceito) e eliminação de contradições. Aparam-se as “arestas” da nova prática ou conceito, e com o tempo temos a impressão de que ela sempre fez parte daquela religião.

É claro que não podemos nunca generalizar demasiadamente. Sabemos que existem religiões mais rígidas, onde uma nova prática ou um novo credo depende de uma série de concílios, debates, e discussões que podem durar décadas ou mesmo séculos. No entanto, as formas populares de credo religioso no Brasil parecem seguir, em sua maioria, essa dinâmica de transformação, assimilação, acordo, confluência e união.

Voltando nossa atenção aos estudos sobre os sincretismos brasileiros, percebemos que a maioria das pesquisas consultadas tratou das religiões de matriz africana. Tais religiões cultuam os orixás, encantados, inkisses, voduns, antepassados e espíritos de pessoas que se “encantaram” (caboclos, pretos-velhos, etc) e tem a incorporação como ponto central de seu culto.

Ferretti (1995) também considerou que o sincretismo das religiões afro-brasileiras presentes no Norte do Brasil assume algumas peculiaridades. O autor não cita pesquisas sobre as religiões ayahuasqueiras, limitando-se a comentar sobre alguns estudos sobre cultos no Pará, que apresenta uma realidade sócio-histórica e geográfica diferente do Acre, berço do Santo Daime e da Barquinha. Percebemos em comum a menção à forte presença do caboclo divinizado, “encantado”, e da influência ameríndia presente nos cultos afro-brasileiros:

Na região Norte, como vimos, o sincretismo tem sido apontado como

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fenômeno importante. Estudiosos procuram analisar a religiosidade popular do caboclo da Amazônia, assinalando o predomínio da pajelança ameríndia. Assinalam que no Pará o batuque é extremamente eclético, com o processo de sincretização muito avançado. (FERRETTI,1995,p.89)

Temos conhecimento de que o conceito de ecletismo, que poderia se apresentar como uma alternativa ao polêmico conceito de sincretismo, também é alvo de objeções.

Muitos pesquisadores (dentre eles o próprio Ferretti) e teóricos definem ecletismo como uma mistura sem critério de elementos conflitantes, sem coerência.

No entanto, os pesquisadores das religiões ayahuasqueiras adotaram este termo para abordar a presença de diversas linhas religiosas presentes e aceitas dentro da doutrina daimista. Longe de tornar o Daime uma colcha de retalhos sem nexo ou sentido, o ecletismo é descrito como uma abertura da doutrina para que diversos conceitos e elementos estejam presentes e convivam em harmonia com os preceitos daimistas aceitos anteriormente. Groisman (1995) chama esse movimento próprio da doutrina de

“aglutinação e organização criativa”.

A própria História da criação da doutrina parece mostrar que o Daime já nasceu sincretizado, ou eclético: Irineu Serra tomou a ayahuasca com um xamã da Amazônia Peruana, e teve uma série de mirações com uma senhora sentada na Lua. Essa senhora se apresentou como Clara, segundo alguns relatos, e como Rainha da Floresta, em outros relatos igualmente aceitos e que fazem parte da memória social daimista. Mais tarde, essa senhora se revelou como N. Sra. da Conceição.

A “senhora sentada na Lua”, “Rainha da Floresta”, remete à espiritualidade ameríndia, que diviniza o Sol, a Lua, as Estrelas e outros elementos da natureza: a floresta, os rios, o vento, o mar, etc. Já N. Sra. da Conceição é uma referência do catolicismo popular nordestino, berço de M. Irineu. Não podemos deixar de assinalar que a Virgem da Conceição também é identificada como Oxum por muitos cultos afro-brasileiros. Oxum é protetora dos rios e cachoeiras, dona de grande beleza, promotora da fertilidade, criatividade e prosperidade (embora não saibamos se a Casa de Minas, com a qual Irineu poderia ter tido contato no Maranhão, professa essa identificação entre estas entidades).

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Os antropólogos estudiosos do Santo Daime justificam sua escolha pelo termo

“ecletismo” com base na afirmação dos daimistas de que seu culto é eclético. Consideramos esta uma boa escolha, embora em nossas entrevistas os indivíduos tenham usado indiscriminadamente os termos “sincrético” e “eclético” para se referirem à sua religião.

Groisman (1999) assinala ainda que o ecletismo é um fator fundamental na aceitação do Santo Daime pelo mundo. Segundo ele:

O ecletismo daimista é que permite essa convivência, sendo ao mesmo tempo estratégia de aglutinação de novos adeptos e fonte de criação e recriação da ambientação adequada para a experiência do Daime. Seu sucesso enquanto espaço simbólico está ligado a seu dinamismo que permite a manifestação de diversas e distintas expressões de religiosidade.

(GROISMAN, 1999,p. 134).

Também podemos observar uma crescente menção aos orixás nos hinários de vários Padrinhos. O hinário do Pad. Paulo Roberto, comandante da Igreja Céu do Mar, a maior igreja daimista do Rio de Janeiro, é repleto de referências à Ogum e Iemanjá. Em Lumiar (RJ), há uma igreja de Umbandaime, comandada pela mãe de santo Baixinha, que alterna trabalhos daimistas e giras de Umbanda em seu calendário ritual.

No entanto, tal como vimos em nossa pesquisa anterior (Araújo 2005) todas estas correntes e linhas de trabalho espiritual passam por uma resignificação dentro do Santo Daime. Isso é especialmente importante para nossa pesquisa atual, uma vez que nosso objetivo é justamente trabalhar com as atribuições de significado construídas pelos daimistas, e como se dá a dinâmica de absorver influências sem perder a essência da doutrina.

A atual gestão do Pd. Alfredo, filho do Pd. Sebastião, vem progressivamente abrindo espaço para que a Umbanda e também o neo-xamanismo9 sejam conhecidos pelos daimistas. Como este movimento é bastante recente (meados dos anos 80-90) não há pesquisas apontando as causas desse interesse em unir estas linhas de trabalhos religiosos.

9 Esclarecendo: o xamanismo aqui mencionado compõe-se de práticas e rituais ligados às tribos da América Central e do Norte, bem como algumas práticas da American Native Church. Podemos citar como exemplo a reverência e louvor aos elementos (ar, terra, fogo e ar) , às plantas e aos animais (sobretudo os animais considerados totêmicos), e alguns rituais e práticas de cura, como danças, rituais com peyote e a Tenda do Suor.

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Mas já se praticam uma vez por mês (todo dia 27) trabalhos de Mesa Branca, com objetivo de desenvolvimento mediúnico dos daimistas, e também os Trabalhos de São Miguel, onde as incorporações são incentivadas.

Iremos a seguir abordar brevemente a incorporação tal como é praticada no Daime. Pois esta questão se insere não só no que toca ao ecletismo daimista, como também se insere no panorama da doutrina na atualidade.

Fig. 13 Detalhe da mesa central da igreja Céu do Mar. Foto: Clara Rebel Araujo, 31 dez. 2007

Na doutrina Santo Daime concebida pelo M. Irineu10, não há espaço para a incorporação. Manter a postura ereta, não interromper o bailado nem o canto dos hinos, tudo isso é visto como fundamental para que se faça uma “corrente” forte de energia e as benesses de cura e sabedoria sejam alcançadas, segundo o discurso dos daimistas.

10 E tal como o ritual é praticado até hoje pelas igrejas do Alto Santo e CICLU, localizadas no Acre.

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Por sua vez, Pd. Sebastião já possuía um trabalho espiritual desenvolvido do espiritismo kardecista, quando ainda morava no Juruá. Autores de estudos sobre sua vida e antropólogos que trabalham com a memória do Cefluris são unânimes em afirmar que Sebastião era um grande rezador e realizava trabalhos de mesa espírita, trabalhando com os espíritos de Bezerra de Menezes e o prof. Antônio Jorge, entre outros. Quando Sebastião tornou-se daimista, houve um acordo de que este trabalho espírita seria interrompido, para que o trabalho do Daime fosse plenamente absorvido e assimilado.

No entanto, durante o tempo em que foi criada a comunidade da Colônia 5000, houve um fato importante relatado por Alverga (1992) e Mortimer (2000), e também discutido por Labate (2004): a “doutrinação” de uma entidade denominada Tranca Rua11.

Esta entidade era incorporada pelo Pd. Sebastião durante e fora dos trabalhos daimistas, e causava uma série de confusões e grandes desconfortos físicos (vômitos violentos, com sangue, etc). Após um verdadeiro tour de force entre Sebastião, sua família e esta entidade, foi estabelecido um “acordo”, segundo o qual o Tranca Rua passaria a ser um guardião do Daime. O símbolo deste acordo é uma vela acesa aos pés do Cruzeiro, que se situa sempre na entrada das igrejas daimistas.

O importante deste episódio que envolveu o Pd. Sebastião e a entidade Tranca Rua reside no fato de que a partir daí a Umbanda passou cada vez mais a se aproximar do Daime. Embora existam pouquíssimos estudos acadêmicos que abordem as semelhanças e diferenças entre essas duas religiões- que, diga-se de passagem, podem tranquilamente ser denominadas como religiões genuinamente brasileiras- podemos supor que o maior contato com pessoas do Sudeste tenha sido uma porta de entrada para o aumento da relação entre a Umbanda e o Daime. Isso porque muitos dos que passaram pelo Daime, no que Soares muito apropriadamente considerou um movimento de busca e errância religiosa, já haviam tido contato com a Umbanda e o Espiritismo kardecista, religiões que possuem muitos adeptos no Sudeste e, sobretudo, no Rio de Janeiro. Alguns de nossos entrevistados para a

11 De acordo com a Umbanda, o Tranca Rua é uma entidade da “linha” dos Exus. Segundo esta tradição, os Exus não são necessariamente maléficos, podendo trabalhar como mensageiros entre entidades espirituais mais “elevadas” (e aí vemos a forte influência do espiritismo kardecista na Umbanda) e os homens. É interessante notar que os relatos daimistas não denominam o Tranca Rua um Exu.

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dissertação de mestrado corroboraram esta hipótese, afirmando que já tinham participado dessas “linhas” antes de conhecer o Daime.

É relevante observar que tanto o Daime quanto a Umbanda nasceram no início do século XX, uma época em que o Brasil discutia a questão da mestiçagem, que deixou de ser considerada algo que “emburrecia” e “degenerava” o brasileiro, para ganhar um valor extremamente positivo dentro da Ciência e do discurso das elites intelectuais. De acordo com os pensadores do século XX, o brasileiro passou a ser visto como o resultado de uma fusão bem-sucedida do que havia de “melhor” entre três raças: a branca, a negra e a índia.

Essa idéia da mistura de raças como algo que valoriza e enobrece o brasileiro, refletiu-se de formas diferentes na perspectiva da Umbanda e em relação às religiões ayahuasqueiras – Santo Daime, UDV e Barquinha (das três, a única linha que tem como ponto principal o uso do Daime associado à incorporação dessas entidades e dos

“encantados”).

Muito resumidamente, podemos afirmar que uma grande diferença entre o Daime e a Umbanda é que esta se baseia na incorporação de entidades, e no trabalho com esses guias espirituais e o médium. No Daime, a ênfase recai sobre as revelações trazidas pela miração, que, tal como apontamos em nossa dissertação, está profundamente vinculada aos hinos da doutrina. Tal como afirma Labate:

Tais guias não são necessariamente incorporados. Eles podem ser apenas sentidos ou intuídos. Ou ainda: visualizados em miração. Nestes casos, haveria um encontro coerente, portanto, entre a miração e os diversos níveis de contato com seres espirituais, incluindo a própria incorporação. Ao contrário do que querem certos teóricos, no caso do Santo Daime, todas estas são partes complementares e não excludentes do mesmo trabalho espiritual. As sutilezas e particularidades destes conceitos e práticas, por muitas vezes fluidos e ambíguos, só poderão ser compreendidas através da realização de mais pesquisas empíricas. (LABATE, 2004, p. 250-251)

O que se percebe atualmente é uma crescente associação entre estas duas práticas dentro do Daime, especialmente nas igrejas cariocas12. Por outro lado, os padrinhos e madrinhas do Daime ressaltam que são doutrinas distintas, e que o Daime não deve perder a

12 Recentemente, tomamos conhecimento de outras igrejas que associam a Umbanda e o Daime em São Paulo e em Minas Gerais.

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essência de suas práticas (concentrações e hinários) e sua ênfase no poder de cura e revelação contidos nas mirações. Observamos que cada igreja tem a sua maneira de lidar com as incorporações e com as entidades “de Umbanda”, sem que seja feito um esforço nem para rejeitar nem para aceitá-las inteiramente. Só o tempo mostrará os resultados desse diálogo inter-religioso.

Fig. 14. Panelas fervendo no feitio. Céu da Lua Branca, Galdinópolis. Foto: Clara Rebel Araujo, 18 dez. 2008

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