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2 M ETÁFORA E VISUALIDADE

2.4 Metáfora visual, cognição e o processo de criação de similaridades

Quando nos deparamos com uma metáfora visual, especialmente na publicidade, um dos aspectos que comumente nos chama atenção é a forma surpreendente como dois temas ou

sujeitos diferentes passam a compartilhar propriedades em comum. De acordo com a teoria da

interação, isto acontece porque na construção e percepção da metáfora ressaltam-se os aspectos semelhantes, enquanto os dessemelhantes ficam menos destacados, estabelecendo

uma conexão entre os dois temas que até então não havíamos percebido. É a criação de uma aparente relação de semelhança, ou descoberta de uma semelhança que até então não era percebida, um dos aspectos mais característicos de uma metáfora não convencional. Assim, Black (1993) destaca o caráter instaurador da metáfora, que em muitos casos cria uma similaridade entre os dois sujeitos, ao invés de utilizar uma similaridade pré-existente.

A idéia de criação de similaridades está diretamente ligada ao aspecto cognitivo da metáfora. Na medida em que ela instaura uma semelhança, não está dizendo apenas o que já se sabe, mas está declarando algo pela primeira vez: uma declaração que até então não era aceita; se era aceita, não era lembrada. Referindo-se ao esquema proporcional de Aristóteles, mas numa proposição que também é aplicável à teoria da interação de Black, Eco acredita que “a metáfora põe [....], portanto, uma proporção que, não importa onde se encontrava, diante dos olhos não estava; ou estava diante dos olhos e os olhos não a viam” (1991, p.163).

Assim, a metáfora nos ensina em muitos aspectos: (a) possibilita aprender sobre os sistemas de valores ideológicos do declarante, na medida em que a metáfora reflete os valores nos quais acreditamos, como discutiremos mais demoradamente no tópico 2.6; (b) permite- nos conhecer o complexo semântico enciclopédico dos dois termos envolvidos na metáfora em uma determinada cultura e época; (c) permite-nos aproximar campos semânticos de classes diferentes, de modo que, para adotar uma perspectiva metafórica sobre um dado campo semântico, é necessário aprender sobre a similaridade criada, perceber o que já se conhece de uma maneira diferenciada e mobilizar conteúdos que até então não mobilizávamos em uma perspectiva não metafórica. (ECO, 1991)

O aspecto cognitivo da metáfora na teoria da interação muitas vezes é confrontado com uma teoria da substituição, caracterizada pela ênfase na dicotomia literal/figurado, a ser discutida mais detalhadamente em um tópico mais adiante. Sob este ponto de vista, o autor da metáfora substituiria uma expressão literal por uma outra tomada num sentido que não o seu próprio. Para Ricoeur (1975) e Black (1993), ao utilizarmos uma teoria da substituição para compreender o funcionamento da metáfora, estamos renunciando ao seu aspecto cognitivo. Na medida em que a metáfora simplesmente substitui uma expressão literal, ela pode ser traduzida por uma paráfrase exaustiva e por isso não traria qualquer informação ou ensinaria algo novo. Ela seria, pois, simples ornamento do discurso, oferecendo apenas o prazer de uma surpresa.

E se a metáfora não ensina nada, a sua justificação deve ser procurada noutro lugar que não na sua função de conhecimento; ou então, como a catacrese, de que ela não é mais do que uma espécie, preenche um vazio vocabular:

mas, então, funciona como uma expressão literal e desaparece enquanto metáfora [....] (RICOEUR, 1975, p.133)

Desta forma, ao tomamos a metáfora como portadora de um conhecimento, sob a perspectiva da teoria da interação, nós a consideramos como insubstituível, não sendo possível, pois, traduzi-la sem que se perca algum conteúdo. E uma vez que não pode ser traduzida por paráfrases exaustivas, ela possui uma informação e nos ensina algo. Assim, deve-se falar em conteúdo cognitivo da metáfora, em lugar de uma informação nula proporcionada pela perspectiva da teoria da substituição (RICOEUR, 1975)

No modelo da interação, tomando como ponto de partida o formato metafórico conceitual “TERMO A É UM TERMO B”, o sujeito secundário atua sobre o primário organizando a forma como este será percebido, baseado em um sistema de lugares comuns associados ao tema subsidiário ou em opiniões e pressupostos presentes em um locutor de uma dada comunidade lingüística. Ou ainda, em alguns casos, os sistemas constituem-se de implicações desviantes propostas pelo autor da metáfora para atender a objetivos específicos do que pretende comunicar. Tais conjuntos de opiniões e pressupostos são confrontados com a literariedade da palavra, formando assim um sistema de implicações a ser evocado de forma mais ou menos fácil ou livre. “É por aí que a metáfora confere um insight. Organizar um tema principal por aplicação de um tema subsidiário constitui com efeito uma operação intelectual irredutível, que informa e esclarece como nenhuma paráfrase poderia fazer. ” (RICOEUR, 1975, p. 135)

Esta questão parece ficar mais evidente quando confrontamos a metáfora a uma teoria da comparação, que Black considera como um caso específico da teoria da substituição. Nela, a função transformadora proposta pela metáfora é caracterizada pela analogia - válida para relações - ou pela semelhança – válida para idéias e coisas. Nesta perspectiva, quando se explicita uma relação de analogia, por exemplo, produz-se uma comparação literal equivalente ao enunciado metafórico, capaz de substituí-lo. Para Ricoeur “nada indica que a comparação restituída do termo de comparação constitua um enunciado literal que possa ser tratado como equivalente ao enunciado metafórico que é substituto a este último.” (1975, p. 133) E o autor conclui: “uma teoria em que a semelhança desempenha um papel não é necessariamente uma teoria em que a comparação constitui a paráfrase da metáfora” (p.134).

Segundo Black apud Ricouer (1975), não se deve explicar a metáfora pelas relações de semelhança ou analogia, por serem elas muito vagas ou até vazias. Uma vez que derivam mais de uma apreciação subjetiva que objetiva, tais relações admitem graus e

extremos variados. Black considera que a noção de semelhança, para ser evocada de modo pertinente, deve ser percebida como um produto da metáfora.

Indurkhya (1991) apud Forceville (1996), em acordo com a teoria da interação de Black, destaca três tipos de metáfora, a partir das relações estabelecidas entre o sujeito

secundário e o sujeito primário: a sintática, a sugestiva e a projetiva.

Na metáfora sintática, o sujeito primário e o secundário já são altamente isomórficos, de modo que as estruturas internas dos dois e a forma como se relacionam em seus ambientes já é bastante similar, sendo facilmente articuladas em um nível de correspondência. Ou seja: as propriedades marcantes do sujeito secundário são facilmente “encaixadas” nas propriedades do primário. O autor cita como exemplo a metáfora “CIRCUITOS ELÉTRICOS SÃO SISTEMAS HIDRÁULICOS”, em que considera necessária pouca adaptação entre os dois domínios para que se estabeleça a relação metafórica, ao mesmo tempo em que os resultados obtidos não são empolgantes ou “espetaculares”.

Na metáfora sugestiva, o primeiro sujeito ainda não possui uma estrutura definida e por isso mesmo o sujeito secundário, de estrutura interna mais familiar e delineada, impõe sua estrutura sobre o primário. Desta forma, como o primeiro domínio ainda não é muito conhecido, a imposição da estrutura conhecida do segundo pode enriquecê-lo. Muito útil no auxílio a pesquisas científicas, Indurkhya exemplifica a metáfora sugestiva por meio de um experimento de Gick e Holyoak (1980) no qual o domínio fonte ou sujeito secundário era um exército enfrentando o problema de capturar uma fortaleza cercada por minas, cuja estrutura foi aplicada sobre o problema de tratar um tumor sem destruir o tecido saudável que o cerca – o sujeito primário ou domínio-alvo.

É o tipo de metáfora comumente usada para compreender melhor áreas pouco familiares do conhecimento. Mas também percebemos que a metáfora sugestiva também é muito utilizada com finalidade didática por professores. Com o objetivo de tornar um assunto mais claro para o receptor, propriedades de um sujeito secundário mais conhecido são projetadas sobre o primário com o qual o receptor não é familiarizado, de modo que a compreensão do menos conhecido torna-se mais acessível. Daí, destacamos mais uma utilidade da metáfora sugestiva: apresentar e compreender de forma mais simplificada e didática aquilo que não se conhece. Ou ainda: tal adaptação para o campo mais simples e conhecido acontece com finalidade retórica, de modo a demonstrar a pertinência de determinadas afirmações. Julieta Godoy, em “Criação Publicitária”, por exemplo, explica

metaforicamente a importância do criador abastecer-se do máximo de informações sobre um cliente mesmo que não venha a usá-las em sua totalidade:

Como num iceberg, a menor parte do conhecimento adquirido aparece, mas o que dá solidez a essa parte é o que não se vê. Aquilo que fica dentro do mar. Essa parte submersa se refere justamente ao conjunto de referências que se precisou conseguir e assimilar para a conquista da sintetização. (GODOY, 1997, p.16 )

Na metáfora projetiva, ambos os sujeitos possuem uma estrutura interna altamente familiar, mas o que a torna singular é uma inesperada conexão. O sujeito primário é, pois, apresentado de uma forma pouco usual, fazendo realçar determinadas propriedades que em sua configuração habitual não eram percebidas, e colocando em segundo plano propriedades que normalmente eram bastante destacadas.

Articulando os três tipos de metáfora anteriormente citados com a teoria da interação de Black, percebemos tratar-se de variações quanto ao grau imaginativo e o tipo de projeção investido pelo segundo sujeito sobre o primeiro. Na sintática, a relação de similaridade entre ambos já é tão avançada que pouco há para ser projetado, cabendo apenas um processo de adaptação; na sugestiva, a projeção acontece de modo a fazer o desconhecido tornar-se conhecido, o que exige uma habilidade em aplicar a estrutura interna do sujeito

secundário de forma pertinente sobre o primário, de modo que o resultado não se torne pobre,

falso ou sem sentido; finalmente, na projetiva encontramos a metáfora criativa por excelência, aquela em que a relação de similaridade é “descoberta” pelo declarante, explicitando uma relação de semelhança que até então não havia sido ressaltada, com base em um outro ponto de vista sobre os sujeitos.

Na metáfora visual, acreditamos que estes três tipos de relações podem ser estabelecidas entre o sujeito primário e o secundário, numa espécie de campo gravitacional metafórico, ainda que o mecanismo projetivo pareça mais destacado, visto que o fato de configurar visualmente o conceito metafórico muitas vezes implica no esforço em atribuir semelhanças entre sujeitos que sob um ponto de vista habitual não possuem conexões familiares. Em princípio, pode parecer contraditório supor que o campo de aplicação de dois domínios semânticos distintos não envolva, como condição de possibilidade, uma boa dose de familiaridade prévia de alguma espécie, sobretudo tendo em vista a necessidade de uma comunicação instantânea das relações entre campos semânticos para fins retóricos na publicidade. Entretanto, acreditamos que o aspecto da visualidade parece dotar a metáfora de certo estranhamento ou diferenciação em relação ao uso verbal comum, o que, por si só, constitui uma perspectiva diferenciada entre os dois domínios envolvidos.

Por isso mesmo, destacamos um aspecto tensivo na estruturação do fenômeno, no qual convivem lugares comuns, modelos semânticos impostos e mecanismos criadores de similaridades que não se destacam apenas por aquilo que comunicam, mas também pela sua engenhosidade. Percebemos, então, que numa metáfora visual aparentemente projetiva encontramos também características dos outros dois tipos: (a) ela pode ampliar um conceito metafórico convencional, em que os dois sujeitos possuem estruturas internas semelhantes, como acontece no tipo sintático, de modo a realçar aspectos que ainda não haviam sido percebidos; ou (b) ainda pode tornar conhecido o desconhecido, impondo a estrutura interna do sujeito secundário sobre o primário, como é o caso da sugestiva, de modo que será possível compreender melhor a estrutura desconhecida, mas sem perder a característica de conexão inesperada da metáfora projetiva.

Figura 9: Anúncio do Baygon Genius exemplificando a metáfora visual com características sintáticas.

Fonte: 22º Anuário de Criação, 1997, p. 151.

O anúncio do Baygon Genius (fig. 9) é um exemplo da metáfora visual com características sintáticas. Trazendo como título “Se você não usa Baygon Genius, é assim que você é visto pelos pernilongos”, o anúncio utiliza a imagem de uma mulher dormindo segmentada por linhas pontilhadas e legendas com nomes de tipos de carne que a fazem corresponder a uma vaca. Conceitualmente, a metáfora pode ser reduzida a “A MULHER DORMINDO É UMA VACA PRONTA PARA O ABATE”. Considerando que tanto o

sujeito primário, no caso a mulher, como o secundário, a vaca, possuem estruturas corporais

muito semelhantes, foi possível encontrar facilmente uma série de equivalências estruturais e morfológicas que permitiram a aplicação das mesmas denominações de tipos de carne bovina sobre a mulher. Mesmo assim, deve-se reconhecer o aspecto instaurador da metáfora,

característico do tipo projetivo: para que sejam percebidas tais semelhanças, foi necessário aplicar sobre a mulher segmentos e legendas, além de criar um contexto no qual o receptor é convidado a adotar o ponto de vista de um pernilongo, com a ressalva de que a própria perspectiva do pernilongo é metafórica, visto que ele não é capaz de perceber tais equivalências. Além disso, destacamos o papel do registro verbal na criação deste contexto, pois ele instaura o princípio pelo qual as operações de correlação entre os dois campos semânticos se estabelecem. Isto acontece tanto no título, no qual se convida o receptor a adotar a perspectiva de um pernilongo, como pelas legendas situadas estrategicamente pelo corpo da mulher, as quais ancoram a interpretação esperada para cada segmento estabelecido pelas linhas pontilhadas.

Figura 10: Anúncio da marca Audi exemplificando a metáfora visual com características sugestivas.

Fonte: 23º Anuário de Criação, 1998, p. 178.

O anúncio do Audi A6 (fig. 10) com tração nas quatro rodas é um exemplo de metáfora visual com características sugestivas. Nele, dois botões de roupa, um fixado sobre o tecido com dois pontos de apoio e o outro com quatro, são metaforicamente associados à capacidade de aderência ao solo da tração nas quatro rodas dos carros, o que é sugerido em conjunto com o título “Quatro pontos sempre seguram mais do que dois. Novo Audi A6 com tração Quattro.” Embora a projeção não esteja a serviço de descobertas científicas, percebe-se que a estrutura muito simplificada do botão é projetada sobre o veículo, cujo funcionamento é muito mais complexo e por isso mesmo menos conhecido, demonstrando que ambos podem tornar-se mais firmes e seguros quando possuem quatro pontos de apoio. A sugestão feita

parece ter finalidade didática e retórica, permitindo aos leigos entender melhor o mecanismo de tração nas quatro rodas e demonstrando simplificadamente que ela possui comprovada eficiência, já que na experiência cotidiana sabemos que um botão preso a quatro pontos é mais bem fixado que o preso a dois. Mesmo assim, mais uma vez vale destacar o caráter instaurador da metáfora, visto que ela permitiu encontrar aspectos em comum entre sujeitos de estruturas muito diferentes.

Figura 11: Anúncio da marca esportiva Umbro exemplificando a metáfora visual projetiva .

Fonte: 23º Anuário de Criação, 1998, p. 108.

Finalmente, no anúncio da Umbro (fig.11) temos a metáfora projetiva por excelência, aquela em que ambos os sujeitos são bastante familiares ao receptor, sendo inesperada a conexão entre eles. O anúncio faz parte de uma campanha da marca esportiva que mostra cenas cotidianas equivalentes a situações de partidas de futebol. No exemplo, a imagem traz uma criança andando na rua e puxando a saia da mãe, como a assegurar sua proximidade e vínculo a ela, acompanhada do título: “Para nós, é um zagueiro marcando o centro-avante sob pressão. Umbro. A gente só pensa em futebol”. Na metáfora visual em questão, um dos termos é expresso visualmente, no caso a criança puxando a saia da mãe, e o outro verbalmente – o zagueiro marcando o centro-avante. Ambas as situações são familiares ao público-alvo do anúncio: a primeira, por ser bastante cotidiana e acessível; a segunda, é parte do repertório do típico brasileiro que aprecia o futebol. O inusitado é forçar a conexão entre dois domínios bastante diferentes, que de forma isolada não remeteriam a associações entre um e outro – a não ser sob o esforço criativo do pensamento metafórico.

Apesar disso, destacamos que, na publicidade, o valor cognitivo da metáfora visual, no sentido em que nos destaca Eco (1991) referindo-se a metáforas “abertas”, pareceu- nos bastante deflacionado. Isto não quer dizer que ela não nos ensine nada neste contexto midiático, uma vez que a incidência deste fenômeno na publicidade nos permite conhecer mais sobre o sistema de valores envolvido no processo de comunicação, que na maioria dos casos refere-se à ideologia do consumo, bem como sobre o modelo semântico enciclopédico associado aos sujeitos da metáfora em uma determinada época ou cultura. Entretanto, aquele conhecimento adquirido por meio dos inesperados efeitos de deslocamento que nos fazem “viajar” pelos mecanismos da semiose, ocasionados pela aproximação de campos semânticos de classes distintas, nos fazendo pensar e adotar uma nova perspectiva diferenciada sobre um mesmo fenômeno, o que é uma das propriedades marcantes da metáfora no discurso poético, que parece-nos aqui um tanto enfraquecido. Não estamos afirmando que na publicidade esta aproximação de campos semânticos seja sempre óbvia ou previsível, já que uma das características da linguagem publicitária é o reaproveitamento de clichês. Acreditamos que esta conexão não prioriza o que a metáfora pode fazer-nos pensar e ensinar, e sim a engenhosidade com a qual esta conexão se apresenta.

Na publicidade, diferentemente do discurso poético, o mais importante é que esta estratégia discursiva convoque a atenção do receptor de modo pertinente para o objetivo da comunicação, criando uma predisposição positiva em relação a uma marca ou fazendo-o aderir a um determinado produto, serviço ou idéia, de modo a beneficiar o anunciante. O valor cognitivo da metáfora visual neste contexto, então, é bastante suprimido em função das necessidades do sistema produtivo, as quais impõem sobre o processo comunicacional certa imediaticidade e objetividade que não necessariamente regem a metáfora no contexto discursivo poético, cuja interpretação costuma ser mais aberta.