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Parte II: O Debate sobre o Efeito V2 na História do Português

3.3 Metodologia de Coleta e Descrição dos Dados

O trabalho de coleta e descrição dos dados foi pautado por algumas questões meto- dológicas. Primeiramente, destacamos que o nosso foco se concentrou especificamente em orações finitas, tanto matrizes quanto dependentes. No que diz respeito às orações matrizes, focalizamos as declarativas, deixando de lado, por exemplo, sentenças inter- rogativas ou imperativas.6 Em relação às dependentes, direcionamos a nossa atenção apenas para as orações complemento introduzidas pelo complementizador que.7

Na exposição dos dados, o objetivo é descrever as possíveis ordens de palavras nos contextos sintáticos investigados, destacando especialmente aspectos da posição linear do verbo em relação a outros constituintes sintagmáticos. Dentro dessas preocupações descritivas, dois aspectos serão priorizados: i) quantos constituintes podem aparecer antes do verbo flexionado; e ii) as possibilidades de ordem linear do sujeito em relação ao verbo. No que diz respeito à quantidade de constituintes que podem preceder o verbo finito, esse aspecto é relevante pois permitirá comparar em que medida o Português Europeu, em algum momento ao longo dos séculos 16 a 19, se assemelha ou não a línguas V2 com relação aos padrões de ordem linear do verbo finito. No que diz respeito à preocupação de olhar para o ordenamento linear do verbo em relação ao sujeito, a motivação para o emprego dessa estratégia está no fato de que, em termos estruturais, a posição do sujeito pode ser tomada como um ponto de referência para localizar a posição do verbo na estrutura oracional.

Nesse trabalho de descrição, lançarei mão da terminologia linguística tradicional, usando a letra V para identificar o verbo finito da oração, a letra S para um sujeito realizado foneticamente e a letra X para constituintes sintagmáticos diferentes do sujeito (seja um complemento verbal ou adjuntos da sentença). No caso de orações sem a realização fonética do sujeito, a ausência de um S na representação da sentença indicará esse fato. Aqui, destacamos que nosso olhar será direcionado apenas para sentenças com um sujeito realizado foneticamente ou sentenças com um sujeito nulo referencial. Assim, orações com um sujeito nulo não-referencial, como, por exemplo, aquelas com o verbo haver em sua forma impessoal, não serão computadas.

Para o cálculo da ordem linear do verbo na sentença, não serão considerados conectivos de coordenação, tais como e e mas. Isso se justifica porque, em línguas

6Uma rápida discussão a respeito de orações interrogativas nos séculos 16 e 17 é realizada, porém,

no capítulo 4, em 4.2.2.3.

7Cf, porém, no capítulo 4, em 4.2.1.2, uma apresentação sobre orações subordinadas sem o comple-

prototipicamente V2, elementos de coordenação não impedem a presença de um outro elemento em posição pré-verbal. Ou seja, na determinação da ordem linear V2, a presença ou não de conectivos de coordenação se mostra um aspecto irrelevante.8 O complementizador que também não será computado para o cálculo da ordem linear do verbo finito. A razão para essa escolha metodológica é de natureza teórica, já que, dentro da tradição gerativista, complementizadores costumam ser analisados como elementos nucleares, e não como XP’s. Pronomes clíticos e o elemento de negação não também serão desconsiderados para a contagem da ordem linear do verbo, em razão do fato de se apresentarem sempre como elementos dependentes de outros constituintes.9 Nesse ponto, explicitamos que, ao longo do capítulo, o uso de rótulos tais como V1, V2 ou V3, por exemplo, é de natureza puramente descritiva, sem a intenção de denotar qualquer tipo de análise com relação à posição ocupada pelo constituinte verbal na estrutura oracional. Uma análise teórica a respeito da posição do verbo será apresentada no capítulo 4.

Destacamos também que coletamos apenas orações em que haja, pelo menos, um elemento na sentença além do verbo finito. Assim, sentenças como “morreu” ou “saiu” foram descartadas, já que não oferecem evidências para diagnosticar a posição do verbo nem as possibilidades de ordenação dos constituintes.10

Na apresentação de cada exemplo, colocaremos entre parênteses duas informações pertinentes à sua identificação. A primeira delas será o sobrenome do autor da obra de onde é extraído o exemplo. A segunda é um código numérico que corresponde à identificação original do exemplo no CTB.

Sobre a maneira como os dados serão agrupados em termos diacrônicos, desta- camos que o material coletado será dividido em dois grandes grupos: um primeiro, cobrindo os textos dos autores nascidos nos séculos 16 e 17, e um segundo, abrangindo os textos dos autores nascidos nos séculos 18 e 19. Os textos dos autores nascidos nos séculos 16 e 17 serão tomados como representativos da gramática do Português Médio,

8Na realidade, essa questão merece um estudo à parte. Conforme apontado por Ilza Ribeiro (c.p.),

elementos de coordenação no Português Arcaico podem apresentar um comportamento idêntico ao de elementos adverbiais. Nesses casos, o conectivo é relevante na determinação da ordem linear V2. Embora não investiguemos esse ponto no presente trabalho, seria interessante verificar se, no período temporal aqui investigado, há indícios de um padrão semelhante ao do PA.

9Sobre a natureza clítica de não no Português, cf. Mioto (1992) e Namiuti (2008).

10Aqui, não fizemos uma análise qualitativa dos verbos envolvidos. A razão para isso se deve à

grande quantidade de dados investigados: no total, foram coletadas 22220 orações com verbo finito, entre matrizes e subordinadas (cf. as tabelas 3.1 e 3.2 logo adiante). Apesar disso, acreditamos que a discussão mais quantitativa apresentada nesta tese poderá ser um ponto de partida fundamental para pesquisas futuras que tenham um enfoque mais qualitativo.

ao passo que os textos dos autores nascidos nos séculos 18 e 19 serão tidos como já representativos da gramática do Português Europeu Moderno. Nesse sentido, como já dito, estamos seguindo a proposta de periodização desenvolvida em Galves, Namiuti & Paixão de Sousa (2006). De fato, essa divisão está em sintonia com diversos trabalhos que, investigando variados aspectos, apontam para o instanciamento de uma sintaxe diferenciada a partir do século 18.11 Sobre a razão de organizarmos os textos conforme a data de nascimento dos autores e não com base na data de publicação da obra, por exemplo, acreditamos que tal estratégia é coerente com a concepção gerativista de gra- mática como uma Língua-Interna (Chomsky 1986b). Especialmente dentro do quadro da Teoria de Princípios e Parâmetros, entende-se que os valores paramétricos de uma gramática específica são fixados na mente de uma criança a partir de um estado inicial (a Gramática Universal), com base nos dados aos quais é exposto o falante. A hipótese padrão é a de que essa gramática nunca muda após o fim do processo de aquisição. A partir dessa perspectiva, assumo então que, mesmo em textos escritos, seja possível de- tectar aspectos da fixação gramatical realizada durante a infância, independentemente do tempo que possa ter havido entre a escrita da obra e o processo de aquisição da linguagem pelo qual passou o seu autor.

Por fim, gostaríamos de realizar algumas considerações a respeito da quantificação dos dados. Em pesquisas diacrônicas, trata-se de uma abordagem bastante empregada investigar determinado fenômeno linguístico não apenas de um ponto de vista qualita- tivo, mas também quantitativo. Em certa medida, isso se justifica em razão de não ser possível lançar mão de evidência negativa para a confirmação de determinada hipótese, dado que é impossível ao linguista consultar a intuição de falantes de estágios passados de qualquer que seja a língua. Ou seja, pode-se unicamente recorrer a evidências positi- vas, e, nesse caso, tal limitação significa recorrer ao material linguístico que, pelas mais diferentes razões, sobreviveu às contingências históricas, como já mencionado em mo- mento anterior. Assim, a idéia de olhar para determinado fenômeno linguístico também de uma perspectiva quantitativa constitui uma estratégia complementar para entender a questão a ser investigada, já que os padrões de frequência podem ser interpretados como uma evidência adicional a corroborar ou não qualquer que seja a hipótese para

11Cf. Paixão de Sousa (2004) e Galves, Britto & Paixão de Sousa (2005) a respeito da alternância

ênclise/próclise em orações finitas; Cavalcante (2006) a respeito de orações infinitivas com o clítico se; Floripi (2008) a respeito do uso de determinantes com possessivos; Namiuti (2008) a respeito de construções com interpolação; Andrade (2010) a respeito do fenômeno de subida de clíticos; Gibrail (2010) a respeito da sintaxe de topicalização; Trannin (2010) a respeito de estruturas causativas.

onde apontam os dados qualitativos.12 Em vista disso, no trabalho de descrição dos da- dos do nosso corpus, apresentaremos em detalhes as frequências das ordens de palavras atestadas, com o objetivo de mostrar as tendências gerais manifestadas ao longo do pe- ríodo histórico investigado. Aqui, a idéia é que tal metodologia possa ser utilizada para conferir robustez às análises que serão desenvolvidas a partir de aspectos qualitativos mais pontuais.