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Capítulo 2 – Validação de uma sequência didática que utilizou o Pluralismo de processos e Evo-devo

3. Metodologia de construção, aplicação e validação da seqüência didática

A etapa de construção contou com a participação do professor responsável pela disciplina no curso de graduação. Ao todo, foram três pesquisadores coletivamente envolvidos na construção da sequência: Prof. Marcelo Napoli, ministrante da disciplina sob intervenção; Thiago de Sá, pesquisador e colaborador que também desenvolveu um projeto de mestrado associado à sequência construída; e Wellington Bittencourt, autor do presente trabalho. Foram realizados encontros regulares com esta equipe ao longo de todo o primeiro semestre, nas quais realizávamos discussões críticas a respeito das aulas, dos conteúdos abordados e, sobretudo, em relação à metodologia de abordagem dos mesmos. Ao longo destas discussões, os integrantes da equipe traziam contribuições oriundas da análise de livros didáticos de biologia evolutiva e zoologia de vertebrados (ver cap. 1), de modo a aprimorar o tratamento dos conteúdos relativos à evolução dos tetrápodes após a conquista do ambiente terrestre, bem como à pluralidade de mecanismos evolutivos. Foram também realizadas buscas de artigos, em periódicos de zoologia de vertebrados e evolução, que fornecessem apoio à construção da sequência.

Adotamos o modelo de construção e validação de sequências didáticas proposto por Martine Méheut (2005) para o desenho de pesquisa qualitativa do presente projeto. O professor, com base na perspectiva adotada, é uma peça fundamental na proposta de intervenção pretendida: (i) porque, na condição de professor-investigador, traz um conhecimento docente que é fundamental para a validação a priori da sequência; (ii) porque é responsável por ministrar a seqüência didática após a elaboração, o que se mostra mais poderoso e pertinente do que se isso fosse feito pelo mestrando, com menor experiência docente, na medida em que não é professor da disciplina; e (iii) porque compreendemos a intervenção como um elemento no processo de desenvolvimento profissional e construção da prática pedagógica do próprio professor. Ou seja, não estamos lidando com uma perspectiva distanciada da prática e do conhecimento do professor e, por conseguinte, não almejamos uma intervenção que seja externa aos propósitos particulares e alheia ao trabalho pedagógico do docente. Ao contrário, entendemos a pretendida intervenção como mais um dos elementos co-substaciativos da própria dinâmica de desenvolvimento das aulas do professor.

Utilizamos durante a elaboração e validação da seqüência didática proposta os critérios de justificação a priori e de validação a posteriori descritos por Méheut (2005). Os critérios de justificação a priori foram utilizados para orientar a construção da sequência de modo a maximizar a sua inteligibilidade, de acordo as especificidades do seu contexto de aplicação. Estes critérios contemplam três dimensões de análise: i) uma dimensão epistemológica, relacionada à significância dos conteúdos a serem aprendidos, aos problemas que eles podem resolver, e à gênese

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histórica destas investigações; ii) uma dimensão psicocognitiva, na qual se tem em vista as características cognitivas dos estudantes para os quais seriam aplicadas a sequência; e iii) uma dimensão didática, na qual se busca compreender as restrições colocadas pelo próprio funcionamento da instituição de ensino na qual será implementada a sequência, no que se refere à adequação aos programas, cronogramas, infra-estrutura básica local, entre outras particularidades.

Num processo de validação a posteriori de sequências didáticas, podem ser considerados dois pontos de vista complementares, segundo Mehéut (2005): a validação externa ou comparativa, a fim de comparar efeitos da seqüência didática que está sendo investigada com outros modos de ensino já em andamento no mesmo contexto, sendo realizada comumente através de pré-, pós- testes e testes de retenção, dentro de um desenho experimental ou quase-experimental; e a validação interna, realizada através da análise dos efeitos da seqüência em relação aos seus objetivos, buscando comparar as vias de aprendizagem realizadas com as vias de aprendizagem esperadas, conforme o planejamento da sequência.

No presente projeto, realizamos um processo de validação interna da sequência construída, envolvendo um estudo qualitativo com uma turma da disciplina em questão que seguiu as aulas do semestre sob nossa intervenção. Tivemos em tal estudo o objetivo de comparar as relações entre vias realizadas e esperadas de aprendizagem. Mais especificamente, realizamos este estudo qualitativo através da comparação da evolução da compreensão dos estudantes em relação aos conteúdos concernentes ao pluralismo de processos e à evo-devo enfocados em nossa sequência. É importante ressaltar que esta comparação não teve – nem poderia ter – a intenção de uma validação externa, que demandaria comparações entre números maiores de turmas, num desenho experimental ou quase-experimental. No entanto, dados relevantes para o desenvolvimento posterior da sequência podem resultar da comparação entre o que teve lugar e o que se planejou em termos de aprendizagem, seja na prática docente pré-intervenção, seja na sequência didática.

Ao fim das aulas da turma na qual realizamos a intervenção, com o objetivo de caracterizar as propostas de ensino que foram implementadas antes e depois da nossa intervensão, foi realizada uma entrevista semi-estruturada com o professor, na qual se buscou caracterizar, desde sua perspectiva, as mudanças efetivamente alcançadas em sua prática docente. Trazemos aqui em destaque as principais diferenças elencadas no depoimento do professor da disciplina e também com base nas observações durante o acompanhamento das aulas. A principal delas esta de fato relacionada ao âmbito de abordagem pluralista enfocado em nossa proposta de ensino, as aulas pré- intervenção não buscava tratar da ação de múltiplos mecanismos evolutivos, as mudanças sofridas pelo grupo eram discutidas apenas dentro da perspectiva de adaptabilidade. A apresentação das estruturas durante o segundo semestre era quase sempre conjugada com a discussão sobre quais os possíveis processos evolutivos relacionados, estratégia que não era utilizada antes da intervenção. As questões relativas ao estudo da evo-devo eram muito pouco tratadas, ao segundo semestre estes estudos foram prioritariamente enfocados. Nas aulas ministradas pré-intervenção ocorria caracteristicamente também uma grande fragmentação na abordagem no que concerne aos estudos de fisiologia e os estudos ecológicos, ao passo que buscamos trabalhar conciliando ao máximo estes dois campos. Apesar das aulas anteriores a intervenção já possuírem em sua forma originalmente ministrava elementos narrativos, as narrativas não eram utilizadas como um eixo condutor na apresentação dos conteúdos, onde podíamos observar momentos de contar história e outros momentos isolados para se trabalhar os demais conteúdos fora da história. Contudo, em nossa estratégia de abordagem os conteúdos específicos eram encadeados de acordo à sequência da narrativa dos processos evolutivos. Seguirá no anexo 3 a sequência didática que desenvolvemos.

A aprendizagem realizada pelos estudantes foi investigada por meio de questionários aplicados em três etapas: antes da aplicação da seqüência, após a aplicação da seqüência e três meses depois do final da intervenção, referindo-se a diferentes momentos sociais de mobilização dos conteúdos pelos estudantes. O último dos momentos de aplicação se refere a um teste de

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retenção, que nos permite avaliar de modo mais seguro o que foi realmente aprendido, visto que a aprendizagem é um processo associado à memória de longo termo, e não apenas de curto termo. Como a disciplina investigada foi a Zoologia de Vertebrados, o questionário inclui questões tanto de evolução, quanto de zoologia. O questionário foi composto de quinze questões de múltipla escolha, sendo apresentado no Anexo 1. De modo a atender algumas necessidades específicas da análise da nossa sequência didática com base nos efeitos pedagógicos pretendidos, o questionário foi composto por cinco diferentes tipos de abordagem em suas questões: (1) um grupo de questões teóricas, abordando conteúdos relativos aos mecanismos evolutivos, fora do contexto de exemplos ecológicos; (2) um segundo grupo de questões, abordando conteúdos específicos de zoologia de vertebrados, sem tratar dos processos evolutivos envolvidos; (3) um terceiro grupo de questões, também abordando conteúdos específicos de zoologia de vertebrados, mas tratando paralelamente de mecanismos evolutivos, dentro de um cenário da conquista do meio terrestre; (4) um quarto grupo tratando do reconhecimento do cenário evolutivo e da sequência de acontecimentos ocorridos durante a radiação dos tetrápodes após a conquista no meio terrestre; e (5) por último, um grupo de questões abordando os mesmos mecanismos em cenários evolutivos que não dizem respeito ao estudo de caso usado na seqüência.

Com estes diferentes tipos de questões, pretendemos responder às seguintes perguntas: (1) os estudantes compreendem melhor os mecanismos evolutivos e os conteúdos específicos dentro ou fora de um contexto ecológico? (2) o uso de narrativas auxilia na apreensão dos conteúdos específicos de zoologia? (3) o uso de narrativas auxilia no entendimento dos mecanismos evolutivos? (4) os alunos que acompanharam a sequência didática, baseada em narrativas de processos evolutivos, são mais competentes no reconhecimento do cenário evolutivo e da sequência de acontecimentos correspondentes ao estudo de caso? (5) o uso de narrativas históricas tem uma influência positiva na habilidade dos estudantes para transpor ou deslocar o conhecimento adquirido para responder a novas questões em que os mesmos mecanismos evolutivos estão envolvidos?

Além dos questionários, foram realizadas e gravadas em vídeo entrevistas semi-estruturadas individuais com os estudantes, estas foram posteriormente transcritas e analisadas, de modo a avaliar o grau de apropriação da linguagem social da ciência com base em nossos objetivos de abordagem. O protocolo de entrevista desenvolvido para a entrevista com os estudantes segue no anexo 2. Através das aplicações dos questionários e das entrevistas, buscamos obter dados que permitissem analisar o modo como os estudantes mobilizam determinadas idéias e conceitos quando colocados em situações de interação social estruturadas pelo contexto da pesquisa. Em particular, a entrevista se mostra mais poderosa para produzir interações discursivas com os estudantes, a partir de situações narrativas, que suscitem dados sobre a mobilização das idéias científicas. Além disso, buscamos estimular os estudantes a exporem também as dúvidas que emergiram ao longo da aplicação dos questionários, bem como a justificarem suas convicções em relação aos itens ―corretos‖ e ―incorretos‖ contidos nas questões.. Do, mesmo modo os estudantes foram requeridos, questão a questão, a explicitarem de que forma as aulas recebidas os influenciaram nas suas mudanças de entendimento. Esperávamos através desta estratégia obtermos dados que permitissem compreender as mudanças de entendimento detectáveis em suas respostas, ao longo das três etapas de aplicação

Ao nos referirmos à compreensão de uma visão pluralista da evolução, como objetivo de ensino, entendemos ‗compreensão‘ sob o parâmetro dos critérios discutidos por Smith e Siegel (2004). Estes autores entendem a compreensão das idéias científicas dos estudantes (em oposição à crença nestas), como objetivo do ensino de ciências, nos seguintes termos: conectividade, i.e., a conexão das novas idéias que estão sendo aprendidas entre si e com os conhecimentos prévios dos estudantes, sendo esta uma condição primordial para a compreensão; atribuição de significado, na medida em que a conexão das novas idéias com as idéias prévias conduz a um processo de construção de significado, pelo estudante, para as novas idéias, bem como a um processo de

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ressignificação das idéias anteriores, na medida em que elas estabelecem relações com as novas idéias; aplicação, que se refere ao potencial de uma pessoa que compreende uma nova idéia de extrapolá-la das situações em que a aprendeu a situações diversas, tornando-se capaz de aplicá-la em situações escolares e não-escolares; e justificação, que se refere ao fato de que a compreensão envolve uma apreciação coerente de pelo menos algumas razões que justificam a idéia aprendida, entendendo-se, pois, que compreender uma idéia é compreender um argumento que apresenta a idéia.

Para Bakhtin (1978), a construção de sentido sempre se dá por meio de um dialogismo, ou seja, um enunciado sempre se relaciona com enunciados anteriormente produzidos. Todo e qualquer discurso é constituído ou permeado pelo discurso do outro, sendo que estes discursos não são necessariamente convergentes; podem, inclusive, serem discursos contrários, conflituosos e, deste modo, muitas vezes múltiplos e polifônicos. Isso significa que a apropriação do discurso do outro se dá na medida em que o sujeito recria, reinterpreta, reconstrói a idéia alheia, para torná-la própria e significativa para si mesmo. No presente estudo, buscamos estágios de apropriação gradual e progressiva de significados pelos estudantes, conforme distinguidos por Mortimer & Scott (2003):

Estágio (1) - Os estudantes ainda consideram as idéias científicas como constituintes de um discurso alheio, do outro, estranho às suas próprias visões e experiências, não articulando aquelas idéias de forma fluente e apresentando dificuldades em transpor ou deslocar os conceitos adquiridos para explicar outros fenômenos, externos ao caso trabalhado.

Estágio (2) - Os estudantes começam a conceber as novas idéias como em parte pertencentes ao outro, em parte pertencentes a eles mesmos. Eles começam a usar idéias da ciência escolar, mas ainda de modo incerto e hesitante, o que é um indício de que as idéias ainda não foram completamente apropriadas.

Estágio (3) - Os estudantes desenvolvem o potencial de aplicar a perspectiva da ciência na interpretação de uma diversidade de fenômenos e situações, apropriando-se das novas idéias da ciência escolar para construir seus próprios argumentos, tornando-se capazes de empregá-las com fluência e em situações que ultrapassam aquelas trabalhadas em sala.

Dentro do âmbito desta pesquisa, foram compostas três categorias para classificar os discursos encontrados nos depoimentos dos estudantes, registrados por meio das entrevistas gravadas. Estas categorias correspondem aos três estágios descritos acima e, ao mesmo tempo, são relacionadas aos conteúdos apresentados e aos objetivos pretendidos pela sequência didática aplicada. Analisamos comparativamente os níveis de mobilização (domínio) da linguagem social da ciência entre os estudantes, tendo como base as vias de aprendizagem realizadas em relação às vias de aprendizagem esperadas. Seguem abaixo as categorias construídas:

Categoria (1): os estudantes apresentam pouca ou nenhuma familiaridade com o pluralismo de processos e as contribuições da evo-devo, não manifestando segurança ou coerência ao discorrerem sobre outros mecanismos evolutivos, complementares à seleção natural. Não entendem o que estes mecanismos explicam nem como se processam e, consequentemente, não conseguem construir exemplos evolutivos e/ou ecológicos nos quais os diversos mecanismos estivessem atuando. Ao tratarem do tema da conquista do ambiente terrestre e da radiação dos tetrápodes, apresentam grande dificuldade para construírem uma narrativa dos processos evolutivos envolvidos. Não incluem outros mecanismos evolutivos além da seleção natural em suas explicações, porque não compreendem a ação coletiva de múltiplos mecanismos. Não recordam as principais modificações sofridas pelos tetrápodes e descrevem o cenário ecológico com pouca riqueza de detalhes.

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Categoria (2): os estudantes apresentam relativa familiaridade com o pluralismo de processos e as contribuições da evo-devo, já se arriscam a discorrer sobre mecanismos evolutivos complementares à seleção natural de um modo mais espontâneo que os estudantes da categoria anterior, contudo, demonstram ainda algumas dúvidas conceituais. Apresentaram um relativo domínio dos temas abordados, são capazes de construir exemplos evolutivos e/ou ecológicos nos quais os diversos mecanismos evolutivos estejam atuando, contudo, sendo ainda possível a identificação alguns problemas teóricos na composição. Ao tratarem do tema da conquista do ambiente terrestre e da radiação dos tetrápodes, recompõem uma narrativa buscando tratar coletivamente dos mecanismos evolutivos que eles entendem terem atuado durante os eventos em questão, embora ainda com pequenas incompletudes. Recordam bem das principais modificações sofridas pelo grupo dos tetrápodes e descrevem o cenário ecológico com razoável detalhamento.

Categoria (3): os estudantes apresentam uma boa familiaridade com o pluralismo de processos e as contribuições da evo-devo, manifestando segurança e coerência ao discorrerem sobre mecanismos evolutivos complementares à seleção natural. Entendem de modo significativo o que estes mecanismos explicam e o modo como se processam. Apresentam fluência ao construir exemplos evolutivos e/ou ecológicos em que os diversos mecanismos evolutivos estejam atuando. Ao tratarem do tema da conquista do ambiente terrestre e da radiação dos tetrápodes, os estudantes são capazes de explicar a participação de múltiplos mecanismos dentro de uma narrativa dos processos evolutivos ligados aos eventos em questão. Explicam coerentemente como estes processos se deram dentro das condições ecológicas especificas, descrevendo o cenário ecológico com relativa riqueza de detalhamento e tratando da maioria das principais modificações sofridas pelo grupo dos tetrápodes.

As categorias acima descritas correspondem a categorias compostas a priori, mas, durante a análise e categorização dos dados, emergiu uma outra categoria, a posteriori. Isso é natural, uma vez que sempre pode ocorrer de serem encontrados discursos de estudantes que não podem ser incluídos nas categorias a priori. A referida categoria a posteriori é híbrida e mesclando características de uma ou mais das categorias a priori. Como esta nova categoria não é compreendida em um ordenamento sequencial em relação aos estágios de apropriação considerados no trabalho, não utilizamos o sequenciamento numérico que ordenava as categorias, mas a nomeamos como (w).

Categoria (w): os estudantes apresentam pouca familiaridade com o pluralismo de processos e as contribuições da evo-devo, apesar de reconhecerem sua existência. Demonstram grande dificuldade ao tentarem discorrer sobre mecanismos evolutivos complementares à seleção natural, por conta de possuírem ainda muitas dúvidas significativas em relação a tais conteúdos. Mostram bastante dificuldade ao construírem exemplos evolutivos e/ou ecológicos nos quais os diversos mecanismos evolutivos estejam atuando. Ao tratarem do tema da conquista do ambiente terrestre e da radiação dos tetrápodes, reconhecem a ação de múltiplos mecanismos, embora quando procurem tratar coletivamente dos mecanismos evolutivos que entendem terem atuado durante os eventos em questão, mostram-se inseguros e confusos na narrativa que compõem. Não recordam das principais modificações sofridas pelo grupo e descrevem o cenário ecológico com pouca riqueza de detalhes.