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Viver e amar, tal é a substância do meu misticismo, qual aparecerá nesta sua expressão de fenômeno vivido. A proporção que caem os véus e a fonte se aproxima e transparece, ascende-se e lavra o incêndio. Dentro dele se ouvirá cantar a música do divino, o amor das criaturas, o amor de Deus. Diante de nós, veremos ressurgir a figura de Cristo que nos precede e avança pelos séculos. Veremos aparecer gradativamente, numa sucessão de quadros, esta visão e nela a transformação de uma alma. Mas, retardemos ainda a marcha, antes de aventurar-nos no grande vôo. Avancemos por um gradual crescimento de tensão. Tratamos suficientemente do aspecto técnico da questão. Deixemos atras este superado labor. Estamos ainda no vestíbulo, diante do portal. Nossa psicologia deve avançar através de progressiva desmaterialização e as precedentes afirmações teóricas devera o converter-se em sensível forma de vida. Para tornar possível a compreensão, devemos separar-nos gradualmente da psicologia corrente e gradualmente despojar-nos do invólucro analítico racional, liberar-nos e elevar-nos da forma mental de nosso tempo. O precedente estudo técnico nos fez compreender racionalmente a ascese mística; agora, devemos compreendê-la espiritualmente. Aquela primeira orientação esta na base e por isso nos ajuda e nos ajudará, mas agora é necessário atingir a superelevação do edifício. É necessário elevar-se na nova forma de pensamento e mover-se nela; devemos rasgar o véu e encarar a luz.

Aqui a ascese mística superou, em nosso exame, a fase teórica da compreensão e ingressa no campo pratico de sua realização. Emerge da exposição racional com uma palpitação de vida, não mais ilustração explicativa, mas norma de atuação. Quem ainda duvida verá que a ascese se torna um método e que há uma metodologia para chegar a Deus e realizar a unificação. Isto faz igualmente parte de minha experiência. Esta exposição nos encaminhará à compreensão da última parte e dos quadros psicológicos que a completam. Veremos assim nascer aqui, como conseqüência lógica de nossas promessas, uma metodologia mística. É a mesma dos grandes místicos, da qual porém não deram explicação racional e científica necessária á hodierna compreensão. Essencialmente, ela é a metodologia da evolução na fase espírito, decorre de cada palavra minha em meus escritos passados, neles esta contida, em suas linhas gerais, e continua aqui em um seu mais alto desenvolvimento.

O campo experimental de minhas observações se estende, assim, às experiências dos místicos que viveram o fenômeno e deram o seu testemunho, confirmando-o. Há uma ciência mística, cujos autores se dão as mãos. Embrionária nos primeiros tempos do Cristianismo, desenvolve-se depois,alcançando muitas vezes alturas inauditas. S. Dioniso Areopagita enuncia as leis gerais da teologia mística, lançando-lhe as bases; João Ruysbroech (nascido na Bélgica, em 1293) assimilou-lhe o pensamento e sobretudo o viveu. No Ornamento das Núpcias

Espirituais, ele verdadeiramente arde como um incêndio e voa como águia; seu espírito solta um

grito imenso e se abisma na vertigem dos mais altos estados místicos. E quem não conhece Eckart, Tauler e ainda a Beata Angela de Foligno, S. Boaventura, S. Teresa, alma vibrante

inigualada, e o santo da mística Assis, S. Francisco, sombra de Cristo? Máximo doutor em teologia mística, da grandeza de S. Tomás em dogmática, é S. João da Cruz (nascido na Espanha, em 1542). Suas obras: Subida do Monte Carmelo, a Noite Escura da Alma, o Cântico

Espiritual e a Chama Viva do Amor descrevem as vias da ascese espiritual até a unificação da

alma com Deus.

Há, pois, um método para chegar a Deus, com características que se repetem, demonstrando que atras das realizações pessoais há um fenômeno geral. Nisso são concordes, numa nota dominante, os místicos teóricos e os místicos experimentais. Que fazem, que querem todos esses homens? São almas atormentadas por estranha necessidade: têm pressa de chegar a Deus, são impulsionados por um desejo vertiginoso, o desejo da unificação. Ardem todos de íntima efervescência de amor. Vivem com os braços abertos para Deus e para as criaturas, sofrendo antes de chegar e, depois, cantando e amando. Inflamam-se no incêndio do êxtase, em fontes inimagináveis, para, em seguida, derramar torrentes de luz e de paixão. Ouvimos clamores que em nosso mundo não são compreendidos, por isso não são admitidos. Que ocorre então?

Ocorre o fenômeno da absorção do eu inferior no eu superior, através da noite escura dos sentidos. Desloca-se o centro da gravidade da vida para um mundo hiperbiológico, situado além de nossa capacidade de conceber. Se, teórica e tecnicamente, é isso concebível, conforme veremos, coisa mui diversa é viver o fenômeno e experimentar a sensação de seu amadurecimento. Quem ainda está evolutivamente distante, observa e não entende; mas, quem chegou e vive o fenômeno atravessa uma revolução de pensamento e de sensações. O sorriso de quem nega não pode destruir esta realidade; tampouco suas pseudo-explicações patológicas podem deter o desenvolvimento das leis da vida. Sobrevêm o fenômeno da transumanização em Deus e a alma, embora coberta de ridículo, se encontra em face de tão estupendas realizações, que não pode calar o seu arrebatamento.

O fenômeno revela-se logo como decisivamente super-racional, precisamente porque é transformação de consciência; em seu primeiro passo, supera e anula a razão. Como primeira ocorrência, vem pois a faltar o ponto de contato com a psicologia inferior. É lógico, todavia, que quem voa abandone a terra. A razão pode classificar o fenômeno, não, porém, senti-lo. Transponhamos o portal; a razão não entra. É natural que permaneça fora e, não encontrando repercussão alguma na extensão da própria consciência, negue. Surgem, então, as acusações de histerismo e de neurose, porque de cada boca não pode sair mais que a voz da própria compreensão.

Ingressemos no supersensório e no super-racional, que é uma dimensão completamente diversa da normal dimensão humana. Esta bitola não se presta a medir tais dimensões. Os próprios místicos não encontram palavras na linguagem de todos. A profunda essência do fenômeno permanece inadmissível para a razão e esta, vendo-se negada, nega por sua vez. Assim se excluem reciprocamente. Não sendo o fenômeno sentido como realidade entre as realidades e considerando que todo eu se faz invariavelmente medida das coisas, é ele então definido por incompreensão como um nada que, todavia, para quem sente, contém o infinito, um nada vibrante de paixão e fecundo de esplêndida atividade, sobre-humanamente altruística e benéfica. Eis o que contém o repouso sem principio nem fim de Boëhme, o eterno silêncio de Eckart, a

tranqüilidade e o silêncio da noite de S. João da Cruz. E assim parece absurdo criar uma

possa conquistar uma visão a força de trevas. Em verdade, há uma primeira fase de negação e de treva, mas é um início apenas; depois, vem a ressurreição. Para voar é contudo necessário deixar as pernas, pois enquanto quisermos caminhar, jamais voaremos. Já não se trata de correr a largos passos de razão, mas de voar em intuição e visão. Ora, isso é coisa mui diversa. E os dois mundos se defrontarão, acusando-se reciprocamente de ilusão. Se se não abre uma passagem, eles jamais se compreenderão. Mas, poderiam perguntar-me, se o homem esta fechado na razão, qual o está em sua pele, como logrará um dia sair? Como se pode sair da própria consciência? Evidentemente que é por força de evolução. Não é esta uma continua emersão de sob os envoltórios da própria semente? Há esta imensa impulsão interior que contém todos os desenvolvimentos e é um impulso de Deus para a sua manifestação.

O místico exclui a razão. Não a mata, supera-a; não a perde, transmuda-a. A alma encaminha-se para Deus; para que mais podem servir os raciocínios do intelecto? Como se podem avaliar certas altitudes espirituais com os meios feitos pelas pequenas distâncias psicológicas da terra? As demonstrações racionais, as argumentações filosóficas podem constituir uma aproximação, aliás, muito imperfeita da idéia de Deus, mas em sua essência, não comporta imagem, assim também não comporta demonstração. Pretender demonstrar-Lhe a existência equivale a negar a sensação direta d'Ele e fechar as grandes vias de comunicação com Ele,que são as vias da fé. Satisfeito, o intelecto então se cega, porque se sente muito melhor com os outros meios. Outra coisa é o conhecimento de Deus: é mais um deixar-se levar do que uma laboriosa pesquisa; é o assomar da alma acima do plano da razão, em uma visão nua, que já não comporta imagem, já não encadeia, nem reduz o divino na representação. A consciência deve ressurgir em uma luminosidade tão clara, vasta e imediata, que nela não podem insinuar-se estas densas e opacas vibrações inferiores, como os sentidos, a razão, a observação, a distinção, a lógica. A visão torna-se pura, simples, unitária.

XVI