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Segunda Parte

XIX TENTAÇÃO

Quanto mais a alma sobe, tanto mais é agredida pelas forças do mal. A lei do equilíbrio contém suas reações. Quanto mais sofreres e mais subires, mais subirás e mais serás tentado, porém, mais forte serás, também, para vencer.

Estas forças adquirem figura concreta: Satanás. É a imagem do homem quando o mal se apossa dele; a força se personifica em nós quando somos malvados. Ele é, portanto, real e próximo. É uma vibração presente em nossa consciência. Está entre nós, dentro de nós.

Aparece também nos grandes místicos o momento secreto e terrível, no qual o grande sonho sentido no ardor da fé se decompõe num caos horrendo. É a desforra da baixeza, a hora das trevas. E o Getsêmani,é a zombaria da loucura embriagada e triunfante que se diverte com o martírio do santo.

Esse insulto é Satanás. É uma força baixa,brutal, enorme, negra, imersa na inconsciência. E uma investida estúpida e feroz: explode, desafoga-se, esgota-se, extingue-se e pára, estupidamente, sem ter alcançado a meta, sem nada ter compreendido de si.

Tenho vivido estas lutas. Então a alma se sente oscilar à beira de um abismo, que abre as fauces para tragá-la. O grande sonho realizado no tormento de cada dia parece ameaçar ruína.

* * *

Começa a luta. O inimigo desce dentro de mim e toma lugar em meu coração.

Sou eu ou é ele? Quem ó que nega e quem é que afirma, dentro de mim? Como me posso cindir assim, entre a minha alegria e o meu tormento, entre o triunfo e a derrota, entre a minha ascensão e a minha abjeção?

Dentro de mim se reúnem as forças do bem e do mal. Sou aquelas e estas: duas metades de mim mesmo se digladiam horrivelmente.

Começou a luta e em ambos os lados recebo feridas profundas.

"Tu me traíste", diz em mim o homem ao espírito. Sê maldito, traidor de minha vida". "Estou exausto — diz o espírito. Não sou mais, não vejo mais. Senhor, tem piedade de mim".

A minha alma se arrasta, perseguida pelo inferno terrestre. A realidade de todos me insulta e me repudia. "Idiota", dizem-me. A multidão repete: "Louco, morre. Bem o mereces".

Meu corpo tem fome, está cansado. A fonte de meus cantos estancou na garganta seca. O mundo me diz: "Morre". No entanto, foi por sua dor que eu ouvi, me comovi e me entreguei.

Peço auxílio. Motejando, Satanás murmura: "Se estás ao lado de Deus, pede-lhe que te salve e te levante".

Mas, tudo permanece indiferente do lado de fora. Portanto, eu estou errado e os outros é que têm razão.

Levanto, então, os olhos e grito: "Senhor!" E o céu se abre e uma voz que desce do Alto diz: "Acalma-te, filho!"

Então, encontro força para dizer: "Vade retro,Satana!43"E o mal se afasta. * * *

No entanto, Satanás volta. Minha mente duvida e o mundo grita ainda: “Louco! O teu ideal é absurdo. Não é aqui neste mundo que se pode realizar. Onde está o homem de que falas? Onde esta a punição profetizada, a justiça de Deus? Utopias. No mal, o mundo caminha mais alegremente que nunca. Vai, tolo, caminha sozinho. O mundo sabe divertir-se sem ti”.

"Duvidas? Então, invoca teu Deus para que te ilumine, para que desencadeie a tempestade saneadora, para que refaça o homem. O mundo conhece o seu caminho e não precisa de ti".

E em verdade, o mundo caminha e não pede salvação. Grito, então: "Senhor, ajuda-me! Eu me perco!”

Que posso fazer só e cansado contra o mal organizado e poderoso, rápido e tenaz? E o céu se abre e uma luz desce do Alto e escreve no meu coração: "Acalma-te, filho!"

Então, reencontro a luz e posso dizer: "Vai-te,Satanás". E ele se vai. * * *

Satanás, porém, volta ainda. Meu coração é um deserto. Cada amor humano secou-se dentro dele. Estou só e desamparado. Tenho frio. Primeiro, gritou a fome do corpo e eu venci. Depois gritou a sede da mente e eu venci. Agora, grita a paixão do coração e não sei vencer.

E o mundo me diz: Louco! Quem queres que responda ao teu amor? Caminha, caminha. O mundo sabe bem amar sem ti. O teu coração geme? Pois bem, invoca o teu Deus. Ele que te responda, que te satisfaça e demonstre aos homens o Seu amor.

E vejo o mundo indiferente correr unicamente para suas paixões.

Então, elevo o coração para o alto e grito: "Senhor, amo-Te!" E o céu se abre e uma palpitação desce do alto, freme dentro do meu coração e aí canta: “paz, filho!”

43

"Vai-te, Satanás" ou “Retira-te, Satanás". — Na tradução latina do Evangelho encontram-se estas palavras, dirigidas por Jesus a Simão Pedro, quando este O censurou por haver anunciado aos discípulos Sua grande rejeição, Sua morte e ressurreição. (Marcos, 8:31-33). Encontra-se também expressão semelhante na narrativa da Tentação (Mateus, 4:9,10). (N. do T.)

Então, eu reencontro o amor, lanço a Satanás um olhar ardente e digo-lhe: "Vai-te, Satanás, para sempre, porque eu venci. Unido a mim, em meu coração, esta o meu Deus. As tuas forças não prevalecerão" E Satanás foge precipitadamente, vencido.

O meu corpo, a minha mente, o meu coração não puderam renegar Deus. O caminho da dor era o verdadeiro.

XX

INFERNO

Do longínquo passado de minha involução, pelo oceano infinito do tempo, uma onda desprendeu-se, veio ao meu encontro, envolvendo-me ameaçadora. Agrediu-me e me submergiu.

Era uma força real, um impulso por mim uma vez enxertado no meu destino, emergindo do meu passado, da animalidade ainda não vencida.

Senhor, não soube nem quis vencer as forças do mal.

O meu coração, que era Teu, eu o atirei ao mar. E então a onda me engoliu e me aprofundei no abismo.

O archote de meu amor apagou-se. As águas negras me envolveram; as ondas se amontoaram sobre minha cabeça; a desolação me penetrou até o fundo da alma.

O sorvedouro imenso me apanhou, envolveu-me e eu fui mergulhado até às raízes das montanhas.

As algas se enroscaram em torno de mim, fecharam minha boca, impediram-me de respirar e o mar, sobre mim, tornou a fechar-se para sempre.

Da profundeza do abismo a minha voz não pode mais chegar até meu Senhor. Estou petrificado de horror. Meu desespero e sem esperança. Minha ai ma se desfaz

Que horrível não poder mais dizer: “Senhor. Senhor!”

Mas, eu o mereci. Ele deve punir-me. Sinto apenas a justiça, não mais o amor. Morro porque não posso mais vê-lo. Entre mim e Deus há um abismo que não sei mais superar.

Onde está o meu Senhor? Procuro-o, mas estou cego e nem o saberia mais ver. Estou surdo, não o saberia ouvir. Estou mudo, despedaçou-se a lira do meu canto. Estou morto, no entanto, estou vivo e gostaria de poder morrer.

Conheci Deus e perdi-O. A minha alma é um estrondo de desespero.

Inferno, inferno, aniquila-me em tuas espirais, destrói minha alma, para que tenha fim o meu desespero.

XXI

QUEDA DE ALMA

Que aconteceu comigo? Eu era feliz, dono da luz e da força do espírito; dominava um panorama imenso, era livre e soberano — e daquela luminosa altura fui precipitado a um mar de trevas.

Volto a mim cansado, aturdido, nauseado de mim e da vida.

Que torpor nos membros! O dinamismo do espírito desvaneceu-se, não ficou em mim senão a matéria preguiçosa e inerte. já não sei arrastá-la. Sou pedra entre pedras,abandonada na estrada.

Há um frio de morte nas minhas vísceras. Nos ossos sinto sensação de vazio. Coleio pela terra viscosa, envolto em lodo. Em meu coração há o sentido da minha inutilidade.

Senhor, enxota-me. Eu o mereço.

Eu estava na glória de tua luz quando uma lisonja vã, tenaz, traidora, cheia de atrativos, como um polvo, avizinhou-se de mim lentamente, me estreitou com uma carícia; depois, estreitou-me mais fortemente, paralisou-me cada movimento de defesa e me venceu. Quando eu quis reagir era tarde. Levou-me arrastado, cego, mudo, aturdido, amarrado, para as profundezas

O cansaço me venceu, diminuiu a tensão da subida; a matéria, pronta para a vingança, se apossou de mim.

Deus meu! Como estou triste sem Ti!

Porque, afinal, o veneno doce e traidor exauriu a sua virulência, o espírito começou a se reerguer e s6 agora vi meu depauperamento.

Não tenho mais coragem de orar, já não tenho força para ascender, não tenho mais esperança para agir. Aqui em baixo, o meu belo sonho é uma zombaria. Cristo é um absurdo, porque aqui reina uma verdade feita de estridor de luta e de egoísmo. Aqui não existe a paz de alma. Aqui tudo insulta meu passado. O ideal pelo qual vivi e tudo dei é considerado um ideal de loucura. Reabre os olhos em uma luz tão turva que é quase apagada, obstruída por zonas e nesgas imensas de opacidade. Uma confusão de forças caóticas contorce em mim, numa dissonância pe- nosa, a divina harmonia da vida. Vejo essas forças se entrelaçarem em deformações horrendas que me ferem com seus ângulos pungentes, saltos ásperos e desordenados, impulsos de luta e rebelião. Elas dançam em torno de mim em vértices vertiginosos que me envolvem numa sensação de espasmo, com emissão feroz de gritos desesperados, lá onde havia cantos harmoniosos e paz cheia de alegria. Essas forças deslizam ao longo de um declive sempre mais íngreme, projetadas para medonhas profundidades abismais e lá em baixo as trevas se tornam sólidas a tal ponto que nenhuma espada flamejante de luz as poderá despedaçar. E o vértice é aberto e ativo; uma vez presas as almas em suas espirais, a sua atração as atira para o abismo tenebroso. É um vértice de forças no qual se precipita um fluxo palpitante de almas a urrarem desesperadas, agarradas ao seu desespero.

No terror dessa visão, o meu espírito desperta e, pelo terror, recupero a força para tornar a subir, tenso, à atmosfera rarefeita de que tombei.

Desperta e, enquanto luta,para retomar a subida, ainda o eco dos motejos o segue: "Tolo, tolo! Não vês que enquanto dás, todos os outros só pretendem tomar? E quando tiveres dado tudo, estarás só e ludibriado. Sim, escarnecido ante a terra e ante o céu que, quando quer, fecha suas portas também para aquele que muito lutou e sofreu".

Mas a ascensão está iniciada e recebe forças de seu próprio impulso e o eco dos gritos selvagens de insultos perde-se sempre mais longe, encoberto pelo canto das harmonias dominantes.

Minha alma retomou sua ascensão, reencontrou a tensa o, atingiu a sua atmosfera, onde brilha a mais alta verdade do Evangelho e o eco já não repete o rugido selvagem do egoísmo que insulta — mas repete o canto que diz: “Dá e receberás, ama e serás amado,perdoa e serás

perdoado”.

Cheguei. Estou numa aurora iridescente de luzes. Em Deus tudo resplandece numa alegria infinita, repousa numa harmonia suprema. A minha alma reencontrou a sua paz.

Estes não são sonhos, nem fantasias de poeta. São forças vivas em ação entre as quais me movimentei, e que me abateram e me reergueram; são realidades, imponderáveis embora, mas nem por isso menos verdadeiras e atuais.

É verdadeiro este drama que minha alma viveu, que a destruiu e a regenerou, que sempre a frustrou, para que ela conhecesse o terror da treva sem esperanças.

XXII

No documento Segunda Parte - A EXPERIÊNCIA I — Em Marcha (páginas 115-121)