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Segunda Parte

XVII PROFETISMO

Hoje subi as alturas do tempo e dos horizontes longínquos ouço emergir ressonâncias profundas, atraídas a mim por uma sintonia de pensamento imposta pelo momento presente da vida do mundo. Ouço o cântico poderoso da História que vai e volta, repete-se em ciclos titânicos, lentamente em ascensão, em quedas, em ressurreições, num renovamento sempre mais alto de vida, no qual, entretanto, sempre reponta o passado. Em ondas, nascem e morrem, vêm e vão as civilizações sobre o grande mar do tempo. São elas as palpitações da progressiva idéia de Deus, que vai sempre em rumo a sua realização.

Tudo isto ressoa em mim, torna-se uma vibração minha e nela mergulho. E então o vórtice me agarra e me transporta num turbilhão onde ouço os sonidos invocadores da vida. Ouço o encalço das horas, o iminente precipitar dos equilíbrios, a tempestade furiosa as portas — ouço a voz de Deus que anuncia a maturidade do tempo. Gritam os sinais interiores, despercebidos pelos cegos da hora, fechados no cálculo do momento. Sob os céus da História aparecem as procelárias anunciadoras, acordam as consciências mais prontas, sentinelas da vida, e lançam o grito de alarme; levantam-se as vozes admoestadoras e caem como pérolas da magnificência dos céus, antes de cada calamidade.

Ouço um rufar profundo, cadenciado, incessante; ouço o passo do tempo, que avança com ritmo fatal, qual massa fatal, imensa de lava que desce sem pressa e tudo submerge. Onde estão os ombros para segurá-la, os peitos para enfrentá-la? Os tempos são graves e o céu luta ao lado da terra. Não se vive, já, apenas de pão, de números, de riqueza, de poder humano. Poderão as forças do espírito não estarem presentes apenas porque um século de materialismo as negou? As atitudes do pensamento humano não podem desordenar a lei de Deus. E sempre, cada vez que o homem violou os divinos equilíbrios do justo e do bom, a reação justa da Lei se fez sentir. Que levantem, portanto, a cabeça os que dormem. Já não estamos no momento de explicar e demonstrar. Aquele trabalho está pronto. É o momento do choque físico e tangível, que a todos abala e a todos arrasta.

Deus nos ama. É necessário alertar os surdos, os inertes, amansar os rebeldes. É necessário que o mundo aprenda de novo a orar, que na humilhação e na desventura se irmane e reencontre o seu Deus, que foi esquecido. Deus é um caminho de paixão e de amor que se percorre em silêncio no próprio coração; é uma consagração real de si mesmo,é um humilde abraço de irmão a irmão, para se ajudarem reciprocamente ao longo do caminho espinhoso das ascensões humanas.

Nada tema quem tem Cristo no coração. A tempestade purificará. Voarão longe os ouropéis ao vento furioso e a imaterialidade do espírito, só ela, resistirá e sobreviverá. Cairá o humano para que Cristo resplandeça mais alto e mais verdadeiro.

Oséias, Oséias, profeta de Israel! Parece-me ouvir a tua voz superar a barreira do tempo e alcançar-me: "Deus é amor" Esta tua grande palavra, anunciadora de Cristo,que ninguém, nem mesmo Moisés antes de ti havia dito e que tem sustentado a humanidade por milênios, foi o novíssimo verbo eclodido de teu coração de mártir. A dor te fez profeta e profeta de amor.

Vejo-vos todos enfileirados em vosso trabalho, profetas de Israel. Ouço-vos a todos fundidos naquela linguagem imensa na qual ressoam a terra e o céu. Tempos em que a palavra do alto descia palpitante e o homem vivia aliado com Deus. Tempos em que a alma se elevava até alcançar o céu! Que grandeza, este contínuo contato com Deus! Ele parece afastado de nós; entre tanta ciência e sabedoria, parece que perdemos a idéia d'Ele. Ele não esta mais presente em nossas ações nem nos eventos da História. Calculam-se todas as forças, menos a suprema; em todas as posições da vida, não se pensa nunca no impulso maior, que é Deus.

Ouço Isaias: "um resíduo se converte", isto e: uma semente permanece. Podemos hoje repetir suas palavras, que são um pressentimento do Reino de Deus, prometido por Cristo e que o mundo espera: "... os seres não farão dano nem mal, pois que a terra será plena da consciência de Deus, como a água cobre o fundo do mar".

Não. Deus não é um elemento preterível na vida do indivíduo e dos povos. Deve ser sentido, próximo, e o é, somente quando se merece. Só um Deus que esteja na alma, domina as paixões, guia as ações, faz fremir o coração — só este Deus é vida. Portanto, e necessária a desventura para que o espírito atire fora o manto e se apresente de novo nu diante de Deus? Que importa a forma quando nós, na substância, sacrificamos a Moloque e só a admiração de seu fausto está em nosso coração? Então, também nos templos suntuosos Deus se cala porque se afastou de nossa alma. E Deus se vai e fala em outra parte, aos humildes, aos cansados viandantes do ideal, que estão sempre a caminho, como São Francisco, golpeados por todos e sozinhos com Deus.

Então, o destino bate às portas da História, tocam as trombetas anunciadoras, os profetas ressurgem, porque o mundo desperta. Quem ouve e compreende entre tantas vozes falsas e confusas? Devemos então, repetir o fatal "Dies irae dies illa"41 ainda hoje vivo na arte, na liturgia, na música, o Dies irae do profeta Sofonias?42 De que será feito este povo-resíduo que será semente da futura civilização? Será um povo não visto hoje, como era o primeiro grupo de soldados de Cristo na grandeza romana, um povo feito de humildes e piedosos, que hoje sofrem, sentem e esperam. E de que servirá ao mundo a força sem o direito, o poder sem a justiça, a ciência sem a consciência? Ai de quem usar a espada, porque morrerá pela espada. A ordem ética despedaçada trará destruição.

Como se ora de outro modo quando o destino ameaça e a dor golpeia, diferente de quando tudo é tranqüilo, o céu parece assegurado, a vizinhança de Deus garantida pela autoridade da terra! Mas, a fé é tempestade e não um trono de glória; é tormento de ascensão, não aquiescência passiva. É um dinamismo incessante, tremendo, um espasmo de alma á procura de Deus.

41

"Dies irae dies illa...": "O dia da cólera (justiça), aquele (terrível) dia....". Primeiros versos de um hino medieval de Frei Tomás de Celano, discípulo e primeiro biógrafo de S. Francisco de Assis. É uma evocação do dia do Juízo Final — informa Paulo Rónai - e faz parte do oficio dos mortos. (N. do T.)

42

Considera-se o hino de Celano inspirado no profeta Sofonias: “Está próximo o grande dia de Iavé! "Dia de angústia e de tribulação (....)” (Sofonias, 1:14-18, 2:1.3). (N. do T.)

Quereria gritar com Jeremias: "Oh! o meu peito, o meu peito! Que sofrimento terrível! Oh! o meu coração! Como se sobressalta! Não posso ficar quieto, porque minha alma ouviu o som da trombeta, o grito da guerra!"

Jeremias, que todo se plasmou segundo Oséias, por reviver-lhe todo o amor e toda a dor; Jeremias, a mais alta e pura expressão do Profetismo hebraico! Quereria repetir seus conceitos, que exprimem a essência das religiões, ou seja, a superioridade da substância sobre a forma, de um coração puro sobre as ações exteriores. Melhor: "... os pagãos que observam com verdadeira fidelidade e com perfeita devoção a sua religião falsa e insensata — eles são em verdade mais agradáveis a Deus, do que vós, que possuís o verdadeiro Deus mas o esqueceis e lhes sois desobedientes". E Jeremias, que ousara dizer tão graves palavras, morreu em terra estranha, lapidado por seu próprio povo!

Mas Jeremias falou também as portas do exílio babilônico, que transformou o povo de Israel e a sua religião, joeirando grão por grão, separando o bom do mau, o essencial do supérfluo. Nas grandes curvas da História, a terra tem de ser dolorosamente revolvida até o mais profundo, para estar preparada para as novas germinações. E o exílio na dor purificou Israel até que subsistiu apenas aquele resíduo, aquela semente de que falou Isaias. E os ciclos retornam e a História se repete. Entre as labaredas de Jerusalém destruída eram despedaçadas também as velhas formas, mas o espírito que estava no profetismo e não pudera ser queimado, sobreviveu. O Estado estava destruído e a religião separou-se dele,ficou leve, como liberada e pôde elevar-se de novo e viver mais no alto; até que Ezequiel foi ao seu povo para lhe ensinar o amor de irmão para irmão e a força dos vínculos espirituais que sabem fundir as almas, formando e mantendo a unidade ideal acima de qualquer forma e contra qualquer ataque material.

Como na sua grande visão da nova Jerusalém, aflora hoje nos espíritos um vago pressentimento da nova civilização do terceiro milênio, na qual a Igreja será verdadeiramente poderosa e invencível, porque feita apenas de espírito.

Oh! que tremendo trabalho este nascer, viver e morrer, para renascer, reviver, remorrer — este dever de evoluir para levantar-se das quedas, para redimir-se na dor, para liberar-se e retornar ao espírito!

Voltamos as fontes, a virgindade das origens, à pureza da primeira nascente. Surge a eterna visão que abalou Zacarias. E a História pulsa e palpita pelos mesmos eternos movimentos que a empurram laboriosamente para a frente. O mal triunfa abertamente e os puros de coração, que sofrem inclinados sobre os sulcos, enquanto regam com o seu suor a nova sementeira, olham e dizem: "Onde está o nosso Deus de justiça, se os malvados são felizes e os violentos têm sucesso?" Mas, eles não sabem quanto a dor é fecunda. Tudo germina, banhado por linfa divina. Só assim nascem as coisas grandes e fortes que resistem as ventanias e desafiam os séculos, enquanto as criações do mal são pó que tornarão ao pó, lançadas longe pelo turbilhão do tempo. Quem semeia pelos caminhos do bem, semeia e segue, porque a semente germina, contendo já na trajetória do seu movimento, a sua lei de vida e a disciplina de seu desenvolvimento.

Esta idéia da presença de Deus no destino do homem e dos povos, esta idéia que emerge de cada página da Bíblia, idéia que percorre e une todo o profetismo de Israel, não é um absurdo,

ainda que hoje seja um anacronismo. É a idéia fundamental que rege a vida e essa idéia não morreu.

É a idéia-eixo em torno da qual o mundo gira: Deus e homem, homem e Deus. É a própria música do espírito que do profetismo israelita se prolonga no misticismo cristão, como o mesmo contato com Deus. É a mesma conquista de espírito que se efetua, é sempre o mesmo problema que se agita e vive, — o das ascensões humanas.

Esta idéia da presença de Deus no destino do homem e dos povos, esta idéia que emerge de cada página da Bíblia, idéia que percorre e une todo o profetismo de Israel, não é um absurdo, ainda que hoje seja um anacronismo. É a idéia fundamental que rege a vida e essa idéia não morreu.

É a idéia-eixo em torno da qual o mundo gira: Deus e homem, homem e Deus. É a própria música do espírito que do profetismo israelita se prolonga no misticismo cristão, como o mesmo contato com Deus. É a mesma conquista de espírito que se efetua, é sempre o mesmo problema que se agita e vive, — o das ascensões humanas.

XVIII

No documento Segunda Parte - A EXPERIÊNCIA I — Em Marcha (páginas 108-112)