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Meu amigo itabirano

No documento "Só em Beagá", por Eduardo Ferrari (páginas 121-127)

1 de fevereiro de 2008

Como mineiro é uma heresia, quase um pecado, o que vou dizer: nunca gostei de Carlos Drummond de Andrade. Ou, pelo menos, ele nunca esteve entre os meus preferidos. Vinícius de Moraes sempre me tocou mais com suas poesias do que o autor itabirano. É claro que não discuto a importância e a qualidade do poeta mineiro. Ele, assim como Euclides da Cunha e Machado de Assis, é um ícone da literatura brasileira. Mesmo que os gaúchos prefiram Mário Quintana, os pernambucanos es- colham Manuel Bandeira, os paulistas não abram mão de Mário de An- drade e o próprio Vinícius seja a escolha óbvia dos cariocas, Drummond ganha na preferência nacional.

Minha má vontade para com o poeta aumentou depois que vivi al- guns anos de martírio em sua terra natal. Por causa do trabalho, caí no meio de uma mina de minério de ferro, a segunda personalidade mais famosa de Itabira, e o fato é que não fui muito bem recebido por aquelas bandas, principalmente, pelos nativos do lugar. Porque talvez eu tenha me portado como um estrangeiro em terras distantes ou por causa do meu ar arrogante e cosmopolita de quem vinha da cidade grande para ensinar novas lições. Então passei grandes apuros nas mãos dos itabiranos e não pude deixar de pensar em Drummond como produto daquele lugar.

Em Itabira, todos acreditam que podem produzir textos com o mesmo talento que o poeta conterrâneo e o resultado é uma avalanche de

frases desconexas, plágios explícitos e versos remotamente recitados ca- pazes de desgastar à exaustão mesmo a obra mais completa. Foi assim que entendi porque o próprio filho da terra a transformou apenas em um re- trato na parede e preferiu encerrar seus dias no Rio de Janeiro.

Apesar de todas essas pedras no meio do caminho, eu tive um amigo itabirano. Um sujeito simples e que talvez por isso tenha sido um dos úni- cos que não ficou com o orgulho ferido por causa da minha presença. Todas as manhãs de segunda-feira, Rinaldo, o motorista que atendia ao meu departamento na empresa, me buscava na rodoviária e era respon- sável pelo primeiro bom dia da minha semana. Em geral, era ele quem me fazia rir logo cedo depois de eu ter acordado às quatro horas da manhã e enfrentado mais de duas horas de viagem num ônibus precário na via- gem entre Belo Horizonte e Itabira. E sempre foi ele quem se oferecia para me buscar, uma ação que estava além de suas obrigações e que por isso mesmo provocava um certo ciúme no restante das pessoas que traba- lhavam comigo.

De fato, alguns dos outros itabiranos presentes há décadas nas mes- mas cadeiras sempre se acharam donos dos seus lugares e mesmo não tendo cargos hierarquicamente maiores do que o meu (como dizemos no mundo corporativo, eram não mais do que pares), tentaram de todas as formas dar ordens em Rinaldo para que ele não fosse meu amigo. Ainda assim, mesmo quando eu não pedia, lá estava ele.

Houve um tempo, em que eu praticamente ia e voltava quase todos os dias de Itabira e Belo Horizonte, logo após o trabalho. Quando perdia um ônibus, geralmente o das 18 horas, só conseguia pegar outro, uma hora e meia depois e chegava em casa quase às dez da noite. No das seis eu já jantava com minha esposa e filho perto das oito e meia. Rinaldo sem- pre me oferecia sua carona preciosa, além do seu turno de trabalho, me deixando na estrada para pegar o ônibus que eu havia perdido na rodoviária.

Além disso, nas diversas noites em que eu fiquei em Itabira, Rinaldo era o único com quem eu tinha a oportunidade de conversar sobre outra coisa que não fosse trabalho. Ele me levava até o hotel e sempre faláva- mos sobre futebol e viagens. Sofreu muito comigo que sou torcedor do Cruzeiro enquanto ele era o atleticano mais chato, mas também bem hu-

morado, que conheci. Não foram poucas as vezes que um fugiu do outro em dias de vitória do rival apenas para não ter que agüentar a gozação alheia.

A mesma estrada por onde rodei semanalmente mais de mil quilômetros durante quatro anos, levou meu amigo itabirano. Cansei de, entre idas e vindas, ver acidentes fatais na rodovia que faz o caminho entre Belo Horizonte e João Monlevade, uma cidade que prossegue além de Itabira, e que tem seu trecho mais perigoso próximo à serra de Caeté. Al- guns eram conhecidos meus que também trabalhavam na mesma em- presa, mas o acidente que levou Rinaldo me marcou muito mais. Soube da notícia de sua morte por um telefonema de umas das pessoas que, ironicamente, chefiava o movimento “não deixe os itabiranos ajudarem forasteiros”.

Na segunda-feira, quando cheguei à Itabira, fui ao velório de Rinaldo, mas não vi sua face de morte. Preferi ficar de longe. Guardo na memória a imagem da última carona que recebi dele e, quando a caminho do meu ônibus, ficou a promessa de uma visita à Belo Horizonte para conhecer minha família. Ele se despediu de mim sorrindo e disse que no próximo jogo entre o Galo e a Raposa iria incluir minha casa no roteiro para comemorar a vitória atleticana.

Não se passou muito tempo e o destino também me libertou de Itabira. Eu sequer consigo me lembrar em que época ocorreu o acidente que matou Rinaldo. Mas sempre que me lembro das lições itabiranas, os encontros e desencontros profissionais têm pouca relevância. Rinaldo, aquele sujeito simples que era “apenas” um motorista, me deu as ver- dadeiras lições que alguém pode querer aprender na vida — respeito, afeto e solidariedade. Eu nunca mais estive em Itabira, mas por causa dele Itabira vai sempre estar em mim. Desde então, fiz as pazes com o poeta maior.

No documento "Só em Beagá", por Eduardo Ferrari (páginas 121-127)

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