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"Só em Beagá", por Eduardo Ferrari

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Academic year: 2021

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Histórias, crônicas e reportagens

sob o olhar de uma cidade

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cadorias, as cidades são, por isso mesmo, o relato-síntese das regiões onde estão incrustadas. O seu res-surgimento ao final da Idade Média anunciava, desde já, o reaparecimento do comércio em larga escala, desalo-jando o ruralismo mítico europeu para, enfim, alargar as fronteiras do conti-nente a todos os cantos do mundo. Antes da modernidade, portanto, cristalizada nas chaminés e no di-nheiro, vieram as cidades.

Em Minas Gerias, as aglomerações ur-banas nasceram a esmo, pulverizadas e desconexas, ao entorno das jazidas de ouro e diamante. O surgimento de Belo Horizonte, comprovando o papel de síntese regional desempenhado pelas cidades, refletia a decadência de todo um Estado, ameaçado, desde sempre, a nunca existir como uma unidade territorial.

Uma cidade que "caiu do céu", habitada por mineiros "inventados" pela elite dirigente local, tem, por si só, especificidades marcantes. Merecia, ou exigia, um cronista que

passeasse por suas ruas, visse seus monumentos e casarios, observasse a sua gente e seus costumes para encontrar, em tudo isso, História e estórias.

Tal como Nicolai Gogol imortalizou São Petersburgo num caminhar pela Avenida Niévski; tal como James Joyce eternizou Dublin ao narrar um único e desesperado dia na vida de um homem; Eduardo Ferrari coloca Belo Horizonte ao alcance de todos, numa narrativa despretensiosa e singular.

Nos transcursos que faz, reencontra a cidade que abrigou sua infância, a sua juventude — a sua história pessoal, enfim. Mas, mais do que isso: avista uma cidade dos dias que correm, divisando nela seu próprio passado (ou o que sobrou dele), e indaga a res-peito do tempo aberto à frente. Ape-nas por isso, sem precisar de mais nenhuma razão, "Só em Beagá" é leitura obrigatória.

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Belo Horizonte | 2008 1ª edição

Histórias, crônicas e reportagens

sob o olhar de uma cidade

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Esta obra é uma co-edição Medialuna Comunicação e Editora e Mondana Editorial. Todos os direitos reservados. Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra,

por quaisquer meios, sem a prévia autorização das editoras.

Esta obra integra o Projeto Letras Gerais, iniciativa

© 2008, Eduardo Ferrari

Av. do Contorno, 3.861 conj. 101 - São Lucas 30110-021 - Belo Horizonte - MG

Telefone (31) 3309-2420 Fax (31) 3309-2423 www.medialuna.com.br

Concepção e edição Design gráfico, editoração e capa Revisão

Eduardo Ferrari

Christina Castilho | Mondana:IB Andréa Simões Lobato Moreira Maria Carmen Lopes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ferrari, Eduardo.

Só em Beagá: histórias e reportagens sob o olhar de uma cidade / Eduardo Ferrari — 1. ed. — Belo Horizonte : Medialuna Editora : Mondana Editorial, 2008.

ISBN978-85-61242-06-0

1. Artigos jornalísticos 2. Belo Horizonte (MG) – Descri-ção 3. Belo Horizonte (MG) – História 4. Crônicas brasileiras 5. Jornalismo – Belo Horizonte (MG) I. Título.

08-05973 CDD-070.444098151

Índices para catálogo sistemático:

1. Belo Horizonte : Minas Gerais : Crônicas jornalísticas 070.444098151

www.letrasgerais.com.br

Rua Fernandes Tourinho, 470 s/ 709 - Savassi 30.112-000 - Belo Horizonte - MG

Telefax (31) 3287-5544 www.mondana.com.br

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Ivana, por idealizar este livro e por me tornar uma pessoa melhor do que realmente sou. Pedro e Gabriel, por serem minha credencial humana. Danilo Jorge, por quase me convencer de que eu escrevo bem. Sílvio Ribas, por ter me dado a idéia de criar um blog.

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Sumário

Prefácio A cidade desconhecida Os mineiros inventados Ordem e progresso na terra do sol O morro dos ventos ruminantes Vive la indifference!

Os garatujas das montanhas Alice passou por aqui Horizonte perdido A cidade da razão Liberdade, liberdade

Foi um rio que passou por uma cidade O mercado que quase veio abaixo Assim como em ''Babel''

Perdidos no espaço O último café da praça Save our yellow cabbies Artigo 334

A grande feira de artesanato do Brasil No espelho

Il viaggio di un discendente italiano Como professor Higgins diria: — Bullying! Quando fiz as pazes com o leite

Crianças dos “malls” Os gritos do silêncio

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65 67 69 71 74 76 78 81 85 87 90 92 94 99 103 105 107 109 111 113 117 119 Lendas urbanas

O dia em que o capeta subiu a montanha A lenda da mulher fantasma

O homem da camisa amarela

As gêmeas esquecidas de Santa Tereza A última passagem de 200 almas O menino que quase virou um burrinho Atleticanos com cruzeirenses

Balada de um gorila latino-americano Gostosuras ou travessuras Com que letra eu vou?

Alma, Corpo e Mente Brincadeira de criança A palavra é...

The book is on the table Relógio de sol Muito além do jardim Primeira, segunda e terceira Não é de ninguém

''Era uma vez'' não é mais aquele Maior Abandonado

Brincadeiras de pai para filho Esta é a imagem de BH? Epitáfio

Rapsódia em outubro Meu amigo itabirano

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Prefácio

A cidade desconhecida

“Diga, você que não é daqui, qual imagem tem de Belo Horizonte?”. A pergunta do jornalista Eduardo Ferrari, num dos primeiros textos postados no soembeaga.blog.com, abriu espaço para várias referências sobre a cidade — e muita polêmica — nos comentários dos internautas que visitaram o blog, de fora e de dentro da metrópole.

Há décadas, a capital mineira tenta emplacar uma campanha ou slogan com sua identidade. No início dos anos 80, surgiu “Eu amo a Savassi”, a região que concentra grande parte do comércio chique. Seguia os moldes do “I love NY”, que existe desde 1970.

Em 1997, ano do centenário da cidade, a campanha voltou com um coração gráfico substituindo a palavra “amo”, num plágio completo da versão novaiorquina. Recentemente, já no século 21, surgiu o selo “Eu amo BH” acrescido do “Radicalmente”, que estampou propagandas na tevê, camisetas, adesivos e outras tantas coisas.

Para Eduardo Ferrari, essa campanha foi uma tentativa forçada de vincular a cidade aos esportes radicais. “Sinceramente, não consigo ver BH como a Auckland brasileira”, diz ele, numa referência à cidade da Nova Zelândia que se autoproclama “capital mundial dos esportes radicais". Segundo Ferrari, nunca houve eventos e espaços na capital mineira que justifiquem o título.

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anos, o jornalista mineiro fala do que considera marcas verdadeiras de Beagá. Conta das imagens que vem registrando há quatro décadas, prin-cipalmente das peculiaridades que só existem, ou existiram, neste e em nenhum outro lugar.

No livro “Só em Beagá” está uma seleção dos textos mais significa-tivos sobre a capital mineira no blog de Eduardo Ferrari, entre agosto de 2006 e fevereiro de 2008. Ricas em detalhes e informações históricas, as crônicas do autor são verdadeiras reportagens sobre a cidade.

Num passeio pelas páginas a seguir, o leitor descobrirá esta Belo Horizonte onde vive o único exemplar de gorila de toda a América do Sul; onde está a maior feira em espaço aberto da América Latina; onde foi inventado o jogo de peteca; e onde, em plena era de combate à pirataria e ao contrabando, um “shopping popular” — imenso aglomerado de camelôs — cresce com as bênçãos dos órgãos públicos e já é ponto turís-tico obrigatório.

O leitor também se surpreenderá com as versões criativas paras as famosas lendas urbanas da Loira do Bonfim e do Capeta do Vilarinho. Então me diga, você leitor, era essa a imagem que tinha da cidade?

Ivana Moreira

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Ordem e progresso

na terra do sol

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12 de Dezembro de 2007

Ao longo da existência de Belo Horizonte, a campanha de construção da civilização foi, como escreveu Euclides da Cunha, um refluxo para o pas-sado. Há 110 anos, o Brasil tentava encerrar o modelo imperial. Uma nova cidade incrustada nas montanhas de Minas era um sinal desses tempos. En-tretanto, na tentativa de romper com o passado, seus construtores perpetua-vam um jeito de ver o mundo como os nobres o viram durante séculos.

Para tirar o poder de Ouro Preto, dos coronéis e das famílias abas-tadas, quase todas ainda ligadas à monarquia, uma nova capital foi plane-jada. Um dos seus lemas era a higienização, com largas avenidas, praças e amplas sedes para o poder público — que ainda podem ser vistas no en-torno da Praça da Liberdade. Um só caminho levava a todos os pontos da cidade: a Avenida 17 de dezembro (hoje, do Contorno), dia originalmente escolhido para a inauguração da Capital de Minas, mas que teve sua data alterada em cinco dias devido ao medo de protestos de grupos da antiga Vila Rica. Se eles vieram, chegaram com a cidade inaugurada.

Enquanto o Brasil republicano, da ordem e do progresso, construía uma nova civilização nas montanhas mineiras, outra era expugnada nos sertões baianos. Essas duas palavras do dístico da bandeira nacional

aju-(1)O título deste post é uma referência a “Deus e o diabo na terra do sol”, filme de

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dam a explicar porque isso aconteceu. De inspiração na criação do filósofo Augusto Comte, originalmente agregadas em três significantes (“O Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim”), o modelo re-publicano nacional esqueceu convenientemente o amor. Bastava ordem e progresso, sentenciavam. Em nome da ordem uma nação foi destruída. Em nome do progresso outra nação foi construída.

Belo Horizonte se tornou o símbolo da jovem república, dos novos tempos para o Brasil, mas significou o fortalecimento da exclusão social. Enquanto prédios, avenidas e praças nasciam entre as montanhas; case-bres e pessoas eram dizimadas na terra do sol pelo exército brasileiro por um único crime de serem pobres. Em Minas, a tentativa de construir uma nova cultura falhara e as mesmas elites que dominaram as cidades coloniais mudaram apenas e progressivamente seus endereços para a nova capital.

Mas “Canudos não se rendeu” e todo o significado de sua morte ajuda a explicar porque ainda hoje ricos e pobres travam sua batalha so-cial no Brasil. Belo Horizonte, a primeira cidade planejada do Brasil, é o reflexo dessa exclusão social onde ocorreu mais um “esmagamento ine-vitável das raças fracas pelas raças fortes”.

Por aqui, ninguém gosta de se lembrar dessas derrotas da capital mineira que levaram nos últimos 110 anos ao crescimento sempre pro-gressivo da exclusão social, mas que começou ainda nas primeiras mal traçadas linhas de seus criadores.

As campanhas dos governos locais preferem ser ufanistas. Talvez seja por isso que a cidade não comemora seu aniversário com um feriado mu-nicipal, como fazem cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Porque os mortos em nome da ordem e do progresso merecem no mínimo um silêncio respeitoso. Fechemos esta crônica.

NOTAS DO AUTOR

I. Todas as citações são do livro “Os Sertões", de Euclides da Cunha. Em 1897, Canudos foi vencida em outubro quase ao mesmo tempo em que Belo Horizonte ficava pronta e se preparava para sua inauguração.

II. Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, completa hoje, dia 12 de dezembro de 2007, seus 110 anos de existência. Eu nasci nessa cidade em julho de 1968. São quase 40 anos de convivência, de chegadas, de partidas, de amores, de dissabores, de erros, de acertos. Sou belorizontino e justamente por isso me reservo o direito de ser crítico em relação à minha cidade. Ainda bem.

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(1)O título deste texto é apenas uma citação incidental do original “O Morro dos

ven-tos uivantes”, de Emily Bronte, escrito em 1827, porque quando publicado teve uma reação de rejeição. A diferença é que “ruminantes” é um predicado auto explicativo do conceito que se faz de alguns mineiros.

O morro dos

ventos ruminantes

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01 de Novembro de 2007

A mineiridade está se transformando num mito vazio. Perdi a conta das vezes que vi em jornais, ou de outros autores mineiros, que nascer entre as montanhas proporcionava prospecção, comedimento, sabedoria, conciliação e inteligência. De fato, penso que esse sentimento rima mais com palavras como medo, mentira, hipocrisia, comodismo e atraso. Quando eu era adolescente e li que Otto Lara Resende escreveu que “o mineiro só era solidário no câncer”, eu confesso que achei um exagero e uma piada de mau gosto. Mas nada como uma ou duas décadas de expe-riências vividas para reconhecer quem estava certo.

Não por um acaso veio de Minas a figura mais famosa do governo Lula e que ganhou o apelido de “Valerioduto”, o publicitário Marcos Valério. A prática de se usar as agências de publicidade para financiar eventos do governo não é nenhuma surpresa para os mineiros. Durante anos, em administrações dos mais diversos grupos partidários, de direita ou de esquerda, foram as agências de publicidade mineiras que repas-saram o dinheiro para financiar sem licitação diversas ações, algumas com

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ampla divulgação e apoio da mídia.

É claro que corrupção não é uma exclusividade mineira, mas fica ine-vitável acreditar que por aqui o hábito das confidências deixou apenas maus exemplos. Ou será que alguém acreditaria ver por aqui uma cam-panha como a da paulista Fiesp — “Eu sou contra a CPMF”? A história de obediência das entidades patronais mineiras às vontades dos governos, sejam municipais, estaduais ou federais, é histórica.

Os falsos portadores da mineiridade tornam o estado um mau exem-plo em várias áreas. Este é um lugar onde mérito profissional perde para a escolha dos amigos; onde a competência é menos importante do que quem indicou e os resultados ficam em segundo plano quando o lucro fica com quem assina os documentos.

Essas figuras abissais são como fantasmas que assombram em vários setores e envergonham Minas. Nesses dias de comemoração do halloween temos que ter medo é desses vivos. Agora e provavelmente depois deste texto serei julgado figura não grata por muitos moralistas e porta-vozes do sentimento mineiro. Não me importo. Se, como diziam no tempo em que eu era menino numa escola pública, a carapuça serviu, fiquem à vontade para não serem anônimos.

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(1)A expressão “vive la diffèrence” surgiu em Paris, na França, ainda na década de 60,

para promover a valorização das diferenças entre homens e mulheres, em plena re-volução sexual. Depois virou lugar comum pelo mundo afora na boca de pessoas que diziam que ser diferente é que era bom. Todos deviam ser diferentes, o que tam-bém é um outro jeito de dizer que ninguém é. Belo Horizonte parece acreditar que a indiferença é um caminho melhor do que o respeito às diferenças.

Vive la indifference!

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12 de Agosto de 2007

Quanto mais eu vivo, mais fé tenho no Brasil. Às vezes e entretanto, confesso que o problema do Brasil são pessoas que deveriam ser a sua solução. Não faz muito tempo, tivemos um presidente que, fosse a um país mais civilizado, teria sido um sucesso. Fernando Henrique Cardoso tinha tudo para dar certo. Sociólogo, doutor, engajado em causas sociais, democrata, história de lutas políticas contra a ditadura. Nada disso foi garantia de um bom governo.

No outro lado da moeda, mais uma vez, um modelo de presidente que também tinha tudo para dar certo, Luiz Inácio Lula da Silva. Reti-rante, operário, líder sindical, fundador de um dos maiores partidos democráticos do país, um modelo de cidadão que se fez por seus próprios méritos. Mais uma vez, um revés na expectativa da população.

Pessoalmente, tenho uma teoria sobre o que acontece com a elite brasileira a partir do exemplo do microcosmo de Belo Horizonte. No fim

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da década de 80, Belo Horizonte foi considerada numa pesquisa da ONU a melhor cidade da América Latina para se viver. Era a trigésima colocada no ranking mundial. Sempre achei um exagero, mas uma capa na Na-tional Geografic dava credibilidade ao resultado. Logo depois, outra pesquisa feita à época pela Unicamp dava sinais preocupantes sobre o pensamento local. Entre as capitais abaixo da região nordeste, BH era a que tinha o maior índice de xenofobia contra imigrantes — 65% da população reprovava a chegada, principalmente, dos nordestinos para viver e trabalhar na cidade.

O fato é que Belo Horizonte perdeu muito em qualidade de vida nos últimos dez anos e essa perda coincide com o crescimento econômico local. Como explicar essa contradição e a xenofobia local? Simples: a cidade recebeu e ainda recebe grandes investimentos. Isso faz com que os imigrantes do norte que, naturalmente, já passariam por aqui, uma vez que a cidade está na rota para São Paulo e Rio de Janeiro, acabem ficando ao invés de seguirem viagem.

Assim, o cinturão de pobreza apenas aumentou enquanto a elite en-riqueceu. Beagá tem uma característica única em relação a outras capi-tais. A parte rica vive num raio muito restrito ao redor da avenida do Contorno, chega no máximo até a reunião do BH Shopping, no bairro Belvedere, quase uma cópia da Barra, no Rio de Janeiro, só que sem a praia.

Alguns bairros, como Carmo, Funcionários, Lourdes, Mangabeiras e Sion, têm IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) de países nórdicos e superam um nível de alto desenvolvimento humano (IDH-M de pelo menos 0,800).

Enquanto isso, outras regiões da cidade têm resultados inferiores aos piores municípios brasileiros, que não por um acaso, também estão em Minas Gerais no chamado Vale da Miséria, região do Jequitinhonha. Para as pessoas que vivem na parte rica, esse complexo de cidadão do primeiro mundo, gera uma arrogância muito peculiar e, talvez, pouco conhecida de quem é apenas um turista ou forasteiro de passagem pela cidade.

Então, a cidade quase sempre pacata revela nessa população seu traço de personalidade sombrio. Quanto mais endinheiradas e esclarecidas (sinto muito, mas não posso denominá-las “cultas”) as pessoas, mais

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dese-ducadas e arrogantes se tornam. Essa situação se reflete no dia-a-dia da cidade e ajuda a explicar muita coisa. Porque Belo Horizonte tem um dos piores trânsitos do país? Ora, por causa dessa característica. Porque os motoristas brigam até em estacionamento de shopping center por uma vaga? Pronto, mais uma vez a tal característica. Porque os administradores públicos locais ignoram as reais necessidades da população, como segu-rança, e afirmam ser este o estado que mais cresce no país? Mais uma vez, vem a arrogância como explicação.

Belo Horizonte é uma cidade arrogante e tem vários exemplares hu-manos nessa linha de frente. Em geral, nos restaurantes, as pessoas mal-tratam os atendentes porque ao pagarem pelo serviço acreditam que têm esse direito. Se estiverem num carro melhor do que os outros, acreditam que podem parar em fila dupla ou invadir a contramão, mesmo num pátio interno de manobras, porque são mais importantes do que os ou-tros e estão acima das leis.

Até aquelas pessoas que deveriam dar o exemplo porque viajaram para fora do país, e conhecem outras culturas, ao chegarem aqui ficam mais arrogantes ainda. Mesmo que em suas estadas no hemisfério norte tenha sido cidadão de segunda classe (embora não o confessem em público), se julgam no direito de ser arrogantes. Essas pessoas, e não são poucas em Belo Horizonte, porque ocupam quase todos os metros quadrados da avenida circular da região central, simplesmente não aceitam a diferença — de opinião, de modo de vida ou de valores.

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(1)O garatujas das montanhas é uma figura de linguagem para o personagem fictício da

terras mineiras. Ele, é óbvio, não existe, mas ajuda a explicar a ingenuidade dos mineirinhos diante das grandes metrópoles, como a própria capital da serra do Cur-ral, ou ainda histórias de sertanejos que ao chegar pela primeira vez por aqui com-praram lotes ou áreas inteiras do Parque Municipal de “corretores” que faziam negócios de oportunidade.

Os garatujas das montanhas

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27 de Julho de 2007

A capital de Minas, por vezes, parece ser uma cidade de garatujas. Foi o escritor José de Alencar, ainda no século XIX, que utilizou o termo para definir o que acontecia nos tempos coloniais da capital da terra Brasil. A história é a primeira da coleção “Alfarrábios”, lançada em 1873, onde o autor falava das “pieguices e ingenuidades” de nosso país, segundo suas próprias palavras.

O texto original descrevia o ano de 1659, ou dois séculos antes de sua publicação, quando a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro quase encontrou uma revolução. Para Alencar, pré-homônimo do atual vice-presidente do Brasil, depois de 200 anos, as crianças se mostravam mais espertas do que os adultos do século 17.

Talvez venha daí a utilização do termo. Para psicólogos e pedagogos, nas teorias criadas a partir do século 20, a criança passa pelo estágio da “garatuja” entre dois e quatro anos de idade. Ela, a criança, sente prazer em

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(2)Algumas pessoas me perguntam porque a capital mineira é chamada de a tal “roça

iluminada”, que os próprios habitantes falam. De fato, não tenho certeza, mas o per-sonagem das garatujas é minha teoria. Que cada um crie a sua própria história. traçar linhas em todos os sentidos, sem levantar o lápis, o qual é como se fosse o prolongamento de sua mão. Os traços estão em relação direta com o “eu” (ego) das crianças: quando felizes, as linhas sairão fortes e ocuparão um grande espaço na folha; quando instáveis, deixarão cair o lápis; quando não estão se desenvolvendo bem, não o sabem segurar. Piaget de-terminou esse período de desenvolvimento como pré-operacional.

A capital mineira, assim como a carioca, já teve nomes inusitados. Começou a nascer numa prancheta ainda na região que era chamada de Curral Del Rey. Foi inaugurada como Cidade de Minas e, apenas na dé-cada de 20, virou Belo Horizonte que ganhou o diminutivo de Beagá, na pronúncia das letras que formam a sigla de seu nome.

Talvez porque a capital mineira é muito mais nova do que a capital fluminense, seja compreensível que os belorizontinos estejam passando hoje o que José de Alencar escreveu sobre o século 17 sobre os cariocas, que ainda nem tinham esse gentílico como referência. Dizia Alencar que “o homem é sempre menino até morrer de velhice; e que depois das crian-çadas do pirralho, vêm as travessuras do rapazola, e por último as estre-polias (sic) dos barbaças, as quais são as piores, sobretudo quando começa-lhe a grisar o pêlo.”

Isso talvez ajude a explicar porque algumas pessoas, muitas delas nascidas em Belo Horizonte, dizem que a cidade é a “roça” iluminada(2).

A junção de mineiros vindos de todas as partes do estado para inventar a nova capital uniu o rural com o urbano, as montanhas com os sertões, os pensadores com os construtores, mas não preparou nenhum deles para a cidade quase cosmopolita que seus idealizadores imaginavam. É certo que a cidade salvou Minas Gerais da fragmentação e impediu que as capitais de São Paulo e Rio de Janeiro influenciassem ainda mais os territórios gerais das minas decadentes de ouro e pedras preciosas. E olhem que, ainda assim, a Zona da Mata é tão carioca quanto o Triângulo Mineiro é paulista.

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A capital mineira reuniu uma síntese de um estado síntese do Brasil. Quantas vezes não ouvimos que se o Brasil fosse dividido em regiões menores criaria países com índices europeus, como se territórios menores fossem garantia de desenvolvimento por serem mais fáceis de adminis-trar. Pergunte a grande parte da América espanhola ou da África se isso é verdade e terá, provavelmente, uma negativa como resposta. Além disso, é fácil querer separar o sudeste depois que ele foi construído pelo esforço do nordeste. Lembrem-se que a região rica do país no período colonial estava bem acima do trópico de capricórnio.

Hoje, no século XXI, BH tem um núcleo central onde vivem menos de 500 mil pessoas, menos de um quinto da população, que concentra tudo que acontece por aqui. É, inusitadamente, a planta original da cidade, que fica no máximo ao redor da avenida do Contorno (que ao ser inau-gurada ganhou o nome da data de aniversário, 17 de dezembro). De fato, a cidade teve antecipada sua abertura para 12 de dezembro para impedir que protestantes da capital antiga, Ouro Preto, atrapalhassem o evento — a avenida não resistiu ao nome fictício e virou o contorno de tudo.

Essa característica atravessou um século e fez com que quase todos se conhecessem na cidade. Ainda hoje, é difícil não encontrar alguém que lá no fundo não seja conhecido de alguém da sua família ou de seus ami-gos. Não é à toa que paulistas e cariocas por vezes reclamam que em Minas você precisa ter relacionamentos, conhecer e se fazer conhecer pelas pessoas seja para o que for. Se por um lado isso dá aos mineiros sua fama de desconfiados e de solidários apenas no câncer, conforme escreveu Otto Lara Resende bem antes deste texto, também proporciona a quem con-quista a simpatia do mineiro uma amizade eterna. E isso não é pouco.

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Alice passou por aqui

10 de Novembro de 2006

Numa revista mineira, encontro matéria sobre a venda de aparta-mentos por dia em Belo Horizonte. Vende-se um apartamento de meio milhão de reais por dia e há fila para conseguir desembolsar a quantia. Os dados são baseados em pesquisa sobre o mercado imobiliário mineiro do Instituto de Pesquisas Econômicas, Administrativas e Contábeis de Minas Gerais (Ipead). O levantamento mostra que, desde 2005, foram negocia-dos mais de 300 imóveis nessa faixa de preço.

Descubro, quase por acaso, que a ilha da fantasia está aqui mesmo, dentro da Avenida do Contorno. Ou num raio de até cinco quilômetros ao sul da cidade. Quem não conhece a capital ou está aqui de passagem pode imaginar que Belo Horizonte — tão presenteada no passado por dinheiro da Europa, de onde vieram siderúrgicas e praças para enfeitar o frontispício de palácios governamentais — é a própria Bélgica.

Nada contra os ricos, mas a questão é o outro lado da montanha. Algo como definiu o economista Edmar Bacha, em 1974, quando cunhou a expressão “Belíndia” para o que seria a distribuição de renda no Brasil, uma mistura entre a pequena e rica Bélgica e uma imensa e pobre Índia. Essa mesma expressão foi usada depois pelo escritor Luiz Fernando Verís-simo para criar uma bem-humorada disputa olímpica entre os imagi-nários belgas e indianos do Brasil. No futebol, de cara, dava Índia. Barbada. No golfe, dava Bélgica. Por W.O.

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No campo da distribuição de riquezas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1992 e 1999, o rendimento dos 10% mais ricos e dos 40% mais pobres cresceu percentualmente a mesma coisa. O que significa dizer que, em termos absolutos, o fosso aumentou. Se em 1992 a diferença de renda entre os dois grupos era próxima de R$ 1.800,00, em 1999, último ano em que a pesquisa foi divulgada, ela passou para perto de R$ 2.300,00. Um aumento de R$ 500,00.

Como nunca antes na história deste país, isso ajuda a explicar porque um governo corrupto (o leitor, mesmo partidário, conhece algum governo que realmente não seja?), mas que investiu pesado num programa de dis-tribuição de renda, se elegeu com a maioria esmagadora, mesmo com os formadores de opinião do país tentando impedir.

NOTA DO AUTOR

I. O título é uma referência ao mundo dos sonhos de Lewis Carroll, onde Alice vivia num mundo onde encantamento e perversidade conviviam sem remorsos. Um dia, en-tretanto, ela acordou de volta à realidade.

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Horizonte perdido

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08 de Setembro de 2006

Belo Horizonte carrega o título de ser a primeira cidade moderna planejada do Brasil. Depois dela, vieram Brasília e Goiânia, para citar ape-nas outras capitais. O feito, um colosso para o fim do século XIX, mostrou a falta de visão dos idealizadores do projeto. Este, inspirado em cidades como La Plata e Washington, previa que Belo Horizonte teria 100 mil habitantes quando a cidade completasse 100 anos de vida. Nessa data, em 12 de dezembro de 1997, a população ultrapassava a marca de 2 milhões (mais de 2.000% além do planejado).

A planta original, que consistia apenas na área dentro da avenida do Contorno (na época com o nome de avenida 17 de Dezembro), havia ex-trapolado para dezenas de quilômetros além desse limite. Essa quebra do “Tratado de Tordesillas”(2)começou poucos anos após a abertura oficial da

(1)“Horizonte perdido", o título dessa crônica, é também o nome homônimo do livro de

James Hilton, sobre a descoberta de Sangri-Lá, um mosteiro de monges budistas onde ninguém envelhece. A obra foi publicada em 1933 e sintetizava o descon-tentamento com os valores ocidentais. Acho que é quase isso que aconteceu com BH: o horizonte e ideais de seus fundadores foram perdidos e não importa o que digam sobre a qualidade da cidade. Há um descontentamento no ar e isso pode ser positivo para repensarmos que cidade queremos para nossos descendentes.

(2)Tratado de Tordesillas: acordo entre portugueses e espanhóis que definia qual a área

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capital. Os operários recrutados para a realização das obras ficaram sem lugar para morar e logo foram construídos os primeiros prédios e con-juntos habitacionais fora da área externa da avenida (quase como um anel rodoviário, embora naquela época ninguém soubesse o que era isso) que estavam muito longe da cidade ou da parte dela que interessava aos cons-trutores.

Se faltou visão aos construtores, faltou mais ainda aos adminis-tradores (leiam claramente: prefeitos!) da cidade ao longo desses mais de 100 anos: em toda a história da cidade jamais houve um planejamento consistente que previsse os desafios da grande metrópole que se tornaria. Seria uma irresponsabilidade culpar quem construiu a cidade pelo destino que ela tomou sem eles.

Apenas na década de 40, a cidade realmente começou a ter vida em suas “ruas empoeiradas”, com o primeiro grande movimento imigratório que chegou à capital, vindos de várias outras cidades do interior do estado de Minas Gerais. Mas como a cidade não havia sido planejada para esses “pobres” surgiram bairros inteiros fora da área original — erro que se repetiu em Brasília, com as cidades que surgiram fora do plano piloto ou do “mundo perfeito”(3)das pranchetas.

do Trópico de Capricórnio. O acordo selou a paz entre as nações e funcionou muito bem. No papel. Os portugueses não respeitaram a fronteira e ampliaram o território brasileiro.

(3)Mundo Perfeito: poucas vezes vi a definição desse conceito expressa claramente.

Al-guns publicitários com quem conversei me explicaram que se trata de uma definição subliminar do que é retratado pela publicidade nos anúncios e campanhas: sempre é um “mundo perfeito”, mas que não tem antes, nem depois. Apenas aquele mo-mento. O mais clássico deles é a família reunida para saborear uma margarina (toda a felicidade do mundo no rosto de todos, uma cozinha incrível e o sabor insuperável do produto. E só. Não há nada depois disso. As pessoas que estão assistindo que tentem reproduzir esse mundo para elas).

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Liberdade, Liberdade

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24 de Agosto de 2006

Há algum tempo recebi um “spam” com uma mensagem planfetária que dizia “precisamos impedir a criação da Praça da Cultura em Belo Ho-rizonte”. O argumento é que o projeto irá desfigurar patrimônio histórico, alterar construções e promover a invasão do espaço público que é a prin-cipal praça da cidade, a Liberdade.

Vi pouca ou nenhuma cobertura da imprensa local sobre o projeto em si (que inclui reformular os prédios históricos ao redor da praça como centros culturais, teatros, cinemas e restaurantes) e quais serão as altera-ções na praça, mas sinceramente achei a discussão e, principalmente, este spam muito rasos. Fica parecendo a verdade: discussão de terceiro mundo e de quem tem pouca informação sobre o assunto.

Basta ver exemplos de lugares mais desenvolvidos, como o Royal On-tario Museum (ROM), o maior museu de Toronto e do Canadá, que está passando por um projeto que une a construção centenária com formas modernas, ou o Wembley Stadium, em Londres, que teve preservado ape-nas seus pilares da entrada, ou ainda o Louvre, em Paris, que já teve

(1)Nome original de uma das obras pioneiras do teatro de resistência, a peça Liber-dade, LiberLiber-dade, escrita por Millôr Fernandes e Flávio Rangel, reúne textos de

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grandes obras (ou alguém imagina que a cúpula em forma de prisma é do século XIX) para citar apenas alguns.

Mesmo Belo Horizonte tem um ótimo exemplo nessa área. O Minas Tênis Clube, o maior e mais tradicional clube da cidade, reconstruiu em 2001 seu ginásio esportivo nas proximidades da própria Praça da Liber-dade. Demoliu o antigo, da década de 40, e ergueu uma arena multiuso de última geração. Quaisquer protestos sumiram, assim que o novo espaço tomou conta da paisagem, mostrou sua funcionalidade e revitalizou a região.

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(1)O título do post é uma referência incidental e intencional da canção “Foi um rio que

passou em minha vida”, de Paulinho da Viola: “Minha alegria voltar / Não posso definir aquele azul / Não era do céu; nem era do mar / Foi um rio que passou em minha vida / E meu coração se deixou levar”. A letra, composta em 1970, é uma homenagem à escola de samba Portela, feita após uma desavença do compositor com os diretores da agremiação. Paulinho da Viola, nascido e criado na Portela, não voltou mais a des-filar pela escola depois de escrever essa canção. Numa figura de linguagem, Beagá nasceu por causa de um rio e o rio morreu por causa de Beagá.

Foi um rio que passou

por uma cidade

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01 de Dezembro de 2007

Belo Horizonte são águas passadas. Por baixo de quase todas as suas principais avenidas passam rios ou pelo menos o que sobrou deles. Não mais do que há duas décadas, a própria Afonso Pena, a principal avenida da capital, expunha seu córrego. A canalização era fechada apenas até a praça Tiradentes. A transformação desse e de dezenas de outros rios em tubos de esgoto, no pior sentido da palavra, vem desde o início da história da cidade quando seus construtores pensavam em “higienizar” as avenidas escondendo os córregos ao invés de integrá-los à paisagem e se fortale-ceu, recentemente, a partir de 1979, ano em que a cidade foi vítima da maior enchente de sua história.

Naquele tempo, o rio Arrudas, ainda não totalmente canalizado, subiu dezenas de metros além do seu leito e as águas invadiram as escadas

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de embarque da rodoviária, algo perto de 10 metros de altura acima da Avenida Andradas onde o rio fica escondido. Por aí, se pode imaginar o volume de água que saiu do rio. Assim como hoje, os políticos da época, prefeito de Belo Horizonte Maurício Campos e governador de Minas Francelino Pereira, colocaram a culpa das enchentes no grande volume de chuvas que caíram sobre a região. Notícias que a cada ano se repetem no discurso das autoridades com o apoio da própria imprensa que se limita a dizer quantos morreram e o volume de águas por centímetro cúbico.

Um passeio pela região Centro-Sul da capital esconde dezenas de córregos, rios e riachos desaparecidos. As avenidas Bandeirantes, Uruguai, Nossa Senhora do Carmo, Agulhas Negras, Mem de Sá, Francisco Des-landes, Prudente de Morais, Brasil, Bias Fortes, Francisco Sales, Carandaí, Alfredo Balena, Silviano Brandão, além das já citadas Afonso Pena e An-dradas, mostram o potencial de nascentes destruídas e o impacto am-biental que a urbanização provoca. Quem se preocupa com outros em-preendimentos, como mineração, por exemplo, deveria saber que o maior impacto ambiental que pode existir é o da criação de uma cidade.

Outro agravante é o que se esconde por baixo dos rios desaparecidos. Recebo um trabalho de um grupo de alunos do curso de engenharia civil da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que fez um estudo sobre o desgaste das lajes de fundo das galerias de águas pluviais (da chuva) de Belo Horizonte. As imagens quase despertam um sentimento de vergonha. Algo como se varrêssemos a sujeira para debaixo do tapete de nossas casas para escondê-la das visitas. A diferença é que, neste caso, a nossa casa é a cidade que, em última instância, é o planeta. A sujeira não é exatamente varrida para debaixo de algo. Vai para a água de um riacho transformado em esgoto que vai para outro rio e outro rio e outro rio e outro até um dia alcançar o mar. É a colaboração de Belo Horizonte, dos seus políticos e da população da cidade de Minas (nome original da BH) para a degradação ambiental do planeta.

Os defensores de projetos para fechamento (ou deveria dizer: sepul-tamento) dos rios, como é o caso da recente obra da Linha Verde do ribeirão Arrudas, tão alardeada pelo governador Aécio Neves, deveriam conhecer um pouco mais do que acontece sob seus pés. BH tem um plano

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diretor de drenagem urbana que, segundo o estudo dos alunos da UFMG, inspecionou 74 canais revestidos e fechados do Ribeirão Arrudas e 52 canais revestidos e fechados do Ribeirão do Onça, totalizando 120 quilômetros de galerias. Em todas, como nos córregos Cardoso, sob a Avenida Mem de Sá; da Serra, que inclui trechos da Avenida do Contorno, e do Francisco Deslandes, sob a avenida homônima, a situação é, para dizer o mínimo, aterradora.

A corrosão já tomou conta dos leitos artificiais, não há qualquer con-trole do esgoto recebido nas águas — que nem merecem mais o nome da fórmula H2O — e o lixo acumulado inclui até objetos de grande porte como máquinas de lavar. Essa situação mostra o que qualquer morador das cidades brasileiras sabe. Não há fiscalização, controle ou trabalho de conservação do que está fora do alcance dos olhos da população. Provavel-mente, Belo Horizonte verá novamente dias em que suas avenidas foram engolidas pelas águas, como em trechos da Mem de Sá e Andradas, e tudo que a administração pública fará é pedir mais dinheiro para consertar os estragos da chuva e da ira divina.

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(1)O Mercado Central de Belo Horizonte fica na avenida Augusto de Lima (nº 744). Tem

estacionamento, como nos modernos shoppings centers, mas o melhor mesmo é ir caminhando até lá, pois a região em que está instalado também é um atração. O mercado funciona em horários que variam de 7 às 19 horas, menos aos domingos e feriados, quando fica aberto até as 13 horas.

O mercado que

quase veio abaixo

22 de Janeiro de 2007

Foi no Mercado Central(1)que eu, então com dez anos de idade, vi

pela primeira vez um pêssego. Minha surpresa foi tão grande que per-guntei ao feirante o que era “aquilo” e ganhei de presente duas frutas. Até então, eu, um menino completamente urbano, apenas tinha visto o pêssego em caldas, embalado nas latinhas e sem o caroço. Isso foi em 1978. Também passei vários sábados com meu pai, mas principalmente com alguns dos meus irmãos mais velhos, indo ao mercado para comer a famosa carne com cebola — aqui vai a confissão de que eu nunca comia a cebola, apenas a carne —, nos “botecos” que ficam na entrada ou saída do mercado e onde se formam filas para experimentar a “iguaria”.

Apesar dos quase 80 anos de existência, o Mercado Central não perdeu o seu charme e ainda é uma das atrações mais típicas da cidade. São cerca de 200 lojas com uma variedade de quase dois mil produtos. Nele, o visitante (seja de Belo Horizonte ou um turista de outra cidade) encontra desde artesanato até os melhores produtos naturais de Minas.

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Em geral seus produtos; bebidas, legumes, frutas, carnes e queijos, custam mais do que no sacolão da esquina ou em “delicatessens”. Esse fato se explica pela qualidade dos produtos do mercado. O queijo minas está caro? Pode comprar porque ele é muito mais novo do que em outros lo-cais. A cachaça mineira custa acima da média? Desafio o leitor a encon-trar outro local que tenha tanta variedade e garantia de procedência. A carne está com o preço salgado? Tenha certeza de que é fresca e sem qual-quer conservante.

O Mercado Central de Belo Horizonte foi construído em 1929 quando a cidade tinha apenas 47 mil habitantes. Ele unificou as duas grandes feiras de produtos existentes, a da Praça da Estação e a da praça da atual rodoviária. Num terreno de 22 lotes, gigantesco para a época, próximo à Praça Raul Soares, as barracas de madeira se enfileiravam nos 14 mil m2do terreno descoberto, circundado pelas carroças que

trans-portavam os produtos. Uma imagem muito diferente da atual.

Foi assim até 1964, quando o prefeito resolveu vender o terreno e quase acabou com o local. Nesse ano foi erguido o galpão que hoje é a ca-racterística principal do mercado. Com o risco de venda da área, os feirantes se uniram e passaram a administrar o mercado. Em apenas 15 dias, quatro construtoras ergueram, cada uma delas, uma lateral do galpão. O feito impediu a venda do terreno pela prefeitura e a desativação do mercado.

Outro fato curioso aconteceu em 1969, quando o presidente do Chile veio a Belo Horizonte e visitou o mercado. Ele gostou tanto que quis cons-truir um em seu país. Saiu de BH com a planta original do Mercado Cen-tral. Alguns anos depois, a cidade de Santiago do Chile ganhou um mercado semelhante ao belorizontino.

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(1)Babel, que significa “confusão”, foi o nome dado ao local que ficou conhecido pela

construção de uma grande torre. Segundo as Escrituras Bíblicas, muito tempo depois do dilúvio, quando todo o mundo ainda falava a mesma língua, a população da terra foi habitar as planícies do Oriente e decidiram construir uma cidade e uma torre para serem famosos e não se separarem uns dos outros. Isso foi uma desobediência às ordens de Deus para que se espalhassem e povoassem a terra. A torre também seria um lugar de adoração ao Sol, à Lua e às estrelas — um culto à criação e não ao Cria-dor. Então, Deus confundiu as palavras de todos; criando diferentes idiomas e obri-gando o povo a se espalhar pela terra.

Assim como em “Babel”

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14 de Agosto de 2006

Na quarta temporada de “The Simpsons”, que foi ao ar entre os anos de 1993 e 94, há uma episódio chamado “Marge contra o Monotrilho” (do original “Marge vs. the Monorail”). A história é previsível: conta como Springfield ganhou uma indenização do capitalista local (Sr. Burns), por irregularidades ambientais cometidas no seu conglomerado empresarial, e fez “uma audiência pública” para decidir como utilizar o dinheiro.

De várias propostas, que incluíam consertar a avenida principal, venceu a de construção de um monotrilho (um trem de superfície). De-pois de muitas desventuras, o empreendimento quase provoca um aci-dente, mas todos se salvam. Marge termina o episódio contando que a cidade “aprendeu” com a experiência e depois disso nunca mais se inte-ressou por construções bizarras, a não ser um arranha-céu de fibra de

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vidro que ficava balançando ou uma escada rolante que chegava às nu-vens, mas que não ia a lugar nenhum e quem se atrevia a utilizá-la caía das alturas ou ainda...

De vez em quando, Belo Horizonte parece ser acometida pelo espírito de Springfield. A mais recente aventura na área é uma torre que é divulgada com o criativo nome de “A Torre”. O empreendimento faz parte de um shopping center e, segundo seus criadores, trata-se da maior torre do Brasil, com 101 metros. Ela também está instalada numa região montanhosa que a coloca a mais de 400 metros de altura da região central da cidade.

A construção foi anunciada com pompa e circunstância, mas sempre que passo próximo tenho a impressão de se tratar de uma torre anã. Talvez porque tenha sido construída junto ao complexo do shopping e isso fez com que perdesse metade do seu aparente tamanho — a torre está prati-camente “colada” a um pavilhão quase do tamanho dela.

O resultado foi que, até agora e embora a torre seja realmente muito bonita, ela não está atraindo a atenção de ninguém. O próprio shopping praticamente não tem lojas funcionando e apenas uma franquia interna-cional resiste no local (muito mais pela tradição festeira da cidade e da curisiodade da meninada que ainda não conhecia a franquia). Até as salas de cinema fecharam, temporariamente dizem os empreendedores, por falta de público.

Além da impressão da torre ser bem menor do que parece, não sei o porquê do seu “fracasso”. É claro que Belo Horizonte já tem mirantes na-turais suficientes para não motivar ninguém a pagar para subir num ar-tificial. O que fica claro é que a cidade está repleta de histórias de empreendimentos que vieram com muitos anúncios e desapareceram no anonimato. A lista inclui desde casas de shows (como Olímpia) até shoppings centers (como o Central Shopping), mas o capítulo final da “Torre” ainda está para ser escrito.

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Perdidos no espaço

19 de Outubro de 2006

Parece estar chegando ao capítulo final o destino da “torre” de Belo Horizonte. O que era para ser a maior atração do Altavila Center Class virou um símbolo de fracasso. Na próxima segunda-feira, dia 23, vários lojistas apresentam à Justiça pedidos de indenização por danos morais causados pelo insucesso do empreendimento.

A história não é nova. De tempos em tempos, a cidade é agitada por anúncios de novos centros comerciais e, na seqüência, surpreendida pelo fechamento repentino desses negócios. Antes do Altavila, que custou R$ 50 milhões, os shoppings Central e Bahia também consumiram grandes fortunas e viram seus esforços sucumbirem à falta de público.

O Central Shopping, à época de sua inauguração, foi anunciado como um novo tempo para a cidade. Era, depois de quase duas décadas, o primeiro novo shopping da cidade. Antes, a capital mineira havia sido a segunda cidade brasileira a ter um shopping, logo depois do Rio de Janeiro. Um feito para aqueles anos finais da década de 70, pois até São Paulo ganhou o seu depois de Minas. O BH foi tão importante que virou sinônimo de shopping. Mesmo hoje quem é da cidade fala ir ao “shopping” se referindo a ele. Mas o Central, que tinha tudo para ser um grande sucesso rapidamente ganhou o apelido de “ZN” (zona norte) e viu seu público ir minguando gradativamente até fechar em meados da década de 90.

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A idéia do empreendimento, entretanto, era tão boa que o seu suces-sor, construído também no hipercentro da cidade, se tornou um dos shoppings mais rentáveis do país. O sucesso do shopping Cidade, que fica a menos de um quilômetro do antigo Central, levou provavelmente ao fracasso outro empreendimento, o Bahia Shopping. Instalado no antigo espaço da mais famosa das lojas de departamentos que existiram em Belo Horizonte, o Bahia não conseguiu escapar do mesmo destino da Sears — que existe até hoje em países do primeiro mundo. Contra ele deve ter pe-sado a distância de uma quadra do Cidade. Motivo similar que talvez ex-plique a decadência quase instantânea do Altavila, construído a menos de um quilômetro do BH.

A lista de empreendimentos comerciais que fracassaram na cidade é longa e inclui marcas famosas como a própria Sears, Mesbla, Pão de Açu-car e Embrava; shoppings menores como Casa Raja Shopping e Shopping Jardim; ou outros negócios que vieram com marcas fortes, como Arturo's, Bob's, Chicken In, Hipodromo e Olímpia, mas tiveram pouco tempo de glória. Ainda assim, Belo Horizonte é uma das cidades brasileiras com maior número de freqüentadores em shopping centers como Del Rey, Diamond, Minas, Pátio Savassei e Ponteio.

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O último café da praça

27 de Outubro de 2006

“A Cafeteria” da Praça da Savassi fechou. Em seu lugar, surgiu mais uma loja de telefonia móvel. Inaugurada em 1996 como “Três Corações”, mudou de nome quando a marca do café foi vendida para um grupo is-raelense. Durante uma década foi uma tradição passar pelo local antes ou depois do cinema ou do teatro para tomar um cappuccino e degustar uma trufa. Com seu fechamento, chega ao fim mais um capítulo da história gastronômica da Praça.

Tudo começou na década de 40, quando os irmãos Hugo e José Gui-lherme Savassi inauguraram a Padaria e Confeitaria Savassi na então chamada Praça 13 de Maio. A padaria era o estabelecimento mais luxuoso e moderno do Brasil (alardeavam seu donos à época) com balcões de cristal, luz indireta nas vitrines, mesas de metal cromado e mármore, cadeiras de sucupira que compunham o salão de chá.

A atração foi tamanha que primeiro a praça e depois o bairro ado-taram seu nome. No fim dos anos 60, os proprietários venderam o ponto, que ficava entre a avenida Cristóvão Colombo e rua Pernambuco, onde hoje existe uma loja de telefonia celular. A Padaria Savassi migrou para a rua Rio Grande do Norte, mas nunca mais repetiu seu sucesso.

Durante a década de 70 e início dos anos 80, foi a vez de outra con-feitaria atrair as atenções na Praça. Com o sugestivo nome de “Torre Eiffel”, seus salgados e doces eram motivo de “romaria” na região. Pessoas

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de outros bairros costumavam encomendar bolos para festa de aniver-sário ou apenas para saboreá-los em casa. A rede de confeitarias, que pos-suía outras unidades espalhadas pela cidade, também não resistiu à especulação financeira e vendeu seu ponto. Atualmente, a marca Torre Eiffel ainda existe apenas como fornecedora de salgados para outras padarias e lanchonetes de Belo Horizonte.

A Cafeteria Três Corações ocupava todo um corner da praça. O inte-rior era mobiliado com madeira e aço e as mesas decoradas com grãos de café sob vidro. Foi inaugurada como um modelo, diziam seus proprie-tários, para criação de franquias por todo o país. Não deu certo, embora o movimento da unidade fosse muito grande, mesmo com a fama de um atendimento ruim.

O charme e qualidade do café garantiram a espera de mesas nos fins de semana, às vezes, por mais de uma hora. O início do fim, provavel-mente, coincide com a perda da bandeira Três Corações e a ocupação do espaço público ao redor da cafeteria com dezenas de mesas. Depois disso, sempre foi possível ver mais pessoas fora do que dentro dela.

Em breve, a Praça da Savassi será apenas um ponto de referência para outras atrações do bairro. À noite, estará entregue aos neons que ilumi-nam as lojas de “quinquilharias eletrônicas descartáveis” (serão quatro as operadoras de telefonia móvel no local, uma em cada esquina da Praça). Restará apenas o McDonald’s, o que não pode ser chamado exatamente de uma “atração gastronômica”.

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(1)“Salve nossos táxis amarelos” é o nome de uma campanha que acontece em New

York pela manutenção do modelo e cor dos táxis da cidade. Belo Horizonte também já teve seus carros amarelos. Eles mudaram de cor porque os taxistas reclamavam da desvalorização dos veículos na hora da revenda. No tempos dos amarelinhos, o serviço era muito melhor (nota do autor) e talvez até merecesse o título. A mudança de cor aconteceu no fim dos anos 80. Hoje, são brancos ou azuis.

Save our yellow cabbies

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09 de Outubro de 2006

A Prefeitura de Belo Horizonte acredita que a cidade tem o melhor serviço de táxis das Américas. De onde ela tirou esse título, não se sabe exatamente. A primeira vez que essa história surgiu foi na reunião geral da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que aconteceu em 1997. Naquela época, a BHTRANS, empresa de transporte público local, entu-siasmada com a presença de representantes de 34 países do continente (seriam 35, mas Cuba foi excluído), “vendeu” um curso de capacitação em inglês e espanhol aos taxistas para atenderem estrangeiros. É desse período que surgiu um adesivo para ser colocado no vidro dos “carros de aluguel” — o melhor serviço de táxi das Américas.

Ao contrário do que a BHTRANS previa, a maioria dos estrangeiros foi transportada por serviços particulares de vans. Os taxistas ficaram na vontade e não recuperaram nem os custos dos cursos de capacitação. Desde então, o título de melhor permaneceu nos adesivos esquecidos nos

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carros. Difícil é ver alguma diferença dos táxis mineiros para paulistas ou cariocas. Apenas as distâncias, menores em BH, facilitam o trânsito e tor-nam os preços mais acessíveis. Fora isso, é a mesma coisa.

Recentemente, a BHTRANS ressuscitou um serviço que existiu por aqui nos anos 80, os táxis-lotação. Os carros fazem apenas rotas de ida e volta nas avenidas Afonso Pena e do Contorno. Identificados por adesivos em forma de setas, a passagem custa R$ 2,00 por pessoa. A “lotação” é de três passageiros por veículo, mas muitas vezes é possível ver quatro pas-sageiros além do motorista. Eu mesmo já fui obrigado a me espremer den-tro do carro por “ordem” do taxista.

As irregularidades não páram por aí. Como os táxis utilizam os mes-mos pontos dos ônibus, o cerco aos passageiros é ostensivo, com taxistas interrompendo a passagem para brigar pelo embarque. Em alguns pon-tos, os motoristas estão “contratando” aliciadores para buscar os pas-sageiros. A fiscalização mais uma vez está ausente, embora seja possível ver, a poucos metros, os agentes de trânsito da BHTRANS mais preocu-pados em multar carros retidos nas faixas de pedestres devido ao conges-tionamento.

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(1)No código penal brasileiro, o “delito de contrabando e descaminho” é definido no

ar-tigo 334. O mesmo crime também está previsto na lei 8.137 de 1990.

Artigo 334

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08 de Outubro de 2006

Enquanto o país só fala em segundo turno, um caminho tem chamado a atenção em Belo Horizonte. Da Praça Sete, são pouco mais de dois quilômetros de um centro de compras popular, o Oiapoque, conhe-cido como shopping Oi (nenhuma ligação com a operadora de telefonia celular).

Seguindo pela rua Rio de Janeiro até a avenida dos Andradas chega-se quachega-se na porta do shopping. Todos os dias, é possível ver pequenos gru-pos nessa rota. Este pode ser chamado o “caminho legalizado da contravenção”. Há quase 5 anos, a Prefeitura, na tentativa de eliminar os ambulantes que infestavam o centro, criou o primeiro camelódromo da cidade. Em pouco tempo, eles proliferaram ocupando antigos galpões e instalações de lojas que fecharam no início da década de 90, como a Mes-bla Veículos.

O pioneiro shopping Oi é como a galeria Pajé em São Paulo. No começo, nenhum dos ambulantes queria ir para lá. Agora, há uma dis-puta por pontos e cada um deles é vendido ou alugado com ágios de até 800%. Faria um bem para a cidade, não fosse o fato das mercadorias

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serem vendidas sem nota fiscal. Os clientes, pensando fazer um bom negó-cio, participam de um comércio ilícito que financia, entre outras coisas, o crime organizado. Ou alguém imagina que a venda de um celular de úl-tima geração sem nota é fruto da bondade do fornecedor? E os preços não são mais baratos. O “desconto” fica nos 15%, o que significa que sequer o percentual de impostos é retirado do produto.

Dados da Polícia Internacional (Interpol), mostram que a venda de produtos ilegais no mundo, principalmente falsificados ou de contra-bando, geraram U$ 516 bilhões em 2005. Esse valor supera os U$ 322 bi-lhões do tráfico de drogas internacional. Daí a importância do poder público não institucionalizar o contrabando com a desculpa de que pre-cisa gerar empregos, pois é justamente o que os produtos ilegais elimi-nam, os empregos formais, muitas vezes os dos próprios compradores. A Prefeitura exime-se de culpa dizendo que a fiscalização cabe à polícia. Uma pena que o Brasil, como país pobre que é, não tem polícia nem para o básico, quanto mais para fiscalizar “shoppings populares” ou quaisquer outros nomes que se dêem a esses lugares.

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A grande feira de

artesanato do Brasil

10 de Setembro de 2006

A maior feira montada em espaço aberto da América Latina está em Belo Horizonte. Antes que isso soe ofensivo a cidades como Recife, Belém ou Fortaleza, esclareço que se trata de uma feira ao ar livre, montada e desmontada uma vez por semana, em apenas 12 horas. Já se chamou Hippie, da Praça da Liberdade e agora é de Arte e Artesanato. Os registros dão conta de que a feira surgiu em 1969, criada por um grupo de artistas mineiros e críticos de arte.

No início, a feira era apenas mais uma atração da praça. Com o tempo, a Feira Hippie deixou de ser “alternativa” e se tornou um grande negócio. Cresceu tanto que passou a acontecer duas vezes por semana; quintas à noite e domingos de manhã. Na década de 80, eram tantos os ex-positores e freqüentadores que a área geográfica da praça ficou pequena. A destruição permanente do mobiliário da praça também cresceu e nos demais dias em que não havia feira se tornou impossível freqüentar o local. Começava a polêmica sobre o destino da feira.

Obviamente, os artistas “donos” da feira se sentiam no direito de não terem seu endereço alterado. O debate se arrastou por quase uma década e por três governos municipais. O mais improvável deles, um prefeito que assumira o cargo devido à saída do titular e que não tinha experiência como político profissional, tomou a decisão que mudaria a história da feira e a transformaria no único evento permanente da cidade que atrai

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turistas e compradores de todo o país.

Em 1991, foi transferida para a avenida Afonso Pena, a principal da cidade, e perdeu o charme dos hippies para se tornar um negócio de arte-sanato quase industrializado. Para a mudança de lugar, que ampliou o tamanho do evento, houve um grande leilão de barracas. Os expositores da feira original tiveram seu lugar garantido, mas foram obrigados a re-fazer o cadastro para participar da nova feira. Uma infinidade de novos “artesões” foi incluída e selecionada.

Um grande leilão paralelo também ocorreu para a ocupação dos es-paços que foram vendidos com ágio. Um dos resultados foi que do grupo original de 12 artistas fundadores da “Feira Hippie” nenhum deles con-tinuou na feira. A nova feira se extende por quase um quilômetro na avenida, ganhou cores de barracas por tipo de produto e dobrou o número de negócios e turistas.

Com 17 setores e três mil expositores, os bastidores de produção da feira são muito interessantes. Na virada de sábado para domingo, a partir das duas horas da madrugada, os expositores começam a montagem das barracas e os primeiros compradores, na maioria das vezes vindos de ou-tras cidades, também começam a chegar para suas compras. Por volta das 5 horas da manhã, a feira já está em pleno movimento.

Essa característica faz com que a feira seja povoada de públicos dife-rentes à medida em que as horas passam. O freqüentador das 9 horas é di-ferente do freqüentador do meio-dia. Por volta das duas horas da tarde, a feira começa a se desmontar, o público diminui e os primeiros garis começam a chegar para limpar o local. Às 4 horas da tarde, a avenida já está liberada com a pista completamente lavada. Quem chega à capital pela primeira vez, passando pelo local, nem acreditaria que horas antes milhares de pessoas andavam pelo asfalto.

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Il viaggio di un

discendente italiano

18 de Janeiro de 2007

Guglielmo Ferrari desembarcou no Porto de Santos, em 1897, no mesmo ano da inauguração de Belo Horizonte. Na época ele ainda não sabia. Seu destino estaria diretamente ligado à cidade. Mais de um século depois, são muitos os seus descendentes na capital mineira. De Fabbrico, onde nasceu em 1869, na região de Reggio Emilia, norte da Itália, ele fez um caminho árduo naqueles dias do século XIX até o planalto central mineiro na cidade de Paracatu. Após a segunda década do século XX, seus filhos — entre eles, meu pai, Orlando Ferrrari — migraram para Beagá. Por quase uma década, motivado pela busca das origens da família, procurei os documentos de meu avô. Pesquisei com familiares (existiam apenas dois documentos incompletos de referência, as certidões de casa-mento e óbito), advogados, cartórios e dezenas de sites na internet. A constatação mais comum desse período é um sem número de desinfor-mações e de oportunistas, seja na vida real ou na “world wide web”.

Mas foi justamente o desenvolvimento da internet que me propor-cionou o final feliz. Ao me deparar com o site da ‘Comune di Fabbrico’, descobri que o prefeito da cidade tinha o nome de um dos meus irmãos, Roberto Ferrari. Não resisti à tentação de contar-lhe a minha história e saber mais sobre a cidade. Embora não tivesse pedido para procurar a cer-tidão de meu avô, ele me respondeu dizendo que a encontrara e me en-viaria pelo correio.

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Acreditem: não gastei um único centavo para ter em mãos, em menos de um mês, o documento original do meu avô, uma certidão que resistiu no cartório de Fabbrico por quase 140 anos. Nunca vou me esquecer da emoção de receber pelo correio o documento de meu avô que chegou no dia de Natal de 2003.

Embora a cidadania italiana tenha critérios de descendência sangüínea — que passa de uma geração à outra indefinidamente —, os documentos nos cartórios italianos estão entre os mais difíceis do mundo para serem recuperados. Principalmente se datarem de antes da Segunda Grande Guerra Mundial. Isso porque os alemães, ao invadirem as cidades, buscavam os cartórios para identificar quem era judeu. Assim, os povoa-dos enviaram grande parte povoa-dos documentos para as igrejas e perderam outra parte saqueada pelos nazistas.

Para cada geração até o descendente italiano, necessita-se de todos os documentos originais. Em caso de incorreção nos dados faz-se uma revisão judicial nos cartórios para alterar os nomes — porque muitas vezes o nome italiano original é diferente na certidão do descendente, como foi o meu caso. Meu avô de Guilhermo no Brasil voltou para o liano Guglielmo. Hoje, a minha família já tem o direito à cidadania ita-liana, uma vontade que meu avô sempre alimentou.

NOTAS DO AUTOR

I. A imigração italiana é a segunda maior do país, atrás — obviamente — apenas da portuguesa. Mais de 25 milhões de italianos desembarcaram no Brasil até a década de 40. Belo Horizonte é a quarta cidade brasileira em número de descendentes. Até 2005, eram mais de 15 mil pessoas com o título de dupla cidadania ítalo-brasileira. II. Este texto é dedicado ao advogado Eduardo Chelotti que nos últimos dois anos, além de ter se mostrado sempre um profissional sério em suas orientações sobre o processo de cidadania da minha família, se tornou um grande amigo.

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Como professor Higgins

diria: — Bullying!

12 de Setembro de 2007

Eu não estudei em muitas escolas. Duas ou três que me lembro entre o período fundamental até o ensino médio. Alguns anos em escolas públi-cas outros em particulares. Numa época em que a violência era muito menor que nos dias de hoje — na rotina do dia-a-dia e nos meios de co-municação. O fato é que mesmo sendo um tempo mais ingênuo — hoje, uma criança entre 7 e 12 anos é muito mais esperta do que eu era há mais de duas décadas nessa idade —, sempre houveram nos ambientes esco-lares os chamados alunos brigões.

Em geral, maiores do que seus pares na mesma idade, esses meninos (sim, eram quase sempre os meninos!) passavam o tempo que tinham fora da sala de aula; ainda no ambiente escolar, como corredores e pátios de recreio, humilhando e intimidando quaisquer crianças que fossem di-ferentes ou mais fracas. Lembro de um menino maior que brigou comigo durante um jogo de futebol e tentou levar a disputa para fora da quadra. Mal sabia ele que eu era o mais novo de dez irmãos; entre eles, oito homens, e que disputas e brincadeiras nem sempre gentis faziam parte da minha rotina e que isso me dava, digamos, uma vantagem competitiva. Ele precisou de apenas um golpe para nunca mais me incomodar e por tabela todos os demais brigões que souberam da minha fama.

Mas a história toda por trás desse nariz de cera é que mesmo com essas tentativas de humilhação e intimidação física ou verbal, eu

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sobre-vivi praticamente ileso daqueles dias. O mesmo aconteceu com dezenas de outros colegas e até os tais brigões se tornaram pessoas do bem — até onde eu soube no tempo da minha faculdade quando ainda tive notícias de alguns deles.

Não me lembro bem que nome dávamos a esses garotos ou ao que eles faziam; mas, atualmente, mídia, escolas e pedagogos andam adotando o termo “bullying”. A primeira vez que ouvi essa palavra foi há vários anos atrás quando assisti ao filme “My fair lady” e meu professor de inglês me explicava o traço característico do professor Henry Higgins (Rex Harri-son). Para ensinar fonética à Eliza Doolittle (Audrey Hepburn), o profes-sor utiliza-se de pequenas peças de humilhação. O fim do enredo é conhecido, mas aquele humor ácido é, na verdade, a personalidade dos anglo-saxões e seu trato com outras pessoas. Por tabela, países de língua e colonização inglesa herdaram esse sentimento e por isso, por lá, essa ex-pressão se aplica melhor. Tanto que o filme se passa em Londres, mas sua produção é dos Estados Unidos.

Mas o engraçado nessa história toda é a incapacidade brasileira de ter sua própria palavra para o tema. Não bastasse a colonização permanente, nosso vocabulário não consegue expressar mais “humilhação”. Uma ação chamada “Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Es-tudantes”, patrocinada por empresas e governos, tenta definir o bullying e usa para isso 28 palavras para dizer do que se trata — colocar apelidos, ofender, zoar, gozar, encarnar, sacanear, humilhar, fazer sofrer, discriminar, excluir, isolar, ignorar, intimidar, perseguir, assediar, aterrorizar, ame-drontar, tiranizar, dominar, agredir, bater, chutar, empurrar, ferir, roubar e quebrar pertences.

Tardiamente, a imprensa de Belo Horizonte abordou o tema em matérias que foram publicadas quase que simultaneamente em diversas mídias locais, desde semanários e jornais diários até entrevistas em emis-soras de rádio e tevês. Parece até trabalho de uma assessoria de imprensa, tamanha a semelhança de abordagem (provavelmente foi uma escola par-ticular que soprou a pauta). Infelizmente, entretanto, os entrevistados foram sempre pais, alunos e professores das escolas voltadas para as classes mais altas da capital. O “bullying” foi mostrado como coisa de gente rica. Nas escolas públicas ou dos bairros mais afastados ninguém deve nem

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co-nhecer a tal expressão.

Pedadagos, professores e psicólogos que passaram a usar o termo devem até arrepiar se lerem esta crônica, mas não consigo deixar de pen-sar que há coisas mais importantes acontecendo e que poderiam ser chamadas de “bullying”. Como, por exemplo, quando nossos governantes se acham acima da lei e preferem impor uma votação secreta que absolve um político corrupto (leia bem claro: Renan Calheiros foi absolvido hoje, quarta-feira, dia 12 de setembro, pelos senadores), embora a opinião pública dissesse o contrário. Essa humilhação sim pode deixar seqüelas para sempre nas pessoas.

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Quando fiz as

pazes com o leite

16 de Janeiro de 2007

Minas Gerais produz um terço do leite do país. Não importa em que região do Brasil as pessoas vivam. Mesmo que nunca tenham vindo ao estado, já provaram do leite mineiro ou produtos derivados desse leite. Eu me lembro do tempo em que leite nem era vendido em saquinhos e passeava pelas ruas de Belo Horizonte um caminhão de leite. Essa imagem era relativamente rara em outras cidades brasileiras, pois o leite vinha en-sacado de Minas.

O veículo era um mini caminhão-pipa e tinha desenhado em seu tanque uma vaquinha. Seu trajeto incluía vários bairros e na avenida em que eu morava, à época, me lembro de minha mãe levando os potes de leite para encher numa “torneirinha” do tanque do caminhão.

Era o ano de 1973 e eu, com meus cinco anos de idade, acreditava que o leite vinha daquele caminhãozinho. Mesmo quando o leite pas-sou a ser ensacado e o caminhão parou de circular, minha memória guardou sua imagem. Em 1977 fui, finalmente, apresentado às legíti-mas produtoras do leite, as vacas, e confesso o choque. “O que? O leite vem daquilo? Nunca mais vou voltar a beber leite!”, sempre me con-tavam meus irmãos mais velhos sobre o que falei a respeito da des-coberta.

Algum tempo depois, em 1978, meu pai apareceu em casa com os primeiros pacotes de leite longa vida (hoje conhecidos pela marca Tetra

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Pak) e ficou irresistível não voltar a beber o “toddy” de todas as manhãs. Estavam feitas as pazes com o leite.

NOTAS DO AUTOR

I. Numa cena clássica do filme “A laranja mecânica” (A Clockwork Orange, Stanley Kubrick, 1971), o vilão prefere beber leite apesar de toda a violência de que é capaz. Quem não se lembra de vários filmes onde os vilões chegam ao bar e pedem leite? II. A aproximação do homo sapiens com o leite ocorreu provavelmente com as cabras, fato testemunhado em desenhos rupestres, datados de 20.000 a.C., nos quais as cabras são representadas como animais comumente caçados. Existe uma contro-vérsia se este fenômeno teria ocorrido na Mesopotâmia, por volta de 10 mil anos atrás, ou mais a leste, na Ásia.

III. O primeiro registro histórico e concreto da utilização do leite como alimento é uma peça encontrada em Tell Ubaid, atual Iraque, datada de 3100 a.C., conhecida como Friso dos Ordenhadores. Nela, podem ser constatadas não só a ordenha mas tam-bém a filtragem do leite.

Referências

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