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Meu corpo daria um romance (1984) tem por subtítulo “Narrativa desarmada”; é

impossível não pensar no adjetivo como uma referência à guerrilha no centro da narrativa de

56 DANIEL, Herbert. Passagem para o próximo sonho: um possível romance autocrítico. Rio de Janeiro:

CODECRI, 1982, p. 175-176.

57

Ibid., p. 162.

58 Ibid., p. 163.

Passagem para o próximo sonho, isto é, negando ser uma história sobre os anos de luta

armada e exílio. Passagem... surgiu no rastro dos testemunhos sobre a ditadura, mas, como vimos, frustra as próprias expectativas do gênero quanto a ser uma narrativa da “verdade”..

Meu corpo... anuncia-se, num “Aviso preliminar”, como memória, ficção e fragmento: “[...]

memória, com cheiro não autobiográfico [...], ficção, esta forma de dizer o tal-qual-terá-sido [...] [e como] hipóteses da reunião de fragmentos nas FALHAS.60” O livro continua a tensionar o projeto memorialístico sobre o período da ditadura com a têmpera ficcional muito mais inequívoca, do título do livro ao projeto narrativo.

O autor estruturou o romance em onze capítulos com três divisões cada. “Corpo a corpo”, a primeira dessas divisões, reescreve onze vezes o mesmo episódio, que serve ao livro como espinha dorsal para abordagem de seus temas: o narrador, após despedir-se de um amigo com um beijo na boca, sobe num ônibus coletivo e é hostilizado pelos passageiros que observavam a cena. Cada reconto corresponderia, de acordo com a tabela no final do volume, a um minuto de viagem.

“Matéria” é a narrativa assumidamente autobiográfica da formação do narrador, desde a infância. Existem versões aqui de dados surgidos em Passagem..., do mesmo modo que eventos não relatados ali. O tom adotado é muito menos comprometido em se aparentar ao testemunho. A inflexão ficcional é suficiente para que o autor não precise indicar estar trabalhando na fronteira entre o fato e a ficção.

“Dissertação” são contos breves cuja imediata afinidade com as outras seções não é facilmente nítida. Os temas dessas narrativas são muito variados para definir a prevalência de uma unidade simbólica. De certa forma, o mesmo procedimento já se encontrava no livro anterior, mas não com uma divisão própria no interior do capítulo, e as conexões com o material do livro eram bastante claras.

O condicional do título em Meu corpo daria um romance alude a uma possibilidade de ficção que o aspecto fragmentário da narrativa evidencia, apesar da técnica de externar sua estruturação e resumi-la no final com uma tabela que tem a função de sumário. É uma narrativa do condicional ou do-que-poderia-ser. O livro é um experimento ficcional cuja plenitude não é assegurada e é também um conjunto de narrativas que poderiam se tornar um romance. O livro é condicional porque experimental, portanto, mas uma experiência com as modalidades de escrita pertencentes ao gênero memorialístico.

A estratégia do autor em Meu corpo... é exatamente inversa da utilizada em

Passagem... Enquanto este é apresentado como um testemunho romanceado, o primeiro é um

romance de teor autobiográfico. A leitura dos livros, contudo, não há de concordar com esse programa autoral, não apenas por causa das razões citadas anteriormente, mas porque é muito fácil compreender a fatura desse novo livro de Daniel como uma continuação do projeto de escrita já existente em Passagem..., no que diz respeito ao tratamento da memória como material de ficção e da ficção como uma das formas de registro e transmissão da memória. Além disso, pode-se argumentar que o objeto principal da narrativa de “Matéria” é o mesmo em conteúdo que o de Passagem..., com a exceção da vida do autor anterior ao seu engajamento político e da reconstituição detalhada de alguns episódios, como a relação do narrador com sua homossexualidade. De fato, os únicos elementos em Meu corpo... com ênfase e proposta mais incisivas, em prosa quase dissertativa, são as questões relativas à sexualidade e ao corpo. São assuntos que foram trabalhados pelo autor de maneira ensaística e dedicada no artigo escrito para o livro Jacarés & lobisomens, publicado um ano antes de Meu

corpo daria um romance. Os jogos verbais encontrados no romance anterior são mais

presentes, com invenção de palavras, justaposições e recriações vocabulares surgindo mais frequentemente. O romance é, assim, uma versão estendida do precedente. O mesmo artifício de apresentar o projeto do livro retorna, como aludi antes, mas desta vez mais objetivo em formato de tabela. E os episódios da luta armada não ficaram de fora, apesar do que se lê no subtítulo.

O resultado é irregular e peca por prolixidade. A estruturação seria clara para o leitor mesmo se Daniel não a destacasse, embora demonstre um trabalho com a narração mais atento às fórmulas de escrita. Livro na condicional em outro sentido, portanto, porque Meu

corpo... poderia ser um romance em prosa experimental, mas, infelizmente, não consegue

realizar um conjunto coeso. Em Passagem... a fragmentação era tão constitutiva do tecido narrativo que em Meu corpo... tende ao artificial. O que daquele livro foi exacerbado ou estendido, no quesito de técnica narrativa, não é persuasivo para despertar no leitor interesse até o fim. O problema é a prolixidade e as repetições que nem sempre cumprem o papel destinado. Assim, por exemplo, a ideia por trás de “Corpo a corpo” é genial, mas a execução torna-se inconsistente depois de alguns capítulos. Alguns contos de “Dissertação” são extraordinários e explicam a qualidade de Herbert Daniel como autor de ficção – como “Vozes”, a história hilária de um grupo de senhoras guardiãs dos bons costumes, uma joia de construção de diálogo e concisão, ou o conto “Desfile”.

“Desfile” é uma pequena obra-prima, uma ficção admirável sobre a decadência de uma ditadura – que o texto trata ambiguamente, sendo ora de esquerda, ora de direita – e a ascensão de uma nova sociedade que também não deixa entrever em que sentido será diferente da anterior. Tudo isso é mediado pela história de um general, braço direito do ditador a ser deposto, apaixonado por um garoto de programa preso por ser confundido com um revolucionário. O leitor reconhecerá muitos elementos comuns aos “anos de chumbo” brasileiros. A condução da história e o desenho das personagens jogam com os tropos da prosa alegórica, sem nunca chegar a sê-la. O conto é um dos pontos altos do livro em matéria de ficção.

Em “Corpo a corpo”, o narrador constrói a personagem Marylin Aparecida, com quem dialoga e chama de “minha bicha61”, espécie de alter ego e consciência que o ajuda a compreender e se sustentar dentro do ônibus onde é intimidado por ser gay. Marilyn é um recurso interessante, porque contrapõe à voz do narrador sua astúcia irônica e debochada e atormenta suas certezas sobre a seriedade e a composição da obra. Note-se, a esse respeito, o exemplo seguinte, onde Marilyn reage à consideração do narrador de que um dos passageiros, vestido com uma camisa do Solidarność62, poderia ter uma postura diferente dos outros:

Uma superstar da luta armada, sua sequestradora. Afinal você é daqueles barra pesada né, assaltante, comandante de ós, sequestrador de dois (dois, que horror, nem aprendeu com o primeiro, hein, bicha?) embaixadores, guerrilheiro rural [...]. Elas iam até ficar em posição de sentido pois você foi até comandante (coma... andante, dizia a donzela ao cavalheiro) de ós, oh é uma coisa heroica, um monumento vivo... Te belisca, bicha, pra ver se você ainda tá viva depois deste monte de besteiras que falei do teu passado que você conserva com tanto carinho. Te belisca, porque senão eu te mordo. Pra você manter a dignidade, mas não se levar a sério demais63.

Essa voz em diálogo não apenas provoca um deslocamento do narrador quanto à matéria de seu texto, é também uma comentadora da ação, inicia um distanciamento entre a persona ficcional de Daniel e sua personalidade pública com uma função bastante clara: permitir a dissociação desse livro com o suposto testemunho apresentado no anterior. Embora não seja o único recurso utilizado com essa intenção, Marylin só comparece em algumas das primeiras seções de cada capítulo.

Em suma, Meu corpo... compartilha algumas das características de Passagem...: são ambos livros sobre uma pessoa cuja notoriedade está relacionada à luta armada contra a

61

Ibid., p. 16.

62 Federação sindical polonesa fundada em 1980 cujo nome traduz-se por “solidariedade”. 63 DANIEL, Herbert. Meu corpo daria um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1984, 182-183.

ditadura brasileira, seu retorno e engajamento com a militância homossexual. Ambos são romances-testemunhos, pois a impregnação do que se narra como fato no tecido da ficção oferece-se à leitura com uma ambiguidade apaziguadora. Os leitores sentem-se à vontade para ler esses livros ora como documento, ora como literatura, embora isso não indique uma forma escritural híbrida, mas o interesse dúplice dessas leituras é importante para o gênero testemunhal surgido no período da redemocratização.

O livro está filiado ao ensaio publicado pelo autor um ano antes, cujo assunto é a homossexualidade e que construiu sua posição como intelectual militante da causa gay. Meu

corpo... quase apela ao didatismo para falar sobre o assunto, assumindo uma têmpera distante

do romance anterior, que vinculava a homossexualidade ao contexto da luta armada. Com isso se encontra um discurso sobre o sujeito sob a luz de sua sexualidade, muito mais próximo, portanto, de um texto de formação. A seguir, veremos o que Herbert Daniel, esse nome que é tanto de guerra quanto nome de autor, isto é, ficcional, tem a dizer sobre a homossexualidade. Ao contrário de outros textos de ficção onde Daniel lança mão da temática, a importância do ensaio presente em Jacarés & lobisomens está além do literário. É uma elaboração intelectual, de certo modo sistematizada, cuja existência é (ou deveria ser) muito significativa para o campo de estudos sobre homossexualidade no Brasil.