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Se um aspecto dominante do desejo sexual é levado em conta para classificar e definir uma subjetividade, estaremos desde já considerando esse tipo de experiência determinada pela atividade sexual. Por outro lado, a orientação do desejo tem sido utilizada como diagnóstico para a compreensão das subjetividades que, de outro modo, talvez sequer pudessem ser inseridas numa agenda política e permaneceriam existindo apenas como anomalias e perversões diante da norma heterossexual. É complexo, senão perigoso, seguir em frente à procura de um índice comum sobre a manifestação do desejo sexual sem admitir que se trata de um terreno movente. Se sexo for critério de corte, o celibato e a abstenção seriam limites distintivos da neutralidade? É possível ser – isto é, tentar construir para si uma narrativa pessoal, nuclear, nas fronteiras das identidades – qualquer coisa sem se deixar possuir pelas demandas do desejo? Essas questões são possíveis porque a heterossexualidade não é pensada senão como modelo e suas variantes como desvio. Mas, e se a heterossexualidade pudesse ser desfigurada a partir de seus próprios termos? Sarah Ahmed dá nome ao problema: a ideia de “orientação sexual” como critério para definir o sujeito.

A transformação da orientação sexual em “uma espécie” [i.e., a

homossexual, a heterossexual etc.] envolve a tradução de “direção” em

identidade. Se a orientação sexual é compreendida como algo que se “tem”, de tal modo que se “é” o que se “tem”, então o que se “é” é definido em termos da direção do desejo, como uma atração que se puxa para os outros. Ou poderíamos dizer que com a orientação sexual a direção “segue” a linha do desejo, como flechas em direção ao objeto amado. Então o desejo sexual orienta o sujeito para alguns outros (e, por consequência, para outros não) ao estabelecer uma linha ou direção. A orientação sexual envolve seguir diferentes linhas na medida em que os outros para os quais o desejo é direcionado já são construídos como do “mesmo sexo” ou do “outro sexo”. Não é simplesmente o objeto que determina a “direção” de um desejo; antes, é a direção que se toma que faz o outro disponível como objeto a ser desejado. Ser direcionado ao mesmo sexo ou ao outro sexo passa a ser visto como movendo-se ao longo de diferentes linhas1.

1 AHMED, Sarah. Queer phenomenology: orientations, objects, others. North Carolina: Duke University Press,

2006, p. 69-70: “The transformation of sexual orientation into ‘a species’ involves the translation of ‘direction’ into identity. If sexual orientation is understood as something one ‘has’, such that one ‘is’ what one ‘has’, then what one ‘is’ becomes defined in terms of the direction of one’s desire, as an attraction that pulls one toward others. Or you could say that with sexual orientation, direction ‘follows’ the line of desire, like the direction of arrows toward the loved object. So sexual desire orientates the subject toward some others (and by implication not other others) by establishing a line or direction. Sexual orientation involves following different lines insofar as the others that desire is directed toward are already constructed as the ‘same sex’, or the ‘other sex’. It is not simply the object that determines the ‘direction’ of one’s desire; rather the direction one takes makes some others available as objects to be desired. Being directed toward the same sex or the other sex becomes seen as moving along different lines.”

No exemplo que ela fornece a seguir, já se percebe que o problema da orientação concerne mais às pessoas não heterossexuais:

Ao ser hétero [straight2], por exemplo, o desejo da pessoa segue uma linha reta [straight], que se presume levar em direção ao “outro sexo”, como se esse fosse o propósito da linha. Uma orientação queer pode simplesmente não ser dirigida ao “mesmo sexo”, mas seria vista como não seguindo uma linha certa [straight]. [...] A orientação para o mesmo sexo desvia ou fica fora do curso: ao seguir essa orientação, deixamos o “caminho comum ou o curso normal.” Por outro lado, o desejo heterossexual é compreendido como “na linha”, não somente como adequado [straight], mas também como certo e normal, enquanto outras linhas que “não seguem” esse curso estão consequentemente “fora da linha” da própria direção de seus desejos3. Pensar a heterossexualidade, então, é por força o caminho que se deve seguir para chegar às sexualidades não hegemônicas sem que estas sejam classificadas como negativas:

A normalização da heterossexualidade como uma orientação ao “outro sexo” pode ser redescrita em termos de requisito para se seguir uma linha reta [straight], através da qual a retidão [straightness] está ligada a outros valores incluindo a decência, o convencional, o direto e o honesto. A naturalização da heterossexualidade envolve a presunção de que há uma linha reta [straight] que leva cada sexo ao outro sexo, e que “essa linha de desejo”

está “alinhada” ao sexo da pessoa. O alinhamento de sexo e orientação se

dá dessa maneira: ser homem significaria desejar uma mulher, e ser mulher desejar um homem. A linha de orientação hétero [straight] toma o sujeito a partir do que ele “não é” para confirmar o que ele “é”4.

As considerações de Ahmed servem para indicar o caminho de leitura percorrido neste capítulo, que analisa a heterossexualidade por trás das cenas de abundante sexo gay no livro

Orgia, de Tulio Carella. O discurso sobre o qual o livro se assenta expressa em sua superfície

desejo e orientação por pessoas do mesmo sexo do narrador, ao mesmo tempo em que afirma a heterossexualidade. Esta contradição nos conduzirá, em primeiro lugar, à hipótese de que

2

O adjetivo straight tem os sentidos de “reto”, “correto” e “heterossexual”. Assinalo em colchetes sempre que ele aparece no texto de Ahmed para indicar a polivalência desses significados.

3 AHMED, 2006, p. 70: “In being straight, for example, one’s desire follows a straigt line, wich is presumed to

lead toward the ‘other sex’, as if that is the ‘point’ of the line. The queer orientation might not simply be directed toward the ‘same sex’, but would be seen as not following the straight line. […] The same-sex orientation thus deviates or is off course: following this orientation, we leave the ‘usual way or normal course’. Conversely, heterosexual desire is understood as ‘on line’, as not only straight, but also as right and normal, while other lines are drawn as simply ‘not following’ this line and hence as being ‘off line’ in the very direction of their desires.”

4 AHMED, 2006, p. 70-71, grifos da autora: “The normalization of heterosexuality as an orientation toward ‘the

other sex’ can be redescribed in terms of the requirement to follow a straight line, whereby straightness gets attached to other values including decent, conventional, direct, and honest. The naturalization of heterosexuality involves the presumption that there is a straight line that leads each sex toward the other sex, and that ‘this line

of desire’ is ‘in line’ with one’s sex. The alignment of sex with orientation goes as follow: being a man mean

desiring a woman, and being a woman desiring a man (Butler 1997b: 23). The line of straight orientation takes the subject toward what it ‘is not’ and what it ‘is not’ then confirms what it ‘is’.”

esta narrativa não rompe com o princípio de neutralidade básico do discurso – literário ou não – fundamentado na ideia de universalidade: “neutro” e “universal” são figuras metonímicas para valores muito caros à hegemonia. Incapaz de romper com esse pacto, resta ao narrador a tarefa de negar aquilo mesmo que ele descreve. Por esse motivo, a leitura se concentra em demonstrar como o livro trabalha dois aspectos: a) ser um texto confessional sobre experiências com sexo gay e b) afirmar seu vínculo à heterossexualidade. O paradoxo aí instalado é engendrado pelo próprio texto, não sendo possível decidir qual lugar lhe pertence. Trabalho de outro modo, indicando as consequências de seu discurso na formação do ethos homossexual preso na polarização hétero/homo; esta pode ser compreendida menos pela via literária do que por elementos contingentes como história pessoal e época. Esses dados empíricos, por causa da condição semificcional do livro, não poderiam ser simplesmente ignorados.

Parto, portanto, também do que está fora do texto e ao mesmo tempo está inteiramente nele, que é a vida de seu escritor, Tulio Carella. Como se verá, a estrutura do livro é metadiegética, entre o diário e a narração em terceira pessoa. Num livro onde a sexualidade é o motor constitutivo da narrativa, recorro a tantos aspectos empíricos quantos forem necessários para empreender a leitura. Merleau-Ponty, para quem o homem “é uma ideia histórica e não uma espécie natural”, já havia demonstrado o importante papel desempenhado por esse dado de nossa existência:

A sexualidade, diz-se, é dramática porque engajamos nela toda a nossa vida pessoal. Mas justamente por que nós o fazemos? Porque nosso corpo é para nós um espelho de nosso ser, senão porque ele é um eu natural, uma corrente de existência dada, de forma que nunca sabemos se as forças que nos dirigem são as suas ou as nossas – ou antes elas nunca são inteiramente nem suas nem nossas. Não existe ultrapassamento da sexualidade, assim como não há sexualidade fechada sobre si mesma. Ninguém está a salvo e ninguém está inteiramente perdido5.

Para dar conta desse drama, situarei seu narrador e principal personagem nos vários elementos conectados a ele, como questões de classe e raça, por exemplo. A correlação entre ficção e fato, ou narrativa literária e biografia, é menos problemática no caso de Orgia, um livro, como se verá, destinado a uma leitura que considere esses dois aspectos. O leitor contemporâneo desta obra de Carella não tem o privilégio de encontrar seu tecido narrativo

5MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 3 ed. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de

sem que este esteja impregnado pela pessoa histórica de seu autor, das condições de criação do seu texto e da consequente publicação.