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Em Orgia, um dos narradores construídos por Tulio Carella, ou alter ego – Lúcio Ginarte –, se aventura numa caçada diária e exuberante por sexo com outros homens, apesar de não admitir e até rejeitar a qualidade de seu desejo como da mesma espécie que dos homens homossexuais encontrados por ele durante suas buscas. Como lidar com esta pequena contradição a pôr sob suspeita nossa vontade totalizante sobre a sexualidade? É homossexual quem só deseja e sacia sua vontade por corpos do mesmo gênero? Para repetir uma pergunta frequente feita por esse narrador: o que é um homossexual?

Este livro tem uma história incomum. Carella inicialmente o escreveu como diário, durante sua estadia no Recife, entre 1960 e 1962. Argentino, veio ao nordeste brasileiro para dar aulas de teatro na universidade. Já era escritor publicado em seu país e ia pelos cinquenta anos quando deixou Buenos Aires e a esposa para ensinar no Recife. Sua frequência noturna no cais e em locais suspeitos chamou atenção da polícia, que o tomou por conspirador infiltrado. Numa devassa em seu apartamento, a polícia achou os diários, com um conteúdo bastante perturbador: neles, Carella descrevia não somente suas impressões sobre as pessoas e a cidade, mas sobretudo seu cotidiano coalhado de encontros sexuais com homens negros. De volta a Buenos Aires, Carella retrabalhou o texto, criou um narrador e o alter ego para publicá-lo no Brasil em 1968, com o título de Orgia – Diário Primeiro. A tradução e edição ficou a cargo do dramaturgo e editor pernambucano Hermilo Borba Filho, seu amigo, e o livro foi incluído numa coleção de textos eróticos, que contava com nomes como Pietro Aretino. Apesar do título, não houve segundo volume, nem hoje se conhece a versão original em castelhano. Orgia é, assim, o livro de um escritor argentino que só existe na tradução em português6. Durante muitos anos Orgia só esteve disponível em pequenos trechos citados em

6 Osvaldo Bazan, que dedica um capítulo de sua Historia de la homosexualidad en Argentina ao livro de Carella,

afirma ter encontrado duas versões: uma com o relato em primeira pessoa, contada pela personagem Lúcio Ginarte e outra com a história entre “King Kong” e Lúcio, escrita em terceira pessoa (BAZAN, 2004, p. 458). Considerando que seu capítulo tem por base o livro de Trevisan e as memórias de Borba Filho, mais a afirmação do autor que as citações do texto de Carella são traduções suas para o castelhano, é de se supor que Bazan tenha tomado conhecimento de partes separadas do mesmo livro, que apresenta, como se verá, dois narradores de fato.

obras sobre homossexualidade7. Vingou por muito tempo no imaginário de leitores do assunto até que uma nova edição viesse à luz em 2011.

João Silvério Trevisan, que cita trechos de Orgia no clássico Devassos no paraíso, descreve com mais detalhes a descoberta dos diários pela polícia e a saída de Carella do Brasil:

[...] Carella acabou sendo preso pelos militares brasileiros, suspeito de traficar armas de Cuba para os membros das Ligas Camponesas de Pernambuco. A polícia tinha informação de que ele andava frequentemente no cais, durante a noite, e se encontrava com pessoas suspeitas de serem agentes subversivos e guerrilheiros. Carella foi longamente interrogado e torturado. Embarcaram-no num avião e ameaçaram atirá-lo do alto, para que confessasse seus crimes subversivos. Ao vistoriar seu apartamento, os policiais encontraram seu diário, que foi cuidadosamente lido. Então os militares perceberam o equívoco: tinham prendido um viado em vez de um guerrilheiro cubano. Carella foi solto, com a admoestação de que silenciasse sobre sua prisão, caso contrário fariam publicar trechos escabrosos do seu diário, do qual iriam guardar uma fotocópia. Logo a seguir, o reitor da universidade chamou-o para lhe comunicar sua demissão do cargo de professor; como tinha sido informado de tudo pela polícia, não estava disposto a aceitar em sua escola alguém que “vivia caçando homens; e o que é pior, negros”. Humilhado, Tulio Carella regressou imediatamente para a Argentina, voltando a residir em Buenos Aires. Corria o ano de 1962. Seus amigos diziam que adoeceu de saudade do Brasil. Sabe-se vagamente que ele se separou da mulher e que, por volta de 1979, teria morrido de colapso cardíaco8.

No prefácio à segunda edição, Alvaro Machado afirma que a publicação em português também ecoou na Argentina. Segundo ele, “o aparecimento de Orgia parece determinar, a partir de então, o banimento do escritor da história da literatura de seu país: nos últimos quarenta anos, referências à sua obra tornaram-se raríssimas, bem como encenações de suas peças9”.

7 João Silvério Trevisan, a respeito do lançamento da segunda edição de Orgia comentou: “Na década de 90, o

livro ‘brasileiro’ de Tulio Carella foi descoberto na Argentina, justamente através da minha obra. Passei a ser procurado por conterrâneos dele, interessados em localizar os originais perdidos e até mesmo editá-los a partir da versão em português”. Em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,estados-unidos-do-fogo-imp-,723649>.

8 TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade brasileira no Brasil, da colônia à

atualidade. 7. ed. (revista e atualizada). Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 82.

9

MACHADO, Alvaro. A trajetória de uma confissão. In: CARELLA, Tulio. Orgia: os diários de Tulio Carella, Recife, 1960. Tradução de Hermilo Borba Filho. São Paulo: Opera Prima, 2011, 16. Em matéria publicada a 10 de maio de 2011, no jornal Folha de São Paulo, o sobrinho-neto de Carella responde ao repórter que não autoriza a reedição do livro em uma tradução para o espanhol, informação confirmada pelo editor Alvaro Machado na mesma reportagem. Em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1005201113.htm>. Em outro depoimento, publicado no site do jornal Diário de Pernambuco, Machado dá mais informações sobre o processo

trabalhoso de reeditar a obra:

Considerando o relato de Trevisan, amparado nas memórias de Hermilo Borba Filho, é curioso que a ameaça dos militares seja cumprida pelo próprio Carella, ao transformar seu diário num relato ficcional e publicá-lo sob seu nome em território brasileiro. Dado o conteúdo do livro e as enormes similaridades entre ele e a vida de seu autor, o gesto de Carella é tão corajoso quanto perturbador. Há uma tensão confessional nesse livro que extrapola seu conteúdo manifesto. Através do narrador Lúcio Ginarte, Carella nos oferece uma personagem focada em detalhar minuciosamente sua atividade sexual, entremeada de várias ponderações sociais e raciais, um texto não muito diverso do gênero de escrita sobre o Brasil aos olhos de um estrangeiro. Orgia é um caderno de anotações sobre façanhas sexuais redigido por alguém culto e letrado. As lacunas desse texto não estão apenas na ausência de enredo e nas elipses que nos impedem de compor uma narrativa mais ou menos organizada para nos ajudar a compreender o narrador. São lacunas que dizem respeito à própria estrutura do texto, pois tudo que não é relacionado à sexualidade parece apenas acessório na narrativa. Mas se essas lacunas nos prejudicam para considerar a existência de uma narração centrada em torno da edificação do sujeito Carella/Ginarte, elas nos rendem muito material para interpretar sobre a natureza de sua volúpia. Ao contrário de um livro erótico manifestadamente redigido para proporcionar excitação, e escrito com menor preocupação estilística, Carella está atento à sua “incapacidade” de compreender os atos que pratica e de demonstrar sua perplexidade sobre o meio brasileiro onde vive, duas atitudes inextrincáveis. Por ser impossível ter acesso ao texto original, não editado por Carella ou Borba Filho, não saberemos se houve alguma vez nesse projeto uma narrativa nuclear que desse conta do sujeito narrado, logo, temos à disposição um texto muito mais próximo da confissão do que de uma história convencional. O texto não nega, portanto, o nome de diário em seu subtítulo.

Orgia será lido sob três aspectos que aparecem inerentes à constituição do texto. O

primeiro é a atitude de estrangeiro civilizado com que o narrador compreende o Recife. Suas experiências são dominadas pelo exotismo característico, ao qual já estamos acostumados, com que o Brasil é tradicionalmente descrito pelo observador de fora, ou seja, como um paraíso tropical de delícias e também de contrastes. A chegada ao Brasil como professor talvez contribua para o olhar iluminista sobre a terra inculta e bela que o recebe. Veremos como este é um tropo literário muito frequente não só na história brasileira, como também faz parte de uma investida ocidental típica. O segundo aspecto é como isso se relaciona com o desejo pelo sexo gay, aqui dimensionado pela luxúria. Fascinado pelo exotismo do que chama “país da brasa”, Ginarte flana pelas ruas de Recife com uma vontade incansável de sexo. A isto se soma a orientação quase exclusiva dessa vontade por homens negros, alguns mestiços,

e todos eles pobres e menos cultos que o narrador. A repetição desses encontros onde variam apenas nomes e lugares nos fornece ampla discussão sobre a homossexualidade, sobretudo porque ela aparece textualmente para ser recusada. O último aspecto é como se produz, a partir daí, uma leitura diferenciada sobre a unidade conceitual à qual damos o nome de Nação e como isso indica possibilidades literárias renovadas em termos de narrativa.