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Embora exista farta e bem elaborada literatura sobre o trabalho de Foucault, aqui pretendo apresentar de forma sucinta a composição de sua obra, pois comentar sobre Michel Foucault é um exercício de ousadia em virtude da dificuldade de lidar com um autor que nunca quis ser modelo, que nunca quis ser fundador de uma discursividade, que recusou as noções convencionais de autor, obra e comentário (ERIBON, 1990; MIRANDA, CASCAIS, 1992). Ao contrário, esperava que cada um de seus livros fosse um ―objeto-evento‖, que desaparecesse ―sem que aquele a quem aconteceu escrevê-lo pudesse, alguma vez, reivindicar o direito de ser o seu senhor, de impor o que queria dizer, ou dizer o que o livro deveria ser‖ (FOUCAULT, 1978, p. 8).

Já foram feitas inúmeras tentativas de sintetizar a obra de Foucault e a maioria dos especialistas fala em três fases ou etapas. Para Larrosa (2002), é habitual se falar em uma divisão cronológica na obra de Foucault, com base em H. Dreyfus e P. Rabinow, mas compartilhada com reservas por G. Deleuze, sendo ela: 1a etapa – 1961 a 1969, onde dominam a questão do saber e o método arqueológico; 2a etapa – até 1976, voltado para o poder e o método genealógico; 3a etapa, baseada nas tecnologias do eu e relacionada com a ética. Opinião também compartilhada por Morey (1990), sendo que ambos tecem várias considerações sobre os riscos dessa periodização tradicional, uma vez que o próprio Foucault não tinha pretensão de sintetizar suas obras, ele não era um pensador sistemático.

Os estudos de Foucault da década de 60 são caracterizados como arqueológicos, sua preocupação se volta para as formações políticas discursivas. É a luta, o combate, o resultado do combate e, conseqüentemente, o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento; uma explicação de que por trás de todo o saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político, por exemplo, não está ausente do saber, ele é tramado com o saber.

Essa inovação metodológica foi assinalada nas seguintes obras: História da Loucura

(1961) – analisa os saberes sobre a loucura e as condições das possibilidades do nascimento

da psiquiatria; O Nascimento da Clínica (1963) – estuda a ruptura arqueológica entre a medicina clássica, taxonômica, classificatória — considera a doença como essência abstrata, segundo o modelo da história natural — e a medicina clínica moderna, fundada na anatomia patológica, para a qual o ser da doença desaparece, dando lugar ao corpo individual como seu objeto; As Palavras e as Coisas (1966) e A Arqueologia do Saber (1969) – descrevem os discursos que, através do tempo, se tornaram conhecidos como a Medicina, Economia Política, Biologia, revelando sua especificidade, condição de aparecimento, formas de acúmulo de conhecimento e encadeamento, bem como as regras de sua formação e as descontinuidades que as escondem.

Já nas obras da década de 70, o autor se apresenta como o filósofo da microfísica do poder, onde busca as relações que existem entre o discurso e as demais práticas não discursivas – fase genealógica, ou seja, a busca pela história da política da verdade. Por quê em um determinado momento surge um conceito que não existia antes? Que estratégias discursivas (saberes) e não discursivas (poderes, instituições) propiciam o novo conceito de exército, escola, hospital? As obras genealógicas são: Vigiar e Punir (1975); Microfísica do

Poder (1979); História da Sexualidade I - A Vontade de Saber (1988).

Os últimos escritos de Foucault estudam a arte de governar. Estes foram registrados na década de 80, no entanto, sua intenção não é tratar do problema da formação do Estado, mas pensar que tipo de racionalidade implica ter como exercício o poder do Estado. Ele está preocupado em estudar as relações entre racionalidade e poder não em termos de Estado centralizado, mas em termos de dominação, orientado para os indivíduos (pessoas) e à população em geral, a fim de ―governá-los‖ de maneira contínua e permanente. Ao invés de perguntar sobre a identidade das pessoas, pergunta como é possível as coisas chegarem a ser

como são?

Quando Foucault oferece retrospectivamente uma revisão do seu trabalho, parece que se podem considerar três dimensões: saber, poder e subjetivação; mas essas não podem ser

identificadas como divisões cronológicas, pois o próprio autor, em revisões retrospectivas de sua obra, situa as três dimensões sobre uma certa unidade de intenção: [...] o estudo das ‗diferentes modalidades de subjetivação‘, a ‗ontologia histórica do presente (ou de nós mesmos)‘ e as ‗condições de possibilidade da experiência‘‖ (LARROSA, 2002, p.52).

Para Morey (1990), é necessário recear tanto de uma periodização tradicional da obra de Foucault, como da hipótese de uma sucessão de métodos ao longo de seu itinerário intelectual, mostrando, ao contrário, as diferentes aberturas de uma mesma tarefa geral – uma história da emergência dos jogos de verdade que constituem os sujeitos.

A grande empreitada de Foucault foi sempre esta história da verdade sobre o sujeito. A história crítica do pensamento, para Foucault, é a história da emergência dos jogos de verdade, ou a história das verdades, formas segundo as quais se articulam sobre um domínio de coisas, discursos susceptíveis de serem chamados verdadeiros ou falsos (MOREY, 1990). A compreensão de Foucault sobre a história das verdades não é a história

―[...] do que poderia haver de verdadeiro nos conhecimentos; mas uma análise dos ‗jogos de verdade‘, dos jogos entre o verdadeiro e o falso, através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como podendo e devendo ser pensado‖ (FOUCAULT, 2001, p.12).

Desta forma, Foucault estuda estes jogos de verdade em um domínio específico: aquele em que o sujeito é posto como objeto de um saber possível. Daí a centralidade do problema do sujeito ao longo de toda sua obra. Foucault (2001, p.12) se dedicou ao longo de sua vida a ―[...] evidenciar alguns elementos que possam servir para uma história da verdade‖. A indagação dos modos de subjetivação e dos modos de objetivação é, nada mais, do que a história da emergência dos jogos de verdade. Nesta empreitada de uma história da verdade, o autor se guiou analisando ―[...] problematizações através dos quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir dos quais essas problematizações se formam‖ (FOUCAULT, 2001, p.15). Dessa forma, seus estudos seguiram problematizando diversas experiências – da loucura e da doença; da vida, da linguagem e do trabalho; do crime e de comportamentos criminosos; todas a partir de certas práticas discursivas e normativas – práticas, estas, que suscitam preocupação moral e que constituem um campo moral.

Em síntese, segundo Morey (1990), a ontologia histórica de nós mesmos marca todo o trabalho de Foucault. É o ponto de partida, pergunta radical e objetivo de seu trabalho, e ordena sua obra em três eixos principais que correlacionam: em relação à verdade que nos constitui como sujeitos de conhecimento, nas relações de poder que nos constituem como sujeitos atuantes sobre os demais; na relação ética por meio da qual nos constituímos como

sujeitos de ação moral. Desta forma, o que Foucault estudou foram três problemas tradicionais: quais são as relações que temos com a verdade através do conhecimento científico, com esses jogos de verdade, tão importantes nas civilizações e nos quais somos, a uma só vez, sujeito e objeto; quais são as relações que entabulamos com os demais, através dessas estranhas estratégias e relações de poder; e quais são as relações entre verdade, poder e indivíduo.