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Micro-justiça e Desigualdade

No documento JUSTIÇA RESTAURATIVA. Coletânea de Artigos (páginas 196-200)

As iniciativas de micro-justiça na forma de programas de justiça restaurativa têm um imenso potencial para reduzir desigualdades estruturais, tornando a justiça mais democrática em termos de acessibilidade, universalidade, justiça e legalidade5. Em democracias altamente desiguais como o Brasil, o siste- ma de justiça tende a refletir e perpetuar as desigualdades sócio-econômicas exis- tentes. Como resultado, os cidadãos na parte de baixo da escala social que se sentem excluídos do sistema de justiça formal podem acreditar que têm o direito de fazer justiça com as próprias mãos, freqüentemente por meios ilegais e violen- tos, criando um ciclo vicioso de crime e insegurança que mina ainda mais o estado de direito.

Reduzir as desigualdades arraigadas na justiça é um, senão o principal desafio da democratização na América Latina (Eckstein e Wickham-Crowley, 2003; Caldeira, 2000; Mendez, Pinheiro, e O’Donnell, 1999; Caldeira e Holston, 1998). As democracias podem funcionar sem algum nível de justiça social, mas não sem um estado de direito democrático encravado no sistema de justiça. A pergunta

e justiça. O estado de direito pode existir em Estados não democráticos, como Cingapura; os Estados democráticos, porém, precisam não apenas consolidar o estado de direito mas um estado de direito “democrático,” para serem viáveis a longo prazo. Para que o estado de direito seja democrático, direitos políticos e civis devem ser concedidos teórica e praticamente, e devem ser estabelecidos mecanismos institucionais efetivos para assegurar a sanção de ações fora da lei (O’Donnell, 1999).

Na região, foram concedidos direitos políticos universais com as transi- ções para a democracia6. O fortalecimento de mecanismos institucionais para assegurar as sanções efetivas em grande parte depende de reformas da polícia e do judiciário de cima para baixo. A construção de direitos civis universais e efetivos constitui assim o desafio principal para a sociedade civil na consolidação de um estado de direito democrático. Os direitos civis constituem o componente mais básico de cidadania relacionado com a justiça. A partir de uma perspectiva proces- sual, a justiça está relacionada fundamentalmente à igualdade entre os cidadãos enquanto sujeitos à lei e para as redes de responsabilidade (O’Donnell, 1999; Dworkin, 1977; Raz, 1977; Rawls, 1971; Hart, 1961). De uma perspectiva mais filosófica, a justiça é o meio para todos os outros direitos (Holston e Caldeira, 1998). De qualquer perspectiva, a consolidação da democracia não pode ser dissociada de um sistema de justiça universal, acessível, legal e justo embutido no estado de direito democrático.

A lei deve garantir direitos e obrigações para todos os cidadãos e portan- to se constitui no órgão mais elementar de um estado democrático. A justiça assegura que todos os cidadãos são iguais perante a lei, que ninguém está acima da lei, e que são sancionados por suas ações os indivíduos que agem fora da lei independentemente de sua posição social e influência política. Quando a impu- nidade é a norma e as instituições legais reproduzem ao invés de excluir as desigualdades sócio-econômicas, os cidadãos – no alto e no final da escala social – têm um incentivo para buscar recursos em meios alternativos de obter justiça. Ainda que indubitavelmente estimulantes e produtivos, os recentes debates sobre a qualidade da democracia e da cidadania em democratizar os países da região identificaram apenas manifestações negativas de justiça alternativa na forma de segurança privada, vigilantes, linchamento, justiça de gueto, esquadrões da morte, retribuição privada, etc., como resultado de um estado de direito fraco ou mercantilizado. (Oxhorn, 2003; Eckstein e Wickham-Crowley, 2003; Karl, 2003; Caldeira, 2000; Mendez, Pinheiro, e O’Donnell, 1999; Holston e Caldeira, 1998).

Entretanto, algumas práticas de justiça alternativa – práticas de micro- justiça – têm um valor positivo intrínseco pelo sistema de justiça, comunidades, e cidadãos, e não pode ser explicado apenas como sendo uma resposta de segun-

da classe da sociedade, ou uma solução paliativa do governo, para as decadentes instituições legais. Visto a partir de uma perspectiva da construção social de direitos, estas práticas de justiça alternativas podem oferecer um locus concreto para construir a cidadania civil de baixo para cima.

A justiça alternativa é um conceito inclusivo com manifestações e práti- cas matizadas, positivas e negativas. A justiça alternativa inclui sistemas de admi- nistração de conflitos comunitários, “justiça do gueto”, vigilantes, a prática de linchamento, esquadrões da morte, Comitês de Verdade e Reconciliação, e pro- gramas de justiça restaurativa, para citar algumas. Pode-se determinar a natureza da justiça alternativa com relação ao sistema de justiça formal, de acordo com dois critérios principais,: 1) legalidade, e 2) origem – isto é, iniciativa de cima para baixo versus iniciativas de baixo para cima.

Quer legais ou ilegais, sejam o resultado de um movimento de base ou vindas de cima para baixo, toda as práticas de justiça alternativa compartilha a característica comum do propósito: todas representam iniciativas para fornecer justiça por canais que não são monopolizados pelo sistema de justiça formal. Dado este propósito comum, os agentes de justiça alternativos operam e forne- cem justiça no nível micro. Entretanto, ao falar de micro-governança da justiça ou micro-justiça, as práticas de justiça alternativa ilegais são excluídas já que de forma alguma constituem uma forma socialmente consensual de “governança”. Mes- mo nas favelas, onde grupos criminosos “fazem a sua lei7,”os cidadãos obede- cem seu sistema de justiça paralela por medo, não por livre vontade. As práticas de justiça alternativa ilegais não podem garantir o ideal liberal de devido processo legal associado ao estado de direito democrático. Além disso, no campo da vin- gança privada, a justiça é “injusta” no princípio. Paradoxalmente, a lei de Talião, que dita os termos da retribuição, impede o castigo justo comensurável com o crime cometido já que o respeito aos Direitos humanos não é uma preocupação e os “crimes” são definidos arbitrariamente (por exemplo, ser pobre, preto, ou desrespeitosos; recusar a seguir os sistema paralelo de regras, estar com um parceiro cobiçado por um membro do grupo criminoso, etc.).

Colocado de modo simples, a justiça alternativa significa a administra- ção da justiça fora de instituições legais tradicionais: os agentes de justiça alterna- tiva não são os representantes formais da autoridade do Estado, e eles não agem por canais judiciários convencionais. Eles podem (e devem), contudo, estar liga- dos a instituições estatais, no mínimo por credenciais, como no caso de facilitadores de justiça restaurativa no Brasil que estão ligados formalmente ao sistema de justiça formal mas não são representantes formais da autoridade estatal. Também se deve enfatizar que as decisões alcançadas por processos de justiça alternativos, como no caso de programas restaurativos de iniciativa do

programas de justiça restaurativa requerem que ambas as partes assinem um documento que cita as condições do acordo, que tem valor legal no caso de violação do acordo.

Há muitos outros exemplos onde a justiça alternativa acontece dentro da comunidade, mas completamente fora dos limites da lei. As práticas de justiça alternativa assumem a forma de vigilantes, “justiça do gueto”, esquadrões da morte, e linchamento, são manifestações concretas de alternativas ilegais de justi- ça. Eles constituem (micro)sistemas de justiça paralelos que existem fora do aparato

judicial formal e fora dos limites legais, e que fornecem justiça por canais que nem não são monopolizados pelo sistema de justiça formal nem têm suas raízes em consensos da sociedade.

É importante enfatizar os critérios de legalidade: a micro-justiça repre- senta um resultado de um cenário “melhor dos mundos”. Quando o sistema formal de justiça é percebido como não lhes servindo, os cidadãos podem buscar a justiça alternativa de muitas formas, inclusive os meios ilegais e violentos de obter justiça. O resultado é a vingança privada em lugar da retribuição estatal legítima ou da justiça socialmente consensual. Tais práticas não são complemen- tares, mas antitéticas em relação ao sistema de justiça formal, e são em especial destrutivas para o tecido social das comunidades. Elas não melhoram o acesso à justiça para os cidadãos e comunidades desprovidos de poder, mas sim forne- cem uma justiça torpe de cidadãos privados, vingativos— e normalmente aque- les já destituídos de poder são suas vítimas principais.

As formas ilegais de justiça local envolvem por definição elementos criminais que exacerbam a insegurança e deslocam comunidades já debilitadas. A longo prazo, pode-se minar ainda mais a legitimidade das instituições de justiça penais formais quando o Estado não pode prover uma resposta satisfatória à insegurança gerada por práticas de justiça alternativa ilegais. Além disso, estas práticas podem reforçar o senso de impunidade porque eles estão, de fato, acima da lei. A micro-justiça representa uma alternativa concreta à justiça alternativa ilegal.

Os programas restaurativos são práticas de micro-justiça que complementam o sistema de justiça formal e são implementados freqüentemente por órgãos estatais. Estas práticas são manifestações concretas de justiça alterna- tiva legal: eles constituem (micro)sistemas de justiça paralelos que existem fora do aparato

judicial formal mas dentro dos limites legais, e que fornecem justiça por canais que não são monopolizados pelo sistema de justiça formal mas são legitimados por uma forma de consenso da sociedade.

Especificamente, a justiça restaurativa é definida aqui como “um pro- cesso para solucionar crime e conflitos, um que tem seu foco na reparação do dano às vítimas, responsabilizando os ofensores por suas ações e engajando a comunidade em um processo de resolução de conflitos” (Law Commission of

Canada, 2003).

As práticas restaurativas não são feitas para substituir o sistema de justiça tradicional, mas sim para complementar as instituições legais existentes e melhorar o resultado do processo de justiça. Ao descentralizar a administração de certas demandas da justiça – que são tipicamente determinadas de acordo com a gravidade legal e moral da ofensa8 – e ao transferir o poder de tomada de decisão ao nível local, o sistema de justiça estatal e os cidadãos podem se beneficiar de modos importantes. A micro-justiça pode ter um efeito positivo intrínseco para o processo e o resultado de justiça por:

R

eduzir o volume de casos para os tribunais;

• Melhorar a imagem do sistema de justiça formal ;

• Melhorar o acesso à informação e as recursos da justiça para os cidadãos e comunidades marginalizados;

• Apresentar uma alternativa à justiça alternativa ilegal quando as instituições legais formais falham;

• Dotar poder aos cidadãos e as comunidades através da participação ativa no processo de justiça;

• Favorecer a reparação e a reabilitação ao invés da retribuição;

• Ter por base os consensos ao invés da coerção;

• Transferir e produzir conhecimento no nível lo

cal.

No documento JUSTIÇA RESTAURATIVA. Coletânea de Artigos (páginas 196-200)