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CAPÍTULO 3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

3.2 SHERAZADE E AS CRIANÇAS: INTERATIVOS NA CONTAÇÃO DE

3.2.2 Um olhar sobre os processos interativos

3.2.2.1 Microanálise do episódio Chegada das crianças à Biblioteca

O episódio apresentado trata da chegada das crianças à Biblioteca. Cada evento ilustra as interações ocorridas, seja entre a professora e as crianças, como também entre a criança e seus pares.

Evento 1 – “Senta aqui, senta ali”

Sherazade: Agora então vamos sentar um menino e uma menina. Ali, senta ali. Um menino... agora uma menina. É, um menino e uma menina sentando, um após o outro. Pode ser por aqui.

Sherazade: Agora lá no chão, ali bem perto do William. Oh, quem tá sentado nas cadeiras, é pra permanecer nas cadeiras.

Carlos: Quem tá sentado no chão, é pra permanecer no chão. Ouviu!

Evento 2 – “É de mágico ou de fantoche?” Paulo: É de mágico, não é!?

José: É fantoche!

Paulo: Ele falou que é de mágico.

Joana: Gente, dá para ver que não tem muito espaço pra ficar ali de trais. Artur: Eu tenho um fantoche do Kiko e do Chaves e também da Chiquinha.

Evento 3 – “Júlio, Júlio, meu amor!”

Sherazade: OK. Aqui Júlio, Júlio, Júlio, senta aqui, meu amor, chega mais pra cá. Júlio, você entendeu o que a tia falou, meu amor? O que a tia Sherazade pediu para você fazer?

Análise e discussão:Chegada das crianças à Biblioteca

No evento 1, cujo contexto foi a biblioteca, a professora regente se posicionou passivamente na situação de espectadora e delegou à contadora de histórias a atribuição de professora para “reger” o grupo. Neste momento, é Sherazade quem assumiu a liderança da turma e organizou as crianças para o início da atividade de contar histórias.

Esse posicionamento de Sherazade remete-nos à afirmação de Harré e Van Langenhove (2003) de que a pessoa pode posicionar-se ou ser posicionada, tanto na forma pela qual as contribuições como falante são interpretadas, quanto pelos papéis

desempenhados por ela. No caso da professora observada, notamos que ela não precisou enunciar: “Agora a professora sou eu!”, pois o modo como ela se posicionou por meio de sua ação, fala, organização e firmeza de suas palavras fizeram essa demarcação.

Sherazade, a partir de suas palavras, já se posicionou como professora desse espaço. A biblioteca foi um contexto eleito por ela para a realização das atividades de contação de histórias e partilhas de experiências tecidas constantemente pela palavra, que “penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, [...]”. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios (Bakhtin/Voloshinov, 1929/2014, p. 42).

Nas palavras há inúmeras significações que dão sentido ao posicionamento da professora no contexto interacional. Assim, fica clara a teoria bakhtiniana enunciada por Faraco quando ele afirma que as significações são estabelecidas na dinâmica da história e se caracterizam pela diversidade de experiências dos grupos humanos, sendo marcadas por suas várias contradições e confrontos de valorações e interesses sociais (Faraco, 2009).

Deste modo, tudo o que é dito traz sentidos e significados, não há palavra nem gesto neutro; toda expressão está contaminada de crenças e valores. Nesse sentido, ao buscar organizar as crianças e o espaço, Sherazade deixou evidente que, em sua concepção, para se ouvir uma história, é preciso que haja um preparo do lugar, a organização das crianças, e que suas atenções estejam plenamente voltadas para o momento da contação da história.

Percebemos em Sherazade, crenças e valores constituídos por vários signos advindos do seu meio familiar, escolar e profissional marcados por um contexto estruturalista e movidos por ações que a possibilitaram inserir os alunos em uma dinâmica de autorregulação e corregulação a partir de rituais escolares. Assim,

os signos vão permitir o desenvolvimento de processos de autorregulação da ação individual, mas também a corregulação de ações mediante regras estabelecidas coletivamente. Esses sistemas de autorregulação das ações individuais e coletivas são criados mediante processos de canalização cultural estabelecidos nos grupos humanos e que fazem parte das maneiras de vincular o sujeito com o contexto sociocultural (Herrera-Rengifo, 2014, p. 33).

O posicionamento das crianças, no atendimento às solicitações da professora e na acomodação na biblioteca em conformidade com suas orientações, ilustra como a forma social de uma ação e a posição dos interlocutores pode determiná-los mutuamente (Harré & Van Langenhove, 2003). As crianças não tiveram a oportunidade de escolher os seus lugares de assento, a professora enunciou como queria que as crianças permanecessem na biblioteca.

Essa estratégia de acomodação das crianças não foi impedimento para que elas pudessem se comunicar umas com as outras, como se vê no evento 2. Nesse sentido, é possível notarmos a interação criança-criança e criança-ambiente por meio do diálogo estabelecido entre quatro delas. O diálogo foi motivado pelo cenário, a partir de uma curiosidade: se a contação envolveria mágico ou fantoche. Assim, podemos considerar que a composição do cenário também é um aspecto de mediação simbólica relevante que dispara o processo imaginativo (Vygotsky, 2009) e a interação verbal entre as crianças.

A esse respeito, Valsiner (2012) afirma que uma transmissão de cultura é como uma forma de empreendimento bidirecional, uma vez que se trata de um processo dinâmico. Na contação de histórias, por exemplo, ainda que a professora fosse a mediadora do processo, e detivesse uma posição de autoridade, ela e as crianças estão imersas em um mesmo contexto interativo. Daí ela não conseguir ter o controle absoluto da situação, visto que havia uma multiplicidade de vozes envolvidas no evento.

Também é possível afirmar que, como as crianças habitualmente frequentavam a biblioteca para a contação de história, houve uma negociação de significados (Bruner, 1997), pois as crianças se organizaram conforme a solicitação da Sherazade. Quando a professora endereçou o enunciado “Agora então vamos sentar um menino e uma menina. Ali, senta ali. Um menino, agora uma menina. É, um menino e uma menina sentando, um após o outro”, notamos que já havia uma relação de concordância entre as crianças e a professora no que se refere à organização delas no espaço de contação de histórias. Nesse sentido, Pino (2005) argumenta, a partir das ideias de Vygotsky, que as crianças se apropriam de comportamentos que anteriormente os outros ensinaram a elas e passam a fazer parte dos seus repertórios de conduta social.

Nesse espaço de organização, Sherazade promovia a “co-construção de novos recursos semióticos pelos que estão “sendo educados” – ainda que na direção desejada” por ela (Valsiner, 2012, p. 121). No evento 3, na forma zelosa por meio de gestos, ao abraçar a criança; e por palavras, ao utilizar, e repetir, a expressão “meu amor”, em entonação carinhosa para se dirigir ao menino, Sherazade indicava que a criança se sentasse no lugar que ela havia escolhido. Contudo, há a necessidade de chamar a atenção do aluno, repetindo seu nome “Júlio, Júlio, Júlio”, o que significa que ele não atendeu de pronto a seu chamado. Ao se dirigir ao menino, perguntando repetidamente: “Júlio, você entendeu o que a tia falou, meu amor? O que a tia Sherazade pediu para você fazer?”, percebe-se que houve, por parte da professora, uma atitude de direcionar o lugar de cada criança.

A conduta da professora pode ser considerada controladora e reguladora na organização da chegada das crianças à biblioteca, ilustrando os apontamentos de Bourdieu e Passeron (1975) no que se refere às rotinas homogeneizadas e ritualizadas da cultura escolar, com a finalidade de criar hábitos. De tal modo, conforme esses autores, a

disciplina é a base para a manutenção do status quo; e a apropriação das rotinas favorece a cristalização das ações. Observamos nesse episódio que as crianças já se apropriaram das palavras ditas por Sherazade, estabelecidas no ritual da contação de histórias.

Assim, Jobim e Souza (2012) compartilha as ideias de Bakhtin e Vygotsky ao destacar a palavra como atributo de valor fundamental para o processo de interação social. Segundo a autora, para Vygotsky, a chave para a compreensão da unidade dialética entre pensamento e linguagem e, assim, da constituição da consciência e da subjetividade, está no sentido da palavra. Já para Bakhtin, a palavra é instrumento da consciência e também espaço privilegiado para a criação ideológica (Jobim e Souza, 2012).

Desta forma, em nossas análises percebemos uma historicidade refratada e refletida nos atores envolvidos na construção desse espaço que é a biblioteca, um lugar destinado não somente aos empréstimos de livros, mas um contexto engendrado para contação de histórias em processos interativos entrelaçados nas palavras.