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Micropolitica : como caruncho – minando as estruturas sociais

Guattari e Deleuze trazem para a discussão alguns conceitos importantes para compreender a problemática da mulher no mundo de hoje. Esses autores apresentam elementos teóricos que explicam como a mulher é formada, através da cultura de massa, para ser submissa ao homem. A produção de mulheres normatizadas, obedecendo a valores hierárquicos, é apreendida através do conceito de subjetividade. Já o conceito de singularidade, diz respeito às transgressões que a mulher faz, buscando sabotar a cultura de massa.

O capitalismo produz subjetividades em série: a maioria dócil, para ser exploradas no mercado de trabalho. O mesmo acontece com as mulheres. Um número significativo delas acredita que os homens devam dominar-explorar. Mas, subjetividades singulares se erguem no meio dessa produção, criando fissuras no sistema. Como esse paradoxo acontece?

A cultura de massa é fundamental para a “produção de subjetividades capitalísticas”.

Essa cultura de massa produz [...] indivíduos normatizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos , sistemas de valores, sistemas de submissão – não sistemas de submissão visíveis e explícitos [...] mas dissimulados. [...] Não somente uma produção da subjetividade individuada – subjetividade dos indivíduos – mas uma produção de subjetividade social, uma produção da subjetividade que se pode encontrar em todos os níveis da produção e do consumo. [...] (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 16).

No caso das mulheres, o comportamento é programado, teleguiado, codificado no conjunto do campo social pela “função geral de equipamentos coletivos”. Existe todo um ambiente maquínico, para usar a expressão do autor, como equipamentos coletivos – ambulatórios de saúde, escolas, revistas, programas de rádio e TV entre outros - destinados à mulher que formam o padrão de feminilidade (GUATTARI; ROLNIK, 1996).

Mas o que acontece é que nem todo mundo é formatado, como se fossem disquetes. Parte dos membros da sociedade – no nosso caso, também algumas mulheres – rebelam-se e transgridem, criando processos de singularização, escapando dos processos máquinicos de produção em série. Esses setores resistentes conseguem produzir “subjetivações singulares” ou, em outras palavras, “processos de singularização,” que de maneira geral recusam

[...] todos esses modos de codificação preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedades, os tipos de valores que não são os nossos (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.17).

Na concepção de Guattari, “uma revolução subjetiva” (GUATTARI ,1996) está acontecendo permanentemente no seio da sociedade, em relação à questão feminina. Hoje, há indícios de que a transformação será de longa duração, lenta, mas progressiva. Por

exemplo, a independência financeira de muitas lhes possibilita maior liberdade para escolher se querem ou não se casar, ou continuar casadas. Muitas mulheres, apesar de não estarem felizes no casamento, são obrigadas a permanecer com os maridos por não conseguirem sobreviver financeiramente sozinhas. A independência financeira não é tudo, mas abre possibilidades para a mulher fazer outras escolhas. A inserção da mulher no mercado de trabalho, sem dúvida, abriu horizontes. Hoje, além de ocupar cargos de relevância e decisão dentro de grandes empresas, elas estão sendo designadas para ocupar cargos de chefia nos Estados. As cotas para mulheres candidatas à vereança em todos os partidos políticos, podem ser consideradas mais uma dessas revoluções subjetivas.

Para Guattari, é nos contextos de acirramento dos conflitos, nos quais antagonismos se multiplicam, que os processos de singularizarão surgem. É nas fraturas do sistema social - dupla jornada de trabalho das mulheres, baixa participação nos legislativos, órgão que aprova leis que oprimem ou que permitem maior autonomia das mulheres, violência social ou doméstica - que surgem novas práxis humana, produtoras de subjetividades, indo no sentido de uma re-significação individual e/ou coletiva. A singularidade feminina precisa conviver com a peculiaridade masculina de fazer política, para que essa nova maneira imprima marcas sociais de uma especificidade ainda não vista no âmbito político.

Voltando à questão do patriarcado, é possível aproximar Johnson de Guattari, quando ele fala das três ecologias: a do meio ambiente, a das relações sociais, e o da subjetividade humana (GUATTARI, 1997, p. 8).

Assim como Johnson afirma que “as raízes do patriarcado são também as raízes da maior parte da miséria e da injustiça humanas, incluindo opressão de raça, de classe e étnica e a destruição do meio ambiente” (1997, p. 50), Guattari se preocupa com o equilíbrio

entre as três ecologias. É impossível uma revolução sem uma ecofísica, ou seja, uma articulação ético-política [...] entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana)” (GUATTARI, 1997, p. 8). As injustiças sociais em relação às mulheres só serão alteradas com a construção de novas práxis.

Essas novas ecologias poderão “evocar uma problematização que se torna transversal” (GUATTARI , 1997, p. 14) a outras linhas de fratura que possam aparecer. É preciso recompor a práxis humana, a partir do surgimento de novas fraturas. É necessário criar “[...] dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma re-significação individual e/ou coletiva [...]” (GUATTARI , 1997, p. 15). Cada vez que surge uma nova fratura, cria-se a possibilidade de produzir novas subjetividades no lugar da antiga. A revolução molecular vai acontecer justamente na ressignificação individual ou coletiva dessas fissuras.

Na perspectiva da “ecosofia social” (GUATTARI , 1997, p 15), no campo educacional, a pedagogia deveria formar seus mediadores sociais capazes de desenvolver práticas específicas aptas a modificar e reinventar o ambiente familiar, criar novos laços de solidariedade, de organização política com maior eqüidade em relação às categorias de sexo. Dessa perspectiva, será possível “reconstruir o conjunto das modalidades do ser-em-grupo [...] por mutações existenciais que dizem respeito à essência da subjetividade [...]”(GUATTARI , 1997, p. 16).

Como a natureza não é separada da cultura, é necessário aprender a pensar de maneira transversal (GUATTARI , 1997, p. 26). Esse jeito de pensar, de olhar a realidade mostra o mundo como ele realmente é. Não é só a natureza que está sendo destruída. Qualquer movimento de reação, de contestação é solapado, na sua grande maioria, ainda nas origens. No caso das mulheres, muitas ainda se consideram inferiores aos homens. Elas internalizaram

a submissão, porque o tempo todo ouviram, através dos equipamentos coletivos, que são menos capazes, que a função da mulher na sociedade é ser mãe e dona-de-casa.

Os focos de resistência, no caso em pauta as mulheres do PT, PSDB, PFL, tentam forçar a vida com cotas mínimas de participação política. A resistência vem no sentido de mudar uma dada realidade que se arrasta desde que o sistema partidário foi institucionalizado. Essa mudança não será brusca, mas de resistência em resistência, as mulheres têm alcançado expressivas vitórias: direito ao voto, de representarem e serem representadas, ao aborto em alguns países, trabalharem fora do lar, entre outras.

A inclusão das mulheres no âmbito político se dá a partir da organização das mulheres em movimentos fora e, depois, dentro dos próprios partidos. A discussão provocada pelas mulheres, reclamando a criação do sistema de cotas, colocou tais mulheres, do ponto de vista de Deleuze e Guattari (2004), no exercício da micropolítica, já que toda essa discussão provocada pela baixa participação das mulheres no Legislativo desencadeou a criação do mencionado sistema nos pleitos, interferindo diretamente na organização partidária, pelo menos teoricamente, aumentando as chances da mulher nesse âmbito.

Apesar de difícil, a concepção de micropolítica possibilita às mulheres oportunidades de mudarem uma realidade estabelecida. Através de microorganizações, elas têm a possibilidade de penetrar em todas as células da sociedade, porque a mulher está presente na vida familiar, na escola, no trabalho, na política. Por mais que o patriarcado perpasse todos os setores da vida social, sempre vazam, fogem algumas coisas do controle masculino. São “modos de conexão e articulação rizomáticas” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 66) nos quais não existe poder central, mas

Tais mutações da subjetividade não funcionam apenas no registro das ideologias, mas no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular como tecido urbano, com os processos maquínicos do trabalho, com a ordem social suporte dessas forças produtivas. E, se isso é verdade, não é utópico considerar que uma revolução, uma mudança social a nível macropolítico, macrossocial, diz respeito também à questão da produção da subjetividade, o que deverá ser levado em conta pelos movimentos de emancipação (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 26) pelos movimentos de minorias.

Por outro lado, esse “antagonismo transversal” (GUATTARI, 1997, p.13) permeia a relação entre homens e mulheres. No mundo todo, a mulher continua sendo explorada, nas relações que estabelece no âmbito social, mas as revoluções subjacentes a essa realidade não param de “trabalhar a condição feminina durante essas duas últimas décadas”(idem).

A tendência é que essas contradições levarão ao aparecimento de uma sociedade em que haverá maior equilíbrio entre homens e mulheres. “É nesse contexto de ruptura, de descentramento, de multiplicação dos antagonismos e de processos de singularização, que surgem as novas problemáticas ecológicas” (GUATTARI , 1997, p. 14).

O termo “alternativa” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 14) designa o aparecimento de grupos com práticas sociais diferentes dos grupos dominantes. As mulheres que estão participando das esferas de poder precisam buscar “alternativas” com jeito feminino para fazer política. A autonomia reside nesse jeito novo de estar no poder e de exercê-lo. A micropolítica possibilita que pequenas coisas que acontecem no dia-a-dia das mulheres e no movimento de mulheres, podem ser consideradas linhas de fuga, que escapam das organizações binárias. Esses pequenos avanços muitas vezes são imperceptíveis do ponto de vista da macropolítica (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 94). São “modos de conexão e articulação rizomáticas” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 66) nos quais não existe poder central, mas relações sociais no âmbito micropolítico. Toda organização, ou até mesmo articulação, pode ser uma forma de autonomia, mesmo as microscópicas.

Para superar a reduzida participação política, são necessárias mudanças estruturais profundas, desde um sólido movimento feminista, que traga para o debate público as questões de gênero e do patriarcado, até as lutas individuais travadas por mulheres, no próprio seio da família, em busca de maior autonomia. O próprio sistema patriarcal, aos poucos, cria condições para o nascimento de novas sociabilidades. As pequenas transgressões que mulheres, negros, e pobres fazem diariamente são elementos importantes na luta contra o patriarcado. É como o “caruncho”, que vai corroendo, por dentro, madeiras e cereais sem ser percebido. Quando é descoberto, já destruiu praticamente todo o interior e os sustentáculos do móvel e da semente. É o que veremos a seguir, no trabalho lento realizado por várias mulheres, muitas anônimas, para desembocar na conquista do voto e, mais tarde, na capacidade de ser eleita.