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PARTE I – MIDIATIZAÇÃO DO PASSADO: CAMINHOS E TÁTICAS PARA OS CONFLITOS MNEMÔNICOS NO JORNALISMO DIGITAL

2. MIDIATIZAÇÃO DOS CAMPOS DE COMBATE

2.1 MIDIATIZAÇÃO EM CENA, PARA ALÉM DAS MEDIAÇÕES

Andreas Hepp (2014), com sua perspectiva de midiatização do cotidiano, aponta que vivemos em uma era da “mediação de tudo”, na qual o conjunto dos meios de comunicação está envolvido nas principais modificações da cultura e da sociedade. No entanto, cumpre perceber que não diz respeito somente à mediação, mas também aos processos de midiatização, uma vez que a primeira é o ato comunicacional concreto em um dado contexto e através de uma mídia específica, enquanto a midiatização se refere a um processo mais longo, no qual a crescente relevância dos meios de comunicação altera as instituições e os modos de interações sociais. Nas palavras de Figueiras (2017, p. 9), “a mediação descreve o ato

concreto da comunicação através de um meio num contexto social específico, enquanto a mediatização se centra no plano das mudanças nas instituições sociais e culturais (a política, a justiça, a escola, o trabalho, entre tantas outras) e nos modos de interação decorrentes do processo de mediatização”.

Segundo Hjarvard (2012), a mediação tem relação com a comunicação através da plataforma que pode afetar desde a mensagem até o emissor e o receptor. Hepp (2014), por sua vez, diferencia mediação de midiatização, com o primeiro buscando refletir os processos comunicacionais inteiros, enquanto o último busca teorizar as alterações sociais associadas aos meios de comunicação. Em trabalho posterior, Hjarvard (2014) complementa essa perspectiva, pois se a mediação aborda a mídia a partir das práticas comunicativas com interações específicas e situadas em um tempo e espaço determinados, a midiatização lida com as modificações emergentes a partir das relações e interações sociais entre vários agentes, desde indivíduos até coletivos, de pessoas físicas às jurídicas. Holanda (2014) já havia questionado essa redução da mediação como uma interação simplesmente instrumental.

Até a década de 1980, os sistemas de mídia eram compostos por indústrias locais e nacionais, não os conglomerados globais e mundiais que observamos hoje. No entanto, em tempos de globalização e convergência, a junção das características dos meios de comunicação, da informática e das telecomunicações aumenta a oferta de informação, centraliza e diminui a quantidade das fontes emissoras através dos oligopólios, com uma gigante e sem precedente manutenção de poder por poucos grupos, isto é, concentrado em poucas famílias (LIMA, 2004). Essa homogeneização midiática busca uma uniformização da população, não apenas em relação ao consumo e gosto, mas aos costumes e pensamentos. Busca-se “encaixapretar” – tornar estável e menos transparente – o máximo possível. De acordo com Hjarvard (2014), a globalização e comercialização acarretam em um maior controle da comunicação a partir dos conglomerados cada vez mais globais.

As estruturas narrativas dos meios de comunicação carregam simbolismos e ideologias do pensamento não apenas hegemônico, mas também contra hegemônico – das classes subalternas ou grupos burgueses não alinhados aos dominantes. Ainda assim, através da mídia, naturalizam-se versões e noções simbólico-ideológicas que cristalizam os conhecimentos do senso comum, sobretudo os que regem a vida e os costumes da população. Essas estruturas narrativas da mídia que reforçam conceitos arraigados e mantêm as preconcepções devem ser encaradas de maneira negativa, pois funcionam na sociedade como forma de controle e de domínio, através da ratificação de valores e da disseminação das

perspectivas dos grupos dominantes, fomentando, em grande medida, o que já está enraizado e incrustado no senso comum (PAIVA, 2004).

Essa produção simbólica interfere na formação do imaginário social, que é composto pelas associações imagéticas que atuam como uma memória afetiva e social, uma espécie de substrato da ideologia hegemônica (MOARES, 1997). Os produtos midiáticos podem criar e desenvolver visões de mundo, estilos de vida, hábitos e condutas que dão continuidade à conjuntura dominante vigente e já bem estabelecida ou mesmo introduzir símbolos para sua superação, através de uma guerra de trincheiras, isto é, devagar e bem estudada, num ambiente de constante disputa. Essa recordação, na qual a mídia possui um papel importante, representa um esforço de formulação e de manutenção da identidade daquelas imagens que circulam dentro das multiplicidades dos grupos e coletivos sociais (PAIVA, 2004), em outras palavras, não apenas revelam um empenho pela recordação da classe dirigente e dominante na sociedade, tendo em vista que os meios de comunicação possibilitam um espaço de embates e conflitos, conforme concepção das guerras de memórias.

Para Martín-Barbero (2008), no entanto, o êxito dos meios de comunicação de massa depende do como a experiência popular se inscreve e se transforma, não sendo, no entanto, a globalização a culpada por essas junções das empresas midiáticas. Para McChesney (2004), o problema está no modelo neoliberal de livre concorrência no mercado capitalista, que possui regras frouxas no tocante à proteção dos países e populações sem dominação econômica

Esse fenômeno faz com que, diferentemente de como acontecia até a década de 1980, o mercado mundial de comunicação seja dominado por menos de dez empresas multinacionais e apenas vinte empresas apareçam como responsáveis por três quartos da receita global de publicidade. Em 1999, os 125 filmes mais rentáveis do mundo foram praticamente todos produzidos em Hollywood, exatamente por esses monopólios. Robert McChesney (2004) aponta que o cinema dos Estados Unidos, em outras palavras, de Hollywood, está nas mãos de apenas sete empresas e seus estúdios. Esses mesmos grupos controlam ainda: as maiores redes de televisão estadunidenses, com exceção de uma, até 85% do mercado da música internacional, os principais canais a cabo do mundo, além da influência nas edições e publicações de livros e revistas.

Para permanecerem como dominantes no mundo inteiro, essas poucas empresas têm como apoiadores, e não opositores, um “segundo escalão” midiático, composto por mais de 50 conglomerados, que dominam um público nacional e regional, além de nichos de mercado. Essas empresas aproximam os políticos locais das gigantes midiáticas. Na perspectiva de Lima (2004), os monopólios midiáticos brasileiros foram facilitados pela privatização dos

veículos de radiodifusão e das telecomunicações e pela inserção das novas tecnologias após 1995. A dominação em âmbito global poderia parecer contrastante com o crescimento dos produtos locais, especialmente no jornalismo, no cinema e na internet.

Os meios de comunicação realizam um esforço diário de convencimento para cristalização e estabilização de suas perspectivas, sendo espaços primordiais para essa disputa simbólica. Isso pode ser percebido, na perspectiva de Jorge Almeida (2011), quando o governo desenvolve estratégias, através do lobismo, para tornar a opinião pública mais favorável antes de uma ação sem ampla aceitação popular. O embate põe a mídia em um lugar especial na briga pela obtenção do consenso, segundo Moraes (1997, 2010), não somente por causa da produção e disseminação de símbolos ideológicos, mas também por colocarem o mercado e o consumo como representantes ideológicos e serem a parte mais dinâmica da superestrutura e da sociedade civil. A mídia compõe, desse modo, um território polifônico de embates, sendo um palco primordial para os conflitos, seja reforçando as perspectivas hegemônicas dos grupos dominantes ou enfraquecendo os valores sociais já consolidados (MORAES, 2010), em outras palavras, os meios de comunicação não devem ser compreendidos como um terreno harmonioso e homogêneo.

A mídia possui uma forte influência em diversas instâncias da sociedade, mais do que em períodos históricos anteriores. De acordo com Almeida (2011), ela está em uma posição fulcral, uma vez que tem uma função de superestrutura – no tocante à direção política e cultural – e de estrutura – a partir da economia –, ou seja, tanto ao nível das representações culturais e sociais como da estrutura da política econômica. Essas influências da mídia nos sistemas econômicos, sobretudo com as incipientes sociedades midiatizadas a partir das últimas décadas do século passado, são observadas por estudiosos de comunicação como McChesney (2004) e Venício de Lima (2004). De acordo com o primeiro, os gigantes conglomerados midiáticos são beneficiários da estrutura econômica atual do mundo, enquanto o segundo investiga esse alicerce em níveis nacionais, regionais e locais.

A história da mídia revela, de modo geral, um processo de cooptação para o mercado. Michael Schudson (2010) explica que os primeiros jornais do século XVII não eram vendidos e, até ao menos um século depois, não serviam como fontes de renda para seus donos porque a receita custeava apenas a produção. As publicações não geravam uma acumulação de riqueza e não eram o principal empreendimento para lucro dos proprietários, pois os jornais eram vendidos pela moeda com menor valor da época – um penny, quando surgiu a chamada penny press. Essa lógica começa a se alterar, todavia, ainda no século XIX e se consolidar no século seguinte, com o aumento das tiragens e a inserção de publicidade. Até a internet, que

surgiu no final dos anos de 1960 com finalidade acadêmico-militar, só incorporou publicidade através de anúncios quase três décadas após, especificamente no ano de 1994, três anos depois da inauguração da WWW, desenvolvida por Tim Berners-Lee no início dos anos de 1990 (TOLEDO; NAKAGAWA; YAMASHITA, 2002).

Hjarvard (2012) segue concepção semelhante, ao afirmar que, no início, os meios de comunicação eram guiados pelos interesses exclusivos do emissor – seja pela imprensa partidária ou pela lógica de serviço público para concessão de rádio e TV. Hoje, todavia, a lógica de mercado faz com que a orientação seja mais destinada aos interesses do público. Essa estruturação, ainda assim, não se reduz à lógica econômica de mercado, pois os meios de comunicação, ao mesmo tempo, vendem produtos aos consumidores e prestam serviço aos cidadãos. O jornalismo, por exemplo, costuma ser trabalhado pela perspectiva de uma linha tênue: de um lado, com seu papel social bem delimitado; de outro, como uma prática para lucrar e dominar, afinal, a notícia seria um produto à venda2 (MEDINA, 1988).

Apesar de compreender que os grupos de comunicação estão cada vez mais envoltos nesse espírito comercial, eles não podem ser reduzidos a esses interesses, pois, desse modo, seriam apagadas outras relações de forças envolvidas nesse processo. Não podemos desconsiderar, todavia, as influências de instâncias políticas, religiosas e outras. Nas palavras de Genro Filho (1987), não podemos reduzir a prática jornalística às ideologias de classe ou às suas condições históricas de nascimento. Se a notícia pode ser considerada uma mercadoria, ela não é, contudo, qualquer mercadoria. Em análises dos meios de comunicação, encontramos exemplos de ambas as perspectivas, e muitas vezes elas estão mescladas e são de difícil separação, não sendo fácil demarcar o interesse comercial e o serviço prestado.