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Migração e participação da mulher no contexto econômico

“[...] em cima de um caminhão bem cedinho ele vai, sem nenhuma garantia o seu pão de cada dia ele vai tentar ganhar”.

(Autor desconhecido)

A visão predominante e hegemônica da economia é androcêntrica e patriarcal e está fundamentada nos princípios da economia capitalista, da propriedade privada dos meios de produção, com o trabalho mal pago, o lucro, alienação e exploração do trabalho e dos corpos das mulheres. É convencionado e agregado valor ao trabalho que gera lucro. Assim, não valoriza nem visibiliza o trabalho doméstico e reprodutivo, responsável pelo cuidado com as pessoas e a reprodução da vida.

A participação da mulher na renda familiar deu um grande salto nos últimos anos. Apesar dessa relevante inserção feminina no mercado de trabalho não teve diminuído o seu papel de cuidadora, mãe, esposa e responsável pela administração da casa, justamente devido aos diversos papéis desempenhados na sociedade pela mulher, a decisão de participar do mercado de trabalho, sendo mais complexa que a masculina.

Os principiais determinantes da crescente presença da mulher no mercado de trabalho tem intensificado a partir da queda da fecundidade, aumento de mulheres enquanto chefes de famílias. No entanto, uma vez inseridas no mercado de trabalho, a mulher apresenta uma média salarial inferior à masculina, apesar de ter um nível médio de instrução maior. Mesmo com a redução da diferença salarial entre homens e mulheres observada nos últimos anos, os homens ganham em média 60% a mais que as mulheres. Fato que se aplica em diversas realidades, inclusive no meio rural, a exemplo de Pintadas como afirma Nereide Segalla:

Quando cheguei em Pintadas me estranhou muito quando vi que era comum as pessoas pagarem um dia de serviço para o marido e a mulher desenvolver o mesmo trabalho na roça e quando pagava a mulher recebia a metade do valor da diária em relação ao homem. Fato que me chamou a atenção e comecei questionar na época e as pessoas diziam pra mim que era assim desde o

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tempo dos seus avós que as pessoas já estavam acostumadas assim.

A desigualdade de gênero está imbricada nos diversos contextos sociais e de forma específica em Pintadas, onde mais da metade das mulheres têm origem rural. Portanto, com base no depoimento de Nereide não é necessário sair para as grandes indústrias para perceber as diferenças salariais, fato que tem sido um desafio para essa luta e sinaliza para a necessidade de superação do machismo que oprime e reproduz essa cultura simbólica que forma e ou deforma os seres humanos.

Como já mencionei, Pintadas sofre com grandes estiagens criando uma instabilidade no que se refere à permanência do homem e da mulher no campo. A principal base econômica do município desde a sua origem até os dias atuais é a agropecuária e, majoritariamente, a agricultura familiar. Não está na pauta da economia de grandes centros, foi e é referência de organização social e política aplicando práticas pedagógicas de troca de saberes comunitários, associativos e cooperativos por trazer em seu contexto uma rica experiência de articulação, de cooperação com ideias comuns para romper a hegemonia conservadora e opressora do capitalismo.

Foi no início da década de 1980, que se iniciou o fluxo migratório nos períodos de safra da cana de açúcar, normalmente entre março e dezembro de cada ano. A “migração” é definida como o “fenômeno demográfico caracterizado pelo deslocamento de um indivíduo do seu local de residência para um novo local”, segundo Fernandes, D. & Vasconcellos, I. R. P. (2005).

Há diversos estudos que indicam que os motivos que levam as populações a migrarem estariam relacionados com a busca por trabalho, por melhores oportunidades e por melhores salários. Assim, o fenômeno da migração seria resultado de características regionais, cuja base estaria na falta de oportunidades de trabalho e de formação escolar. A migração inicia principalmente com jovens do sexo masculino, a partir dos dezoito anos de idade.

A migração sazonal e temporária, para muitos pode durar a vida toda, pois o migrante percebe no trabalho assalariado um ganho mais seguro do que na sua região de origem. Martins (1988), colabora com novas visões a respeito do impacto da migração ao migrante, ao afirmar que:

A migração temporária tem um efeito devastador sobre sua vida: rompe laços familiares, expressa a miséria e a impossibilidade da

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sobrevivência econômica no pequeno lote agrícola, próprio ou arrendado, denuncia a exploração que inviabiliza a vida sedentária e lhe impõe a vida nômade que desmoraliza, empobrece sua vida social. (MARTINS 1988)

Muitos homens e algumas famílias viajavam em busca de uma vida melhor, como afirma o Senhor Daniel Mendes15 em entrevista, que vivenciou a rotina de ser um

pião16: “Muitos eram analfabetos ou mal sabia escrever o nome”. Levavam as marcas de um regime de exaustivo trabalho em busca de oportunidade nas lavouras do interior do estado de São Paulo que sofriam as mais terríveis discriminações por serem pobres, analfabetos, nordestinos, ter sotaque estranho. Eram vistos como “matutos” além de tantos outros marcadores que ao longo da história foram estereotipados e caricaturados criando um imaginário negativo desses trabalhadores “invisíveis ao progresso industrial”, como afirma a Eli Estrela (2003).

O meio de transporte para os primeiros viajantes era o pau de arara (caminhão). A comunicação era bastante limitada, muitos chegavam em São Paulo apenas com um endereço de um parente que mal se conheceram quando ainda crianças. Sem uma comunicação mais rápida muitos ficavam semanas perdidos sem encontrar ninguém conhecido, às vezes se desencontravam e muitos se submetiam a qualquer proposta para não passar fome.

O principal meio de comunicação era carta, que, às vezes, passava meses até ir e voltar. Muitas mulheres ficavam grávidas e o marido só sabia quando voltava. “Era um tempo difícil” diz Daniel Mendes com lágrima nos olhos. Continuando o seu depoimento ele diz:

Os que sabiam escrever, as vezes passava uma tarde no dia de folga escrevendo carta para os amigos que eram analfabetos para enviarem para as suas famílias, eu me lembro que tinha uns homens carrascos que dizia que nunca dava ousadia para dizer que amava a mulher e eu escrevia as cartas e colocava várias frases de amor e a mulher respondia toda emocionada e aos poucos eles iam gostando das declarações de amor”. (MENDES, 2014)

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Daniel Mendes, Liderança comunitária de Pintadas, foi vereador na década de 70 do município de Pintadas, candidato a prefeito na primeira eleição após a emancipação política.

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Pião - Nome dado aos homens que trabalhavam no pesado como “boia fria” que levava a comida para o serviço ou “queimando lata” quando eles mesmos preparavam a sua alimentação. Diz Daniel Mendes.

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Assim, a saga do migrante se resumia entre os muitos meses distantes de sua família, ausente de sua comunidade, enfrentando a brutalidade de uma cultura opressora e desigual. Nesse contexto, quem viajava em sua maioria eram os homens; já as mulheres ficavam com a dupla e ou tripla responsabilidade de administrar a propriedade, cuidar dos filhos e participar da vida social, política e religiosa na comunidade.

Conforme pesquisa realizada por Raymundo e Asano (2006) da Fundação Getúlio Vargas ao estudar sobre noções de participação sobre a sustentabilidade da Rede Pintadas afirmam:

A cultura de migração sempre esteve presente na região, já que quase não se pensava na possibilidade de desenvolvimento do semiárido. Os homens migravam e a administração das propriedades rurais recaia na mão das mulheres que passaram a ter um papel importante nos movimentos sociais. Essa participação foi posteriormente potencializada com incentivo da igreja católica e a participação das próprias mulheres de sua força e capacidade de decisão, isto tudo contribuiu significativamente para uma maior participação política, econômica e social das mulheres em Pintadas, situação atípica no Nordeste (RAUMUNDO & ASANO, 2006, p. 6).

A realidade da migração nas décadas de 1970 e 1980 foi bastante intensa, uma vez que havia uma escassez de oportunidades de novos empregos no município e na região. Daí a razão de centenas de jovens deixarem de estudar para ir em busca de emprego no Sul e Sudeste brasileiro, principalmente para as regiões do cultivo da cana- de-açúcar no estado de São Paulo. Cerca de 3000 trabalhadores e trabalhadoras iam no início da safra e voltavam no final da colheita, fazendo um ciclo sazonal, segundo afirma Julita Trindade.

Quando o homem viaja, há uma mudança de papéis, mesmo que no período de alguns meses ao ano. Isto não significa, contudo, um rompimento total com a estrutura de poder predominante na família e características das relações de gênero, pois segundo Joan Scott (1990), “gênero é o primeiro campo – mas, não o único – no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado. Há, de certa forma, uma influência nas relações de poder...”. Assim as mulheres têm um pouco mais de autonomia e iniciativa para tomar decisões com a ausência do esposo, embora, mesmo distante em muitos casos a presença masculina ainda é muito forte. A autoridade familiar, e o poder patriarcal tem

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se reproduzido ao longo da história nas práticas cotidianas principalmente nas atividades domésticas e ou nos trabalho de produção.

A monografia Pintadas e sua Trajetória de Fé e Luta: A contribuição das CEBs para as organizações sociais de autoria de ALMEIDA et al (2004), no que se refere a história das mulheres registra que:

[...] muitas dessas guerreiras foram vítimas da migração que as prejudicava muito, pois quando os esposos saíam para migrar sua jornada de trabalho se multiplicava, além de cuidar dos afazeres domésticos e dos filhos tinham que cuidar da lavoura e dos animais, dentre outras atividades até então consideradas masculinas. Mas mesmo assim estas mulheres não se acomodaram e foram fortalecendo a organização, conquistando seu espaço na sociedade, buscando ter voz e vez e fazendo valer seus direitos (ALMEIDA et al, 2004, p. 3).

Nos meses em que os maridos trabalhavam nas lavouras paulistas, havia uma ideia de que eram “viúvas de maridos vivos”. Essas se reconheciam viúvas quando tinha que assumir a dupla jornada de trabalho, tentavam em grupos discutir os problemas sociais e o que fazer para melhorar a realidade local, como afirma Julita Trindade.

Preocupada com essa situação de migração, grupos comunitários que uniam fé e vida e inspirados na concepção da Teologia da Libertação, buscavam soluções para os problemas cotidianos e partilhavam ações de interesse comum, era um grito coletivo para combater a situação de desemprego e diminuir a migração.

Com o passar dos anos foram sendo desenvolvidos projetos estruturantes que tinha como objetivo central a permanência do homem e da mulher no campo, para garantir educação de qualidade para a juventude. Para fazer valer essa luta a década de 1990 em Pintadas foi marcada pelo fortalecimento do associativismo e cooperativismo que, de forma estratégica, pensou de forma integrada o desenvolvimento local sustentável.

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