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2. AMOR NO FEMININO: A ENUNCIAÇÃO TRAVESTIDA NA POÉTICA

2.4. MIL PERDÕES

Diz Mia Couto, em determinado momento do conto, que o ciúme é a paixão às avessas. Esse sentimento, chamado por Shakespeare em Otelo de “monstro dos olhos verdes” e encarnado em Bentinho, o personagem machadiano de Dom Casmurro, é tema de outra canção de grande força enunciativa, “Mil perdões”, composta para a trilha

sonora do filme Perdoa-me por me traíres. O filme é uma adaptação da peça de mesmo título de Nelson Rodrigues. É preciso que falemos outra vez de intertextualidade, esse recurso constante da literatura e de outras expressões artísticas. O texto, em seu sentido amplo, é “um tecido de citações”, como nos diz Barthes em O rumor da língua. E na obra de Chico Buarque esse tecido se coloca em evidência tanto no diálogo com autores e obras clássicas, como “Beatriz” (1982) e a evocação a Dante e a sua A divina comédia, como a conversa que estabelece com a sabedoria popular através dos provérbios e ditados populares ou a intertextualidade que faz com a sua própria obra, citando suas próprias canções e trazendo personagens e situações de canções anteriores para a que está compondo.

Em “Mil perdões”, o título já dialoga com o título do filme através da palavra perdão. Mil perdões é também uma expressão do discurso generalizado, inclusive podendo tornar-se vazia de sentido, algo que se diz por educação ou conveniência, mas que também pode expressar realmente arrependimento ou necessidade, por parte do enunciador, de perdão. A peça que origina o filme narra o drama de Raul perseguido pelo desejo de ser traído por uma mulher. Raul tem uma sobrinha, Glorinha, deixada a seus cuidados depois que os pais da menina morrem. Ele tem obsessão pela menina, exigindo contas de tudo o que ela faz e castigando-a ao menor deslize. Esse ciúme doentio depois se justificará na semelhança da menina com a mãe, Judite. Esta era casada com Gilberto, irmão de Raul, e é acusada pelo marido de traição. Gilberto enlouquece e Raul consegue provar a culpa de Judite. Mas o irmão traído isenta a mulher de seu crime, dizendo ser ele o único culpado e enunciando a frase que dá nome a peça e filme: “Perdoa-me por me traíres”. Gilberto morre logo depois no sanatório e Judite é envenenada por Raul com o seu próprio consentimento, por amargar a culpa pela morte do marido. A última frase de Judite é: “Minha filha”. Glorinha cresce e passa a frequentar um bordel, onde se torna objeto das taras de velhos ricos e importantes. O tio, ao descobrir o que a menina faz quando deveria estar na escola, realiza seu desejo de ser traído por uma mulher. Mas a mulher que o trai deve morrer. Nisso se completa seu gozo. A traição de Judite fora indireta, ela traíra seu irmão, mas sentiu-a como sua. Com Glorinha agora era uma traição direta. Ela o traiu e deve ter o mesmo destino da mãe. Esse, no entanto, não é o desejo da menina que vê ali a oportunidade de se livrar do tio castrador. Ela propõe que morram juntos, ambos envenenados ao mesmo tempo. E mais uma vez o trai, fazendo com que ele beba o veneno enquanto ela apenas finge

bebê-lo. Enquanto o tio agoniza, Glorinha atende ao chamado de mais um cliente do bordel.

O enredo da tragédia rodriguiana nos interessa para observarmos como ele emerge na canção. Obras que se referenciam, são também independentes. Vejamos, então, a canção:

Te perdoo

Por fazeres mil perguntas Que em vidas que andam juntas Ninguém faz

Te perdoo

Por pedires perdão Por me amares demais Te perdoo

Te perdoo por ligares Pra todos os lugares De onde eu vim Te perdoo

Por ergueres a mão Por bateres em mim Te perdoo

Quando anseio pelo instante de sair E rodar exuberante

E me perder de ti Te perdoo

Por quereres me ver

Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir) Te perdoo

Por contares minhas horas Hás minhas demoras por aí Te perdoo

Te perdoo porque choras Quando eu choro de rir Te perdoo

Por te trair

A traição de Glorinha é a mentira, o fato de enganar o tio, de dar-se como objeto aos homens do bordel quando o tio pensa que ela está na escola. Qualquer pequena falta sua descoberta pelo tio é paga com uma surra terrível. O que a menina mais teme ao visitar o bordel de Madame Luba é que o tio descubra, porque ela vai apanhar. Com o tempo, ela passa a ter prazer na mentira, prazer em enganar o tio, é sua vingança e esta culmina com sua desfaçatez ao combinar um encontro no bordel na frente de Raul que agoniza. Na canção, a personagem de Chico perdoa o seu interlocutor pelo seu próprio comportamento. Não é o traído que pede perdão, mas a traidora que emite esse perdão, mesmo que ironicamente se consideramos o contexto do drama rodriguiano. A canção funciona como uma resposta ao grito de Gilberto: “Perdoa-me por me traíres!”. Ela

afirma esse perdão várias vezes no decorrer da letra e vai dizendo a que dá o seu perdão: à desconfiança do homem – “por fazeres mil perguntas/que em vidas que andam juntas/ninguém faz” –, ao amor excessivo que ele lhe tem – “por me amares demais” –, à perseguição de todos os seus passos – “por ligares/pra todos os lugares/de onde eu vim” e “por contares minhas horas/nas minhas demoras por aí” –, à violência que sofre de suas mãos – “por bateres em mim” –, ao desejo que ela tem de sair para a rua e fugir dele – “quando anseio pelo instante de sair/e rodar exuberante/e me perder de ti”. É o traído quem, através de suas atitudes para com a mulher, ensina a traição a ela e ensina por desejar ser traído. Isso se revela nos versos: “por quereres me ver/aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)”. E ela aprende tão bem que torna-se insensível à dor que causa ao homem: “te perdoo porque choras/quando eu choro de rir”. Os versos finais da canção são, nos lábios da mulher, a afirmação da culpa de seu interlocutor: “te perdoo/ por te trair”. Verso de ouro, como diriam os parnasianos, é a conclusão do que foi enunciado e a conclusão do drama vivido por esse homem e essa mulher.

Pensando a canção no contexto da peça, a vingança da mulher de “Mil perdões” não se dá através da felicidade que exibe ao outro, como vimos em “Olhos nos olhos”, mas na realização do desejo que atormenta o homem, o pavor delirante de ser traído. Voltando à associação entre paixão e ciúme, assim como a primeira pode levar à loucura e a atitudes extremas também o ciúme pode tornar-se uma doença terrível ou, no caso do personagem Raul, ser na verdade a ponta de problemas psicológicos bem mais graves: a obsessão pela traição, a concepção da traição como crime imperdoável, a repetição da cena da traição que leva à necessidade de perseguir e manter Glorinha sob sua vigilância. Assim como “Olhos nos olhos”, “Mil perdões” traz a voz de uma mulher que se vinga de seu interlocutor usando aquilo mesmo que recebeu dele.