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3. A CANÇÃO DE CHICO: FOMENTAÇÃO E REFLEXÃO SOBRE O IDEAL DE

3.3. ROMANCE

A música de Chico Buarque nos convida, assim, para um jogo discursivo que nos envolve e seduz pelo ideário amoroso que veicula, pelo modo como fala de amor, ao mesmo tempo que nos leva a transcender esse ideário ao nos propor refletir sobre como o vivenciamos e desejamos. A canção “Romance”, do disco Paratodos (1993), é outro exemplo desse jogo de prazer e fruição que é a lírica buarquiana. O próprio título da canção já nos remete ao contexto romântico conhecido de todos nós. A palavra romance, ainda que possa assumir outras conotações, nos leva logo à ideia de amor, encontro ou vivência amorosa. Isso se confirma nos primeiros versos: “Te sequestrei/Vou te reter pra sempre/Na minha ideia”. O encontro do sujeito lírico e sua amada se apresenta no sequestro de que os versos falam. O enunciador guarda para si a imagem da amada. Ela é uma mulher ideal, ou idealizada, vive na ideia do amante, enquanto uma outra, sua “dublê”, vive em seu lugar. O romance de que a canção nos fala é aquele do “amor distante dos trovadores” (ROUGEMONT, 2003, p.393). O amor que só sobrevive enquanto idealização. Só na ideia do amante ele pode ser “pra sempre”. Octávio Paz, ao nos falar sobre o nascimento do amor no Ocidente, traz-nos a poesia medieval como uma forma de alcançar uma existência superior, sublime. O amor dos trovadores era um “sentimento elevado” (PAZ, 1993, p. 70), denominado “fin’amors”, amor purificado, refinado. “Um amor que não tinha por fim nem o mero prazer carnal nem a reprodução. Uma ascética e uma estética” (ibidem, p. 70). É o que parece ser a escolha do sujeito da canção de Chico: o amor elevado, perfeito em sua idealização e, por isso, passível de ser duradouro.

No século XII, na França, aparece por fim o amor, não como um delírio individual, uma exceção ou um extravio, mas como um ideal de vida superior. A aparição do “amor cortês” tem algo de milagroso, pois não foi consequência de uma pregação religiosa nem de uma doutrina filosófica. Foi a criação de um grupo de poetas no seio de uma sociedade reduzida: a nobreza feudal do sul da antiga Gália. (...) Foi um anúncio, uma primavera. O século XII foi o século do nascimento da Europa; nessa época surgem o que seriam depois as grandes criações de nossa civilização, entre elas duas das mais notáveis: a poesia lírica e a ideia do amor como forma de vida. (PAZ, 1993, p. 70)

Octavio Paz nos fala ainda que o nascimento do amor está intimamente ligado à liberdade vivida por muitas mulheres no período medieval: “a história do amor é inseparável da história da liberdade da mulher” (PAZ, 1993, p. 73). Mulher e amor se confundem como elementos motivadores dos anseios dos trovadores e dos poetas até os dias de hoje. Na canção de Chico, duas mulheres aparecem: a idealizada e uma outra, “alheia”, que é a real. E a mulher que é amada não pode ser esta última, mas aquela que condiz com o ideal de mulher construído pelo enunciador. Só dessa forma ela pode viver plenamente e ser “a pessoa”. Assim como prefere viver o amor idealizado, o sujeito escolhe a mulher ideal. Denis de Rougemont, ao analisar o mito de Tristão e Isolda, diz dessa mulher tornada sonho, a mulher distante, que se desfaz quando tocada.

Pois Isolda é sempre a desconhecida, o próprio enigma da mulher, representa tudo o que há de eternamente fluido, evanescente e quase hostil, ou seja, tudo o que incita à perseguição e desperta a avidez da posse, a mais deliciosa das posses para o coração de um homem subjugado pelo mito. É a mulher-da- qual-estamos-separados: nós a perdemos quando a possuímos. (ROUGEMONT, 2003, p. 380)

Segundo o ensaísta, “a liberdade da paixão é condicionada pelas estatísticas publicitárias” (ibidem, p. 379) e pelo cinema. Temos um ideal de amor criado ou aprendido através dos meios de comunicação e é esse ideal que perseguimos. Assim o é com a mulher da canção. “Romance” é novamente, não uma canção de amor, mas uma canção sobre o amor, sobre o amor convencionado culturalmente. O amor que aprendemos a desejar com os livros, o cinema, as canções. Nas entrelinhas da canção, vemos surgir ecos das cantigas trovadorescas: o trovador a cortejar sua dama, mulher inatingível, perfeita enquanto ideal, enquanto sonho. Em “A moça do sonho”, canção em parceria com Edu Lobo, do disco Cambaio (2001), a figura da mulher-sonho aparece como o próprio sonho, que se desfaz diante das tentativas do sujeito de torná-lo real. Todo intento de aproximação é frustrado: o rosto torna-se pó, o vestido se parte. Só no confuso e onírico casarão essa mulher pode reinar, “com seus risos, seus ais, sua tez”, só lá “os sonhos são reais e a vida não”. E o enunciador, se pudesse, escolheria viver nesse casarão, onde ficam os “sonhos extraviados” e a moça mora. Ela, “a moça do sonho”. Mas ele não pode.

Certamente seria exagerado dizer que a maioria dos homens contemporâneos é vítima do delírio de Tristão. Poucos têm sede bastante para beber o filtro, e pouquíssimos são eleitos pelo destino para sucumbir ao tormento exemplar. Mas todos ou quase todos sonham ou deliram com isso. E por mais tênue e apagada que esteja a marca do mito primitivo, eis aí o segredo da inquietação que atormenta os casais de hoje. Nada repugna tanto a consciência moderna quanto a ideia de uma limitação voluntariamente assumida; e nada a lisonjeia

mais do que a miragem de uma infinita libertação que a lembrança do mito suscita. (ROUGEMONT, 2003, p. 384-385)

Precisamos do mito, nos alimentamos de um ideal de amor e a ele almejamos. A canção de Chico confirma esse ideal, revive-o e reaviva-o, ao mesmo tempo que nos faz voltarmo-nos sobre ele para pensá-lo enquanto construção cultural. Texto de prazer, texto de fruição. E o compositor tem consciência do papel e do espaço que tem a sua canção nos meios que a legitimam. Sabe que pode ser bem ou mal entendido, que sua música é livre, que ela ganha vida própria no ato enunciatório que professa. Sabe que, como as suas meninas, da canção “Minhas meninas”, que se aventuram pela vida diante do olhar impotente do pai, também “saem sozinhas as notas da sua canção”. Seu texto tem vida própria e, a cada execução de sua música, ele é novamente vivenciado por e em seus ouvintes. Às vezes, essa vivência destoa daquilo que o compositor propôs. É o que Chico nos conta sobre a canção “Mulheres de Atenas”, também em entrevista para o documentário À flor da pele (2005):

“Mulheres de Atenas” foi uma canção escrita para uma peça de Augusto Boal. Na verdade, ele escreveu o roteiro da letra, um rascunho da letra, e mandou pra fazer a melodia e dar uma ajeitada. Essa é uma peça feminista, bem dos anos 70, e é engraçado que a canção foi condenada por algumas feministas radicais porque dizia: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres da Atenas”. Quando evidentemente a ideia era dizer: “não se mirem no exemplo”. Mas foi tomada ao pé da letra por algumas. Havia um pouquinho disso também, de bobagem, né? Essa coisa do feminismo levado às últimas consequências às vezes resultava em grandes besteiras. É isso. Era uma canção feminista para uma peça feminista”.

Esse episódio traz à cena novamente a figura enganosa do “falso” cantor de “Choro bandido”. Enganosa porque ironicamente o compositor diz que as mulheres devem se “mirar” – e no verbo fica implícito a ideia de espelho, utensílio fundamental para a vaidade feminina e, enquanto possibilidade de produzir o reflexo de algo ou alguém, imitação ou projeção de uma coisa em outra – no exemplo das mulheres de Atenas. Mas, na verdade, o que ele diz é que as mulheres, ouvintes da canção, não devem imitar o exemplo das atenienses. Devem fazer o contrário do que fazem as mulheres submissas de Atenas. Essa passagem nos remete a outra citação de Barthes. Dessa vez, de “A morte do Autor”, capítulo de O rumor da língua.

(...) mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito. (BARTHES, 1988, p. 67)

Como todo texto, considerado aqui em seu sentido amplo, a canção de Chico Buarque tem vida própria. Ela vive no ouvinte, é ele o espaço onde a canção continua infinitamente. Nesse espaço, ela ganha todas as conotações, se enriquece de novos significados, é lida e compreendida às vezes em contextos diversos daqueles em que o compositor a colocou. No caso da canção “Mulheres de Atenas”, as feministas que se revoltaram com Chico leram a música em um sentido restrito, sem conseguirem enxergar pelas frestas em que o artista compõe sua obra. A voz de Chico Buarque guarda em si ecos de outras vozes, advindas de outros poetas e compositores, mas também é a voz que “falseia”, que diz para dizer outra coisa. É o cantor/compositor/poeta bandido que finge para dizer melhor, com mais verdade. Sua poesia é, como nos diz Octavio Paz ao falar da poesia em geral, uma “erótica verbal” (PAZ, 1993, p. 12).

A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota ideias corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação. (...) A imagem poética é abraço de realidades opostas e a rima é cópula de sons; a poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela própria, em seu modo de operação, já é erotismo. (PAZ, 1993, p. 12)

A poética de Chico Buarque nos convida ao jogo. E esse jogo é erótico em seu sentido mais pleno, sedução amorosa das palavras, desejo fremente de vida. Falamos aqui que a canção talvez seja a grande musa do compositor, mas melhor seria dizer que é a palavra sua grande inspiração. Na canção “Uma palavra”, do disco de mesmo título (1989), ela surge como “Palavra prima/ Uma palavra só, a crua palavra/ Tudo/ Anterior ao entendimento, palavra”. É a palavra o instrumento e objeto de seu ofício. Com ela constrói sua obra musical e literária, mas ela também o constrói. Mesmo explorando temas recorrentes e produzindo uma canção que se autorreferencia constantemente, Chico não se repete, mas renova e recria sua obra na relação erótica, pulsante, que tem com a palavra. Através de um veículo de expressão popular que traz em si toda uma tradição lírica, a canção, e tendo como o tema o mais explorado por todos os poetas e compositores, o amor, Chico com sua verve sutil, esmerada, arquitetonicamente calculada, propõe a seu ouvinte um novo olhar sobre o amor e sobre a canção.