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3. A CANÇÃO DE CHICO: FOMENTAÇÃO E REFLEXÃO SOBRE O IDEAL DE

3.2. QUALQUER CANÇÃO

Essa constante referência à própria canção relaciona-se muitas vezes, como em “Choro bandido”, com o discurso de amor e com o papel da canção como pano de fundo ou elemento motivador, provocador, de histórias de amor. É o que Chico propõe refletir em “Qualquer canção”, do disco Vida (1980). Nessa música, mais uma vez somos levados a ver através. Atravessamos o discurso da canção, atravessamos o discurso de amor. A canção em si não é uma canção qualquer, pelo menos não é uma canção de amor qualquer, pois não é nem mesmo uma canção de amor. É uma canção sobre a

canção de amor. Se observarmos, sem muito esforço, a história da canção e também a da poesia, percebemos que é sempre o amor o maior motivador de ambas. Tanto a canção quanto a poesia embalaram e ainda embalam os romances, os amores. A melodia, as palavras de amor que traduzem o sentimento dos amantes – ou do amante, já que tantas vezes é o desamor o que mais motiva a ouvir uma música de amor – , o clima de romance, tudo isso a canção de amor propicia. Vejamos:

Qualquer canção de amor É uma canção de amor Não faz brotar amor E amantes

Porém, se essa canção Nos toca o coração O amor brota melhor E antes

A primeira estrofe da música começa desmistificando a canção: “Qualquer canção de amor/É uma canção de amor”, para logo em seguida dizer que, se essa canção não faz brotar o amor, mas nos tocar o coração, “o amor brota melhor e antes”. Chico se apropria de expressões populares como “tocar o coração” e a imagem do amor brotando como semente para nos fazer pensar no lugar que ocupa a canção e o discurso sobre o amor na vida do ouvinte. Mesmo antes de amar, já amamos através dos versos que ouvimos. Composta em estrutura paralelística, a canção apresenta nos primeiros versos das três estrofes a mesma organização: a canção de “amor” na primeira estrofe será de “dor” na segunda e de “bem” na terceira. Mas é sempre a canção, qualquer canção, de amor.

Qualquer canção de dor Não basta a um sofredor Nem cerze um coração Rasgado

Porém, inda é melhor Sofrer em dó menor Do que você sofrer Calado

Na segunda estrofe, surge o par amor/dor, rima perfeita para representar as histórias de amor16, na substituição do primeiro elemento pelo segundo. E a canção, se não faz “brotar o amor”, também não é a solução para um “coração rasgado”. No entanto, melhor com ela do que sem ela. A canção aparece como consolo e a companhia para o amante desiludido. Os versos finais dessa estrofe trazem um certo tom irônico. É

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A associação entre amor e dor é um lugar-comum: a ideia de que todo amor traz uma carga de sofrimento, ou seja, para ser realmente amor, deve fazer sofrer. “O verdadeiro amor reconhece-se e, por assim dizer, mede-se e avalia-se na dor e sofrimento de que é capaz (ORTEGA Y GASSET, 2002, p. 14)

o riso leve, deboche sutil do cancionista, que aponta para o estado patético da chamada dor de cotovelo, expressão subentendida no termo “canção de dor”, e também para o hábito de se recorrer a esse tipo de música quando se está sofrendo de desamor.

Qualquer canção de bem Algum mistério tem É o grão, é o germe, é o gen Da chama

E essa canção também Corrói como convém O coração de quem Não ama

Na estrofe final, a canção torna-se “de bem”. Esse epíteto remete à expressão “de bem” que é comumente usada para se referir a algo ou alguém que é bom. Uma “canção de bem” seria uma canção que traz o bem. Mas a expressão também nos faz pensar no uso da palavra “bem” para se referir à pessoa amada, o ser que é o “bem” de outro – “bem” é inclusive um dos epítetos que os casais costumam usar para se referir um ao outro. E a canção que não faz amar, mas faz com que o amor surja melhor; que não cura o desamor, mas acalenta o coração choroso; é agora o “grão”, o “germe” e o “gen” da “chama”. No famoso poema “Soneto da fidelidade”, Vinícius de Moraes associa amor a chama. A chama assim como o fogo são constantemente metáforas para o amor. Basta lembrar um outro soneto também famoso, este de Luís de Camões, “Amor é fogo que arde sem se ver”. Na canção, também se pode ler dessa forma o uso da palavra “chama”. A canção é criação, ela cria, germina, faz surgir o amor. Como é comum na poética buarquiana, construída frequentemente sobre um jogo polissêmico e semântico, as palavras grão, germe e gen associam-se ao verbo “brotar” da primeira estrofe para falar do “mistério” que tem a música, sua capacidade de mexer com os sentimentos do ouvinte, a ponto de “corroer” até mesmo o “coração de quem não ama”. Mesmo aquele que não tem a sensibilidade aguçada pelo sentimento amoroso, ao ouvir uma bela canção, tem a sua emoção cativada.

“Qualquer canção” propõe ao ouvinte que se volte para ela, canção, a observar o seu papel, enquanto objeto artístico, de criar possibilidades de amor alimentadas pela experiência do artista, ao mesmo tempo em que alimenta no ouvinte suas próprias experiências e expectativas de amor. Assim como em “Choro bandido”, Chico coloca aqui a canção a serviço da reflexão. Ele propõe-nos refletir sobre a presença da canção de amor em nossas vidas. Tanto como aquela que embala nossos romances e vivências amorosas e nossos desamores e dores de cotovelo. Quanto como aquela que pode fazer florescer em nós expectativas sobre o amor e as relações amorosas e ainda cultivar em

nós sensibilidades insuspeitadas. Ao falar de amor e de amores, a canção nos faz amar naquele momento em que a fruímos, quer seja pelas experiências amorosas que já vivemos, quer seja por aquelas que esperamos viver.