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Na narrativa de Rider Haggard, e depois do encontro com Sitanda, os expedicionários dirigiram-se em busca das misteriosas construções que, no interior da África Central, desafiavam a curiosidade dos viajantes: estruturas como as do Grande Zimbabué, guardadas por uns montes conhecidos por “Seios de Sabá”, a Estrada do Ouro que se dizia existir nos montes Matobos, certos vestígios de escavações auríferas no hinterland – tudo isso aparecia transfigurado, na novela, sob a forma das ruínas da cidade bíblica de Ofir e a “Estrada” e “minas” do rei Salomão, também elas junto às montanhas dos “Seios de Sabá” (Minas, cap. 2 e 5). Para os Europeus, não havia a menor dúvida: tratava-se, em todos esses casos, e muitos outros, de obras de uma “raça” (cap. 2) de “brancos”, agora desaparecida. Que “raça” seria

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Cf. DECLE – Three years in savage Africa, p. 146; FOÀ, Édouard – Du Cap au lac Nyassa. Paris: Plon, 1897, p. 109-111; LINDQVIST, Sven – Exterminem todas as bestas. Lisboa: Caminho, 2005, p. 87-89.

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Sitanda é também mencionado por Selous, a uma luz igualmente desfavorável. Quanto à tradução portuguesa da novela de Haggard (uma versão resumida e bastante livre, geralmente atribuída ao próprio Eça de Queiroz), difere, nesta passagem, do texto original na letra, mas não no sentido. Cf. HAGGARD – As minas de Salomão. Trad. E. Q. Revista de Portugal. Vol. 1, n.º 5 (nov. 1889), p. 612; –King Solomon’s mines. New York: George Munro, [1886?], chap. 5, p. 47-48; SELOUS, Frederick Courteney – A hunter’s wanderings in Africa. Alexander, North Carolina: Alexander Books, cop. 2001, p. 331-337.

essa? A resposta era também unânime, na sua formulação geral, e só diferia nos pormenores: tratar-se-ia de egípcios, ou “semitas” (Hebreus, Fenícios, Sabeus ou outros), que, na Antiguidade, teriam descoberto na África Austral as minas de ouro e pedras preciosas referidas na Bíblia como “Ofir”, às quais Salomão e a rainha de Sabá foram buscar tesouros sem conto (1 Reis 9:28; 10:4-13; 1 Crónicas 29:4; 2 Crónicas 8:18; 9:1-18).

Já os Portugueses do século XVI atribuíam o Grande Zimbabué ao mítico “prestes João das Índias”, ao mesmo tempo que identificavam a bíblica Ofir com o porto de Sofala. Esta última crença, adoptada pelo puritano Milton (Paraíso Perdido, 1664), e perfilhada pelos “Bóeres” calvinistas, começaria a revestir-se de um carácter “científico” com as “descobertas arqueológicas” de Karl Mauch (1871), o qual concluiria ter o Grande Zimbabué sido erguido, havia muitos séculos, por “brancos” – provavelmente a própria rainha de Sabá. Por detrás de toda esta efabulação existiam interesses comerciais e financeiros muito concretos: para atrair capitais e colonos europeus à zona, tornava-se necessário enfatizar uma alegada “descoberta” de “antigas escavações” asiáticas, com uma riqueza mineral de proporções literalmente bíblicas, junto às “cidades perdidas da Maxonalândia”, como lhes chamaria o “arqueólogo” James Theodore Bent (1892). Os Portugueses, por exemplo, fundaram, em 1884, a chamada “Companhia de Ofir”, enquanto outros especuladores e investidores provenientes da Europa buscavam desde havia muito concessões na Maxona.14

Afirmar que as antigas obras pudessem ter uma origem puramente autóctone, constituía uma autêntica heresia científica: a revista norte-americana de referência, Atlantic

Monthly, por exemplo, no seu número de Outubro de 1894, considerava “a ocupação sabeia”

da Maxonalândia em milénios passados como um facto histórico comprovado.15 A única dúvida consistia em saber se, como pretendiam Brent e Rider Haggard, os Sabeus (ou, noutras versões, os Fenícios e Egípcios) se tinham deixado surpreender pelos autóctones e sido

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Cf. HANNA, A. J. – The story of the Rhodesias and Nyasaland. London: Faber, 1960, p. 84; HAGGARD – As minas de Salomão. Trad. E. Q. Revista de Portugal. Vol. 1, n.º 4 (out. 1889), p. 402; vol. 2, n.º 7 (jan. 1890), p. 66-69; HIGGINS – Rider Haggard, p. 75-76; NANTET, Bernard – Quand Paris découvrait l’art nègre. L’Histoire. Paris. N.º 158 (sept. 1992), p. 86; PÉLISSIER, René – História de Moçambique. 3.ª ed. Lisboa: Estampa, 2000, vol. 1, p. 140; SOFALA. In THE ENCYCLOPÆDIA britannica. 11th ed. New York: Encyclopædia Britannica, 1910-1911, vol. 25, p. 344; ZIMBAUÉ. In GRANDE ENCICLOPÉDIA portuguesa e

brasileira. Lisboa [etc.]: Enciclopédia, [1936-1960], vol. 37, p. 289. 15

“(…) the Sabæn occupation (…)”. AFRICAN exploration and travel. The Atlantic Monthly. Boston. Vol. 74, n.º 444 (Oct. 1894), p. 559.

exterminados por estes últimos (versão essa que constituiria, aliás, a trama de um “romance histórico” de Haggard, Elissa, publicado em 1900) ou se, como preferia Selous, se verificara uma fusão, por “mestiçagem”, entre colonizadores e “indígenas”, ou ainda, como aventava a

Atlantic, se os “semitas”, uma vez esgotado o ouro, haviam voltado à sua terra de origem.16

O autor das Minas de Salomão tinha entretanto publicado em forma de livro, justamente em 1889, uma nova aventura de Alão Quartelmar, Allan’s Wife, na qual se voltava a abordar o tema das ruínas do sertão. Nas palavras de Rider Haggard, “a gente que agora aqui vive é incapaz de erguer pedra sobre pedra”, logo esses monumentos “devem ter sido erguidos por uma raça branca” (aqui citava um ex-magistrado colonial, Andrew A. Anderson), embora o próprio escritor descrevesse os ditos vestígios como “aringas feitas de pedra branca” e “palhotas de mármore”!17 Até as vizinhas árvores de fruto, apesar de localizadas perto de antigas escavações de minas, só podiam, segundo o autor, ter sido semeadas por recentes colonizadores europeus, nunca pelos autóctones.

De facto, aos olhos de Ingleses e “Bóeres”, as laranjeiras, que, nas Minas, Alão Quartelmar reencontrou em Durban na sua viagem de regresso (cap. 17), simbolizavam a “civilização” (pois tinham sido introduzidas na África do Sul pelos Holandeses), por oposição à “selvajaria” dos “nativos”, e o mesmo pensaria certamente qualquer viajante português, em 1889, ao contemplar no Bié uma árvore com laranjas, aí plantada por um capitão-mor do século XVIII.18 O rival de Serpa Pinto na “corrida” ao Alto Chire, Harry Johnston, chegaria até a afirmar, com todas as letras, que os “indígenas”, abandonados a si mesmos, não só se revelavam incapazes de cultivar qualquer tipo de frutos, como nem sequer conseguiam domesticar animais; precisavam, portanto, de ser dominados por povos oriundos de zonas a norte ou leste do Sara, para se “civilizarem”. Quanto às “cidades perdidas” do interior, obviamente que eram de origem “semita”, provavelmente fundadas por árabes pré-islâmicos, vindos em busca de ouro, talvez dois milénios antes. Os autóctones, esses, eram demasiado

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AFRICAN exploration and travel. The Atlantic Monthly. Vol. 74, n.º 444 (Oct. 1894), p. 554; HIGGINS – Rider Haggard, p. 166; SELOUS – Travel and adventure in South-East Africa. Amsterdam: Time- Life, 1984, p. 330-342.

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“(…) kraals built of white stone (… …) the people who live here now do not know how to lay one stone upon another (…) marble huts (… …) must have been erected by a white race (…)”. HAGGARD – Allan’s

wife. London: Spencer Blackett, 1889, p. 129-130. 18

Cf. HAGGARD – Allan’s wife, p. 141-142; SANTOS, Maria Emília Madeira – Nos caminhos de

estúpidos e preguiçosos para inventarem ou descobrirem, por si mesmos, fosse o que fosse…19

Esquecia-se assim a reconhecida versatilidade com que os autóctones buscavam e adoptavam as plantas oriundas de outros continentes (inclusivamente citrinos, como notava o viajante Montagu Kerr), além de cultivarem muitas espécies africanas, as quais pareciam “silvestres” aos exploradores europeus, que desconheciam as técnicas agrícolas locais. Era também patente a criação de animais domésticos (as manadas de gado que constituíam a principal riqueza de diversos grupos na África Austral, por exemplo) e o modo como as “misteriosas” estruturas arquitectónicas de pedra no sertão se assemelhavam às construções de materiais perecíveis do hinterland, estas últimas indubitavelmente erguidas pelos Bantu, sem necessidade de qualquer ajuda externa. Mas os interesses políticos tornavam os Europeus cegos, e, de 1889 a 1979, houve sempre colonialistas, de Cecil Rhodes a Ian Smith, a defender que o Grande Zimbabué tinha sido mandado fazer pela rainha de Sabá.20

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