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Subjacente às várias fases da afirmação da instituição estatal, invariavelmente movidas pelo interesse dos detentores do poder, aparece o problema das minorias. O questionamento dos pressupostos da modernidade representados pelo monismo jurídico e pela homogeneização cultural e religiosa traz à luz, cada vez mais, o que Rouland (2004) denomina “fenômeno minoritário”. Seu estudo utiliza como categorias de diferenciação as “sociedades englobantes”, compostas pelos

reinos, impérios e Estados, e as “sociedades englobadas”, integradas pelos povos autóctones, os quais, na imensa maioria dos casos, sobrevivem na condição de minorias.

De acordo com Pierré-Caps, os arranjos diplomáticos subsequentes a Primeira Grande Guerra, baseados no princípio das nacionalidades, na medida em que reconheceu a condição de Estados nacionais a determinados grupos sociais, considerou-os como homogêneos, atendendo ao pressuposto cogente para a viabilização da universalidade e harmonia do “Concerto europeu” (PIERRÉ-CAPS 2004, 175). Paradoxalmente, essa nova legitimação circunscreveu, mediante a equação política da divisão territorial, certa heterogeneidade em cada Estado nacional, cujas tensões passaram a ser a conduzidas por cada unidade sob as lentes da ideologia da soberania nacional.

Nesse sentido, a internalização das heterogeneidades pelos Estados fez com que o fenômeno dos distintos povos integrados como minorias nacionais se tornasse uma questão doméstica, sendo assim tratada até o advento da Organização das Nações Unidas. Para Pierré-Caps “incidentemente, o enfoque do fenômeno minoritário adotado pela SDN (Sociedade de Nações) tornou-se responsável, por causa da patologia nacionalista dele resultante, da Guerra” (2004:211) a qual reduziu e quase eliminou as minorias capazes de se mobilizar e reivindicar direitos nos Estados que os encamparam. Apesar disso, a Carta das Nações Unidas trouxe novo vigor ao direito dos povos, a dispor de si mesmos (artigo 1º, § 2º), embora as alternativas permanecessem restritas à assimilação ou à secessão.

A engenharia normativa concebida para “solucionar” a questão das minorias, incluindo os aspectos relacionados aos processos de descolonização (distinção entre territórios coloniais e não autônomos) e a qualificação a ser atribuída as suas populações (distinção entre povos e minorias), complexificou a maior parte das discussões, já que fez recorrente a aparição da inquietante hipótese do alargamento do direito dos povos de dispor de seu destino. O temor decorria da possível extensividade desse direito às coletividades infranacionais, uma vez que qualificá-las como povos, significaria pôr em causa o princípio da integridade territorial dos Estados, elemento fundamental do direito internacional.

Em relação aos indígenas, como demonstrado anteriormente, o processo de ocupação das Américas ocorreu desde a perspectiva eurocêntrica da conversão e eliminação dos infiéis, com base na ocultação das diferenças e na categorização hierárquica, reduzindo os povos autóctones à condição de bárbaros ou infantis, como regras justificadoras de uma “inferioridade natural”. Nas palavras de Melatti, a própria expressão “índio” só possui definição se tomada como o oposto de não índio, e representa uma categoria que não reflete a diversidade étnica dos diferentes grupos que abrangem populações com notáveis distinções entre si, sejam físicas, linguísticas ou em seus costumes (MELATTI 2007).

Dessa categorização, carregada de representações negativas tal como a indolência, promiscuidade, violência e a perfídia, irrompe a dicotomia civilizado/selvagem que historicamente legitimou toda sorte de exclusão, dominação, escravização e negação da humanidade ao ameríndio. Esse tratamento, incompatível ao reconhecimento do diferente, dificultou, inclusive, a inserção do indígena na categoria reservada às minorias nacionais, criada dentro dos parâmetros do direito internacional público, fazendo desses povos – nos espaços transfronteiriços e no interior dos países –, por longo tempo, grupos invisíveis.

Nas tratativas diplomáticas que sucederam a Primeira Guerra Mundial, foi incluída a preocupação com os indivíduos que não compunham o grupo nacional majoritário dos Estados remodelados ou criados pela Conferencia de Paz de Versailles. Desde então, a dimensão internacional do fenômeno minoritário passou a figurar nas pautas política e jurídica, como questão vinculada à manutenção de uma paz duradoura entre as nações (PIERRÉ-CAPS 2004).

Atenta ao fenômeno minoritário, a Liga das Nações alçou as bases da doutrina da tutela à escala internacional, ao fixar, por meio dos artigos 22 e 23 do seu Pacto48 instituidor, a política dos mandatos, justificando a integração das parcelas dos povos nativos dos territórios sob o seu controle:

Artigo 22. A essas colônias e territórios que, em consequência da Guerra, deixaram de estar sob a soberania dos Estados que anteriormente os

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governavam e foram habitados por povos ainda não capazes de cuidar de si mesmos frente às condições árduas do mundo moderno, há de ser aplicado o princípio de que o bem-estar e o desenvolvimento desses povos formam uma missão sagrada da civilização e que os valores para a realização desta missão devem ser consagrados no presente Pacto. O melhor meio de dar efeito prático a este princípio é que a tutela desses povos deve ser confiada às nações desenvolvidas que, em razão de seus recursos, sua experiência ou a sua posição geográfica possam melhor assumir essa responsabilidade, e que estejam dispostos a aceitá-la, e que esta tutela deve ser exercida por eles como mandatários em nome da Liga.

Artigo 23. Sujeitos e, em conformidade com as disposições das convenções internacionais existentes ou que venham a ser acordadas, os membros da Liga: (A) envidarão todos os esforços para assegurar e manter condições justas e humanas de trabalho para homens, mulheres e crianças, tanto em seus próprios países como em todos os países em que as suas relações comerciais e industriais se estenderem, para cujo fim serão estabelecidas e mantidas as necessárias organizações internacionais.

Se a estratificação revelou-se por meio do isolamento segregacionista, que inspirou os aldeamentos e posteriormente o sistema de reservas indígenas, as peias da assimilação e da integração se incorporaram nas políticas e nos regramentos indigenistas, representando uma contínua pressão de amoldamento dos povos autóctones.

Dentre os tipos de políticas adotadas pelos Estados em relação aos autóctones, o relatório Cobo distingue a segregação que se vale da prática do

apartheid e das reservas-guetos, das políticas da assimilação e da integração, que

teoricamente visam à eliminação do isolamento por meio da aceitação do diferente, desde que este abandone suas especificidades em favor da sociedade dominante. Relatório Cobo (apud ROULAND 2004).

Na prática, isso representou um contínuo processo de “encobrimento do outro” a que se referiu Dussel, ao discorrer a respeito dos efeitos do eurocentrismo na transformação do diferente com base em sua própria imagem como sinônimo de um desenvolvimento de índole darwinista (DUSSEL 1992).

Para definir povos autóctones, a ONU utiliza o conceito do relatório da Subcomissão sobre a prevenção da discriminação das minorias, que qualifica: comunidades, povos e nações autóctones são aquelas que mantiveram uma continuidade histórica distinta das sociedades colonialistas, que invadiram os seus territórios, ou parte deles. Hoje constituem setores da sociedade pouco dominantes e estão decididos a preservar, manter e transmitir às gerações futuras as suas tradições ancestrais e a sua identidade étnica como a base para a sua existência enquanto povo. O seu modo de vida tem como objetivo a preservação dos padrões culturais, das instituições sociais e dos seus sistemas jurídicos (MARTINEZ COBO: 1986).

O mito de que o “silvícola” possuía desenvolvimento mental incompleto foi revestido pela juridicidade, adquiriu posição dominante e se consolidou nos ordenamentos jurídicos durante a segunda parte do século XIX, mormente a partir do neocolonialismo inglês, cuja preeminência influenciou as colônias nas Américas na Ásia e na África (GUARAGNI 2009). Assim, os Estados restaram autorizados a tomar medidas e elaborar regras para a proteção dos indígenas através da sua submissão, sob o regime tutelar.

Na América Latina, o processo de formação da cidadania ocorreu verticalmente por sobre a base estratificada pelo colonialismo, servindo como novo catalisador da continuidade dos privilégios dos grupos dominantes, garantindo, de acordo com Aníbal Quijano, a reprodução da “colonialidade do poder”, conjuntura “dentro da qual ocorrem os processos que afetam todos os espaços concretos de dominação” (2002). Essa verticalidade social, organizada em um sistema de direitos e deveres, formulado para orientar os comportamentos dentro da perspectiva ocidental em oposição às demais cosmovisões, fez com que os indígenas permanecessem ocultos sob a doutrina da tutela, articulada sob a lógica assimilacionista negadora da capacidade dos povos indígenas a decidir seu próprio futuro, fazendo com que ficassem adstritos ao arbítrio de seus tutores (ANAYA 2005).

Na década de 1950, ao analisar o emprego da tutela, a Comissão dos Peritos em Trabalho Indígena da Organização Internacional do Trabalho concluiu que o assimilacionismo não garantia melhorias à qualidade de vida dos indígenas, propondo por meio da Convenção n. 107 de 1956, que os Estados implementassem políticas

integracionistas, consistentes em regras de proteção contra a exploração do trabalho do indígena com o propósito de preservar a sua cultura e garantir sua integração, de forma progressiva e harmônica, à comunhão nacional, que na América Latina contou com a influência e apoio da CEPAL (VERDUM, 2006). Sobreveio dessa maneira um indigenismo integracionista que, a partir da perspectiva desenvolvimentista, pressupunha os índios como povos atrasados e à margem da vida política, econômica e cultural proporcionadas pelos Estados, razão pela qual deveriam ser integrados gradualmente à sociedade para que pudessem gozar das “vantagens” oferecidas.

Essa gradual e segura integração ocorreria por meio da introdução de inovações tecnológicas, junto às práticas tradicionais dos indígenas, conduzindo-os ao progresso social e econômico, cuja consequência seria a emancipação da tutela, que, aos moldes do sistema jurídico romano germânico, consistia em deixar para trás a condição de incapacidade transitória mediante a aquisição da igualdade de direitos e deveres dos demais cidadãos nacionais. Todavia, o modelo de indigenismo assimilacionista, em voga na totalidade dos países da Amazônia Continental, torna-se anacrônico e sucumbe diante das lutas anticoloniais e da evolução de novos parâmetros no direito internacional, levando a Organização das Nações Unidas, por meio da subcomissão de Prevenção a Discriminação e Proteção das Minorias, a desenvolver um estudo geral sobre a discriminação contra as populações indígenas.

Em resposta, o “Relatório Cobo” trouxe subsídios para o debate que se estendeu por toda a década de 1980, vindo a resultar na Convenção n.169 adotada pela OIT em 1989, cujo processo de elaboração contou com a presença e a mobilização de lideranças indígenas e ONGs de apoio. Essa Convenção, de caráter vinculante aos países aderentes, transformou-se em importante referência para a interpretação dos instrumentos internacionais e para as reformas constitucionais ocorridas nos países americanos.