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O Estado erigido na Europa a partir do esgotamento do sistema medieval e dos conflitos de ordem religiosa surge com base em um conjunto histórico que lhe

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Fonte: National Census Report 2002, Guyana, disponível em: http://www.caricomstats.org/Files/Publications/NCR%20Reports/Guyana.pdf

emprestaram significado, as quais, em grande parte, se valeram do resgate e da releitura de alguns dos princípios do cristianismo primitivo.

O cristianismo primitivo pregava a igualdade e a filiação divina de todos os homens, a paterna providência de Deus, a salvação de todos e a ressurreição, nova vida para os sofridos e pobres, a caridade para com o próximo e, sobretudo a repartição das riquezas, condição para a conversão à comunidade "dos eleitos".

Por razões utilitaristas, o Estado ocidental se manteve fiel às balizas da crença cristã que pregavam o sentimento de que todos seriam iguais, filhos de um único pai e pertencentes à mesma família, buscando com isso submeter todos os povos presentes em seus domínios a uma mesma religião, educação e cultura, visando torná-los assim, cidadãos.

O avanço da ideia estatizante recebeu sustentação ontológica das atitudes intelectuais do renascimento que, arquitetadas e levadas às últimas consequências, culminaram com o fortalecimento do comércio e o revigoramento dos núcleos urbanos, espaços de excelência para a difusão dos valores emergentes. Esses fatores, acompanhados do avanço do poder secular e valorização dos valores mundanos, marcaram o início de um novo período da sociedade ocidental.

O advento das revoluções americana (1771) e francesa (1789) demonstrou como as classes políticas daquela época manipularam de maneira competente o engajamento popular, despertando um requintado sentimento de nação até então teoricamente desconhecido, mas, sobretudo, baseado em muitos dos valores defendidos pelo cristianismo, tais como unidade étnica, idioma, aspirações comuns, tradições, costumes e leis gerais.

A partir desses signos e sob as luzes da ilustração, o mundo avança a caminho de uma nova configuração, em que o pensamento racional é fator decisivo para a ruptura com a tradição denunciada pelas revoluções, e que conduzem a, pelo menos, três níveis de transformação: o econômico, o cultural e o político ROUANET (apud Albuquerque, p 43). No econômico, como resultado de investimentos em avanços tecnológicos, sobrevém um processo de melhor aproveitamento dos insumos

e maior acúmulo das riquezas. Na cultura, a libertação dos grilhões dos valores medievais dá azo ao racionalismo, que alavanca as ciências. No âmbito político, esse pensamento volta-se à consolidação da ideia de Estado, que assume uma postura monista homogeneizante, consubstanciada no monopólio da produção e aplicação do direito, este, fonte única da regulação e do condicionamento dos interesses de sociedades nacionalmente organizadas.

Esse Estado moderno gradativamente avoca o domínio e as atribuições da organização sobre a segurança, a fiscalidade e o direito, compondo um cenário favorável à consolidação do ideário do capitalismo emergente, que anima um conjunto de indivíduos emancipados e motivados por interesses pessoais. Surge daí a equação usada pelos juristas para formular uma teoria jurídica do Estado. Ao lado do conjunto de cidadãos organizados pelo monopólio da distribuição da justiça via o emprego da violência legítima, que valida a arrecadação de impostos, é necessário existir um espaço territorial delimitado, onde prevaleça o seu domínio exclusivo.

Tal aparato surge teoricamente concebido para funcionar com base num conjunto normativo considerado como um “pacto” ou “contrato” consubstanciado na união das vontades de indivíduos para formar uma instituição civil, regida por leis gerais, válidas somente se editadas por ela mesma. Esse monopólio foi disposto em cartas constitucionais, que se pautaram em estabelecer garantias preferencialmente aos indivíduos, para que gozassem e fruíssem de seus bens de produção e os protegessem contra todos os demais. Edson Damas da Silveira aponta que: “Exsurge, desse modo, o constitucionalismo, fenômeno que se transformou no centro compilador dos interesses do indivíduo e do Estado”, aferindo destarte que a estrutura política dominante da modernidade representa o “suporte físico de todo o sistema jurídico da individualidade” (SILVEIRA 2010, 29).

Resultado disso, foi o nascimento de uma estrutura inapta a processar as necessidades diferentes das variadas configurações socioculturais, provenientes dos diversos grupos que compõem os territórios nacionais.

Cabe, neste capítulo, lembrar que esse construto não se arquitetou e nem se consolidou sem um longo período de conflitos articulados contra e pelos detentores

do poder. Os confrontos políticos são coetâneos à historia da humanidade. Mas segundo Tarrow (2009), sua versão coordenada e preparada com objetivos de fazer frente às autoridades e elites, aparece juntamente com o Estado moderno, na figura dos movimentos sociais. Não se pode olvidar que muitas concessões foram obtidas de forma negociada com os segmentos da sociedade que se mobilizaram em busca de novos direitos e benefícios. Por exemplo, negociações das comunidades indígenas com o governo brasileiro.

Ainda de acordo com Tarrow (2009, 72), os principais casos de formação de laços entre pessoas e grupos reuniam prósperos cidadãos e corporações de comerciantes, deixando a maior parte da população fora do seu amparo.

Essas ondas de ações coletivas forjaram ajustes ao emergente Estado nacional. Octaciano Nogueira (2006:99) aduz que “qualquer que seja a concepção pela qual examinemos o Estado, é preciso entendê-lo como a mais importante instituição política, mas também como uma realidade produto de uma evolução histórica”, isso implica considerar que o Estado como o entendemos hoje, não é o da realidade da polis grega, nem o da res pública romana, nem o do foedus da Idade Média. O Estado em sua constituição hodierna é produto da Idade Moderna, sob o epíteto de Estado nacional, vez que erigido sobre o princípio das nacionalidades.

Padronizando e estruturando assim as relações entre os cidadãos e entre estes e os governantes resultando, na maioria das vezes, em significativa ampliação de oportunidades para muitos, mas não para todos. Ao reduzir as fontes de produção normativa, a lógica estadocêntrica punha fim à multiplicidade de poderes locais comuns nos períodos anteriores, não restando às populações excluídas outra escolha, senão a de se tornarem súditos de algum “Estado nação” soberano.

Dessa forma, gradativamente a dogmatismo jurídico estatal adquire contornos de doutrina, cujo apogeu descreve Wolkmer (2001:47):

O Direito escrito e formalizado da moderna sociedade burguês-capitalista alcança o apogeu com sua sistematização científica, representada pela Dogmática Jurídica. O paradigma da Dogmática Jurídica forja-se sobre proposições legais abstratas, impessoais e coercitivas, formuladas pelo

monopólio de um poder público centralizado (o Estado), interpretadas e aplicadas por órgãos (Judiciário) e por funcionários (os juízes).

Na clássica “Teoria Pura do Direito” de Hans Kelsen, desponta a ideia do monismo jurídico, ou seja: que o Estado deve ser juridicamente entendido como Direito, sendo aquele a personalização deste. De acordo com Wolkmer (2001), esse ponto assinala o auge da Dogmática Jurídica, nascida com a modernidade nos séculos XVI e XVII, quando o Direito foi posto como criação exclusiva do Estado.

Tem-se a modernidade como um movimento ocidental composto das dimensões da vida pessoal, política, econômica e social, que Berman sugere seja considerado a partir de três fases: uma primeira, que inicia junto com o século XVI e segue até fins do século XVIII dentro da qual “tateiam desesperadamente, mas em estado de semicegueira, no encalço de um vocabulário adequado”. Uma segunda, advinda da grande onda revolucionária de 1790, que desencadeou na população convulsões que produziram importantes alterações em todas as dimensões já citadas, destacando como marca deste período, a sensação de se estar vivendo em dois mundos simultaneamente, já que as condições da vida material e espiritual não chegaram a ser modernas em seu todo. E como terceira e última fase, a do século XX, cujo “processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento” (BERMAN 2007, 25,26).

Como mencionado anteriormente, os processos da globalização afetaram diversos aspectos do quotidiano, e tais efeitos não tardaram a lançar o paradigma do dogmatismo jurídico em crise. A transformação do mundo em aldeia global (Marshall McLuhan) e a aceleração e o aprofundamento do impacto dos fluxos e padrões inter- regionais de interação social (HELD e McGREW), trouxeram à tona a crise da eficácia do direito e o enfraquecimento do Estado. Surge o debate a respeito do “esgotamento do paradigma da legalidade estatal moderna, que sequer consegue responder de maneira eficaz e legítima às demandas e aos anseios da sociedade” (WOLKMER 2001, 53). Em síntese, as discussões giram em torno da ideia de que o monismo jurídico foi incapaz de atender os anseios de todos os segmentos da sociedade, parte

dos quais passaram a compor grupos excluídos chamados de minorias, entre os quais estão os povos originários.

Em relação às minorias indígenas, os Estados nacionais têm produzido uma sequência histórica de políticas e leis indigenistas insuficientes para combater a lógica da exclusão, na procura de oferecer respostas às mazelas provocadas pelo avanço do modelo de desenvolvimento legitimado pelo Estado. Diferente não é a realidade dos países amazônicos, como esclarece Procópio:

[...] nas nações amazônicas o indigenismo arquitetado pelo processo civilizatório ocidental cristão prima por radicalizar sentimentos contraditórios. Insufla, no mais das vezes, idealizações nos conformes do paternalismo quase colonial. Responsável por ambiguidades, a falta de respeito ao pluralismo nunca se corrige no descaso para com o olhar do outro. A intolerância para com o próximo e a cor da pele como tinta para privilégios borra a dialética do convívio multicultural. Castra esperanças do coletivismo humano e perde chances de ganhar com políticas construtivas para restaurar a credibilidade do valor da reconciliação (PROCÓPIO 2009, 165).

O processo colonial, no qual vigorou o sistema da tutela missionária, foi suplantado pela fase republicana, com as fases da tutela orfanológica e a tutela da incapacidade civil e suas políticas de assimilacionismo, no século XIX, e de integracionismo forçado, em meados do século XX (FAJARDO 2009). Esse quadro passa a ser reformulado com o advento da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho.