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“AQUELES DIAS” COMO TODOS OS OUTROS

MISS E MODESS

Determinar o conteúdo concreto do que pôde ser dito, no nascimento de uma sociedade urbano-industrial brasileira, principalmente por publicitários, acerca do “corpo que menstrua”, constitui nosso interesse de pesquisa. Pensamos que a “arqueologia” de Foucault pode nos auxiliar no que tange a esse modo específico de abordar o domínio do discurso, enquanto inerentemente histórico. Assim, o esboço dessa trajetória do absorvente higiênico ao longo de duas décadas na revista Querida deve ser encarado em meio a um sistema de formação que rege a relação entre diferentes conjuntos de enunciados, isto é, em seu campo de utilização, enquanto experiências e problemas historicamente situados. O aparecimento do enunciado que engendra a higiene íntima feminina na cidade do Rio de Janeiro em meados do século XX –

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Os números entre 255 e 266 da revista Querida, os quais circularam entre janeiro e junho de 1965, não constavam no acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. É possível que outros anúncios do produto aqui investigado ali estivessem impressos.

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como foi mediado pela publicidade e pela mídia impressa feminina – e não outro, obedece a um princípio de raridade, de condições historicamente situadas. Interessa-nos, ao tomar essa perspectiva foucaultiana da arqueologia/genealogia, buscar a singularidade enunciativa da “proteção higiênica íntima”, sua raridade constitutiva e descobrir as leis que regiram seu aparecimento enquanto tal, formando uma imagem em movimento constante com outros grupos de enunciados. A “mulher moderna”, como figurada nas publicidades de absorventes higiênicos e, particularmente de Modess, parece ir surgindo, como um feixe de relações entre vários campos enunciativos e práticas discursivas dispersas e heterogêneas.

Além de Modess, dispomos de seis diferentes anúncios de outra marca de absorventes em Querida, os absorventes “Miss”: um em junho de 1956, outro em janeiro de 1957 (que se repete no mês seguinte) e mais um em março de 1957. Em agosto de 1957, a marca concorrente de Miss, o Modess, lançaria um importante acessório para esse mercado: o Cinto Modess em “V”, como apresentamos no capítulo anterior81. Miss só retorna às páginas de Querida em novembro de 1959, e segue até a segunda quinzena de julho de 1960, uma quinzena antes de Modess lançar seu “mais importante lançamento dos últimos 25 anos”, o Modess “Pétala Macia”. Desde então, a marca Miss não se apresenta mais em Querida.

Produto das indústrias York, a publicidade de Miss, com maior frequência e intensidade que Modess erigiu a identidade de seu produto em torno da assepsia no processo de produção, como podemos ver nessa primeira aparição de Miss na revista Querida:

--- quem conhece... confia! Miss

Exija a mais moderna proteção higiênica, embalada mecanicamente, sem contato manual.

(Peça GRÁTIS o livrinho ‘Dê à sua filha dias inteiros de bem-estar’).

Mas além de embalada mecanicamente, Miss também é “Sanitized”, como foi apresentada essa proteção higiênica em novembro de 1959:

81 Até então, tanto a indústria Johnson & Johnson oferecia o Cinto Modess Regular, quanto as indústrias York o

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Figura 18: Querida nº 132, 1959 Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional

Aqui, a promoção de Miss segue um caminho particular na história dos absorventes higiênicos no Brasil: a leitora é envolvida em uma cena cujos elementos “científicos” reforçam-se entre o texto e a imagem. Enquanto uma moça sorridente está dentro de um tubo de ensaio, no outro está a “receita” de Miss, o “absorvente mais puro do mundo!”. Exclusivo de Miss, o processo “Sanitized” propõe “proteção total”, cientificamente atestada à leitora e consumidora, à qual é perfilada como cada vez mais atenta às novidades do ramo da higiene. O produto “impede a proliferação de germes e a decomposição de bactérias”. A estratégia

Somente Miss oferece PROTEÇÃO TOTAL (Porque Miss é Sanitized!) Resultado de prolongadas pesquisas científicas, o processo “Sanitized” impede a proliferação de germes e a decomposição de bactérias. Incorporado com exclusividade a MISS, “Sanitized” é mais uma conquista das Indústrias York para o conforto e a higiene íntima de mulheres modernas como você! “Sanitized” veio tornar MISS o absorvente mais puro do mundo!

Agora há uma razão definitiva para você exigir MISS – o único absorvente que lhe oferece Proteção Total!

Um produto YORK Quem conhece... confia!

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discursiva publicitária opera a partir da identificação da leitora com a moça do anúncio: sorridente, de calças, sandálias sem salto, cabelos bem escovados e arrumados, com gestos suaves, seu humor e boa aparência estão metonimicamente relacionados ao fato de estar protegida por esse recipiente utilizado em laboratórios para efetuar reações químicas de pequena escala. Assim, ela deve reconhecer, no texto, como a mulher moderna que busca conforto e higiene. O processo “Sanitized” é acionado pelo recurso aos tubos de ensaio e às “pesquisas científicas” que asseguram proteção à consumidora de Miss. Esse particular enlaçamento entre o conteúdo da mensagem e a maneira como foi articulada pode nos mostrar que essa cenografia desenvolvida (a da proteção de “Sanitized”, representada por tubos de ensaio) passa a compor a identidade do produto (composição validada por “longas pesquisas científicas”, saber socialmente legitimado em matérias de higiene e saúde) e a propor uma identificação entre a leitora-consumidora e a feliz moça imune de germes e bactérias.

Algumas empresas norte-americanas vinham para o Brasil, como vimos indicando, para vender produtos de higiene pessoal. Dentre elas, as Indústrias York e a Companhia Johnson & Johnson, ambas portavam no seu rol de produtos o absorvente higiênico, dentre outros bens de consumo. A primeira com o Miss, a segunda com o Modess. Um e outro são absorventes higiênicos descartáveis, constituídos basicamente pela mesma tecnologia (a celulose de algodão), mais absorvente que o algodão. A corrida comercial entre os dois produtos teve, enfim, um vencedor82: Modess, da Johnson & Johnson, com suas estratégias de marketing e publicidade. Acreditamos que a hegemonia exercida pela marca da Johnson & Johnson no Brasil (especialmente até a década de 1970) se deve, em boa medida, aos esforços mais robustos e convincentes, por parte desta empresa, em se empreender a imagem de uma “mulher” espontânea e disposta “naqueles dias”, na contrapartida da estruturação urbano- industrial carioca, pela qual o consumo vai se tornando importante eixo de regulação social. Diferente de Miss (que aposta na imagem da “pura técnica”), Modess é vendido pela via de um estímulo afetivo inclinado a determinado “individualismo autêntico”, como veremos adiante.

Apontamos os desenvolvimentos tecnológicos de Modess e o momento em que Miss se extingue ao menos das páginas da revista Querida. Modess com cobertura “Pétala Macia”, se

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mostrou uma eficiente estratégia em marketing e publicidade, afinal, o Modess predominou sozinho em um dos periódicos femininos de maior circulação na maior cidade brasileira naquele momento. Em seguida, ater-nos-emos às estratégias publicitárias acionadas no movimento de converter uma marca de produto de higiene íntima feminina, de maior sucesso no Brasil, em sinônimo do próprio produto. Em outras palavras, falaremos das artimanhas publicitárias que, durante décadas, se referiram à materialidade do produto em si, às suas vantagens, etc. (tendo em vista sua parcial padronização industrial). E, à luz da hegemonia de vendas conquistada, parece ter convencido as leitoras dessa publicidade em Querida e em outros periódicos a aderir a Modess por outras vias, articulando valores ao mesmo tempo simbólicos e materiais à hierarquização urbana carioca de meados do século XX.

Faz-se necessário enfatizar o argumento de que os apelos publicitários de Modess visavam mobilizar as tantas facetas de um estilo de vida nomeado como “moderno”. O estímulo, na publicidade de Modess, a tomar banho de certa maneira e com determinada frequência, assim como o uso “moderado” do batom, e as sugestões para uma maneira de caminhar mais elegante e feminina, ou para uma dicção mais segura e uma postura mais confiante, vinculadas ao trabalho fora do lar ou ao lazer, constituem formações discursivas encenadas nas enunciações que passam a pautar o que é ser “mulher”, “feminina” e “moderna”. Mais absorvente e macia que as tradicionais e “antiquadas toalhinhas”, a moderna proteção sanitária promete conforto, proteção e segurança “naqueles dias”. Mais práticos e higiênicos, os absorventes compõem, integram e engendram, no entanto, todo um “estilo corporal” (BUTLER, 2013, p. 199) em torno de gostos, destrezas, manhas e modos. A promoção publicitária do produto se mostra, dessa forma, a consagração de um modelo de vida para “mulheres” no quadro de maior irradiação urbana no Brasil.

Observamos, ao longo de nossa investigação, a reiterada menção a vestidos “justos”, “colantes”, “chemisier”, “habillé”, sem mangas, etc. Encontramos mais de 15 correspondências escritas a esse artigo de moda – o vestido –, que não poderiam ser desconsideradas em nossa análise. Por meio da riqueza iconográfica dos anúncios de absorventes é possível observarmos a importância dada a determinados estilos de vestidos e modos de uso dessa peça de vestuário, no que diz respeito à “elegância” e ao “bom gosto”, como indicavam essas propagandas. Nossa sugestão é que as formas do vestido plasmam a

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conciliação pretendida entre os vetores enunciativos do estilo de vida e a superfície material a ser modelada, ou seja, o corpo da mulher.

Ao longo dos três primeiros meses do ano de 1957, quinzenalmente intercalaram-se propagandas de Miss e de Modess. Dois anúncios de Miss foram veiculados na primeira quinzena de janeiro e março (o primeiro se repete na primeira quinzena de fevereiro). Três comerciais de Modess se apresentaram na segunda quinzena de janeiro, fevereiro e março. Em seguida, se repetiriam até o lançamento do Cinto Modess em “V” (mês de agosto). À exceção de um dos anúncios de Miss, há uma notável presença de vestidos, ressaltando a imperceptibilidade e invisibilidade de Modess ou de Miss ao trajar-se esse importante item do figurino feminino.