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A mobilização de conhecimentos pelo professor em situação de trabalho docente: os saberes a ensinar e os saberes para o ensino de Gramática

2 REFLETINDO SOBRE A GRAMÁTICA E O SEU ENSINO

3 O DISCURSO DO PROFESSOR NA REALIZAÇÃO DA INTERAÇÃO DIDÁTICA

3.2 A mobilização de conhecimentos pelo professor em situação de trabalho docente: os saberes a ensinar e os saberes para o ensino de Gramática

11Os mecanismos de posição enunciativa, especialmente as atribuições modais, é uma

categoria de análise que está relacionada ao nosso terceiro objetivo de pesquisa e, por isso, serão explicitados no item 5.4.

Na seção anterior, ao falarmos sobre como as atividades sociais estão diretamente ligadas às ações de linguagem, através dos elementos que permeiam o meio humano, tais como os signos, os textos, os gêneros e os mundos representados, buscamos relacioná-los ao discurso que permeia a prática docente. Este discurso, permiti-nos identificar como o professor se representa em situação de ensino de gramática, pelo viés dos mundos representados. Por sua vez, pela compreensão de como o professor se representa, através dos mundos representados evidenciados em suas ações de linguagem, também podemos identificar como ele representa a aula de gramática, através do conteúdo temático que se destaca em seu discurso. Na oportunidade, podemos compreender o conteúdo temático apresentado e desenvolvido pelo professor em sala de aula, através das escolhas lexicais e de suas retomadas ao longo das explanações sobre os tópicos gramaticais, nas aulas de PLE.

Trabalhamos nesta tese com a ideia de que essas representações que o professor materializa em seu discurso em sala de aula de PLE nos orienta na análise dos saberes que ele mobiliza para concretizar o ensino de gramática. Os saberes, de modo geral, são necessários para que o professor possa agir no mundo e especificamente no âmbito profissional. Dessa forma, as representações podem abarcar vários tipos de saberes. As representações veiculadas pelo professor em sala de aula, no ensino de gramática, bem como ele se representa nesta situação, apresentam particularidades, pois exibem os saberes relacionados, especificamente, às práticas de ensino de gramática.

A literatura sobre a formação dos professores mostra que os saberes é que instrumentalizam a prática docente. Vários estudiosos tratam de questões que envolvem saberes, dentre eles, podemos destacar: Tardif (2002) Vanhulle (2009), Hofstetter e Schneuwly (2009) e Foucault (2013).

Então, apresentamos como esses autores trabalham com as questões relacionadas aos saberes, destacando àquele que no auxilia a responder os objetivos desta tese.

Tardif, em sua obra “Saberes Docentes e Formação Profissional” (2002), descreve esse conjunto de saberes docentes acima citados. O autor define os saberes de formação profissional como aqueles transmitidos pelas instituições de formação de professores, concretizados tanto na formação inicial quanto na continuada. Os saberes disciplinares são os que se integram à prática docente, através da formação dos professores nas várias disciplinas oferecidas pela universidade. Estes saberes emergem

da tradição cultural e dos grupos sociais produtores de saberes. Os saberes curriculares dizem respeito aos objetivos, conteúdos e métodos por meio dos quais a instituição escolar categoriza os saberes sociais por ela selecionados como modelos e como formação para a cultura erudita. Por fim, ele o autor nos apresenta os saberes experienciais que são aqueles que emergem da experiência e são por ela validades. Incorporam-se a eles, experiências individuais e coletivas sob a forma de saber-fazer e de saber-ser.

Vanhulle (2009), em um olhar sociodiscursivo, também trata dos saberes mobilizados no ensino e propõe uma análise dos saberes numa perspectiva discursiva. Ela retoma os dois tipos de saberes (saberes a ensinar e saberes para o ensino), estudado pelos autores já citados, e acrescenta os saberes profissionais. Porém, em relação a estes, apresenta-os numa perspectiva diferente dos demais autores quando ressalta a importância dos saberes informais e afirma que os saberes não são transmissíveis, mas construídos no processo. A autora analisa os saberes a partir dos mecanismos enunciativos marcados no discurso do professor, considerando os mundos representados.

A estudiosa ainda aponta que os saberes profissionais formalizados se constroem na reelaboração subjetiva de conhecimentos através de experiências, saberes científicos, prescrições institucionais e contatos com práticas sociais in loco. Por termos como foco o discurso dos professores em sala de aula de PLE é que nos ancoramos nas definições sobre os tipos de saberes.

Na perspectiva de Hofstetter e Schneuwly (2009), para indicar a ação de pessoas com o intuito de formar outras pessoas, apresenta-se um termo em sentido genérico, que inclui tanto formadores como professores, designando-os como formadores-professores, unidos pela mesma finalidade: o de formar outros. Neste sentido, para os autores, o ato de formar consiste em uma contrapartida, relacionada à situação de aprendizagem de forma intencional.

O foco na aprendizagem como uma atividade específica, que encontra seu fim em si mesma, põe em evidência a instituição escolar em sua concepção tradicional. De fato, a escola visa, primeiramente, a formação geral, a transmissão de uma cultura geral. Os conteúdos ensinados são o resultado de processos complexos de construção e de transformação de saberes, que descrevem, sob pontos de vista diferentes, as teorias da transposição didática (Chevallard, 1985) ou de cultura escolar (Goodson, 1993), conforme explicitado por Hofstetter e Schneuwly (2009).

Na escola, o que deve ser ensinado é objeto de um processo de modelização. Desta forma, os conteúdos progressivamente são constituídos em matérias ou disciplinas escolares, que constituem uma organização particular de saberes em função das finalidades do sistema escolar. Esta organização incorpora a ideia de uma formação cuja lógica é diferente da aprendizagem quotidiana: trata-se de disciplinar, dando acesso a novos modos de pensar, de falar e de agir, que constituem aquisições culturais da sociedade.

Para Hofstetter e Schneuwly (2009), alguns autores tais como Vygotsky (1985) e Bernstein (1996), Brossard (2004) e Kress (2005) defendem a ideia de que a formação se distingue do quotidiano da vida e do trabalho, pois a ação de formar implique em mediações semióticas. Neste sentido, de acordo com Hofstetter e Schneuwly (2009), “a ação de formar é sempre duplamente mediata e mediatizada por sistemas semióticos, que imprimem o significado da palavra “ensinar”: fazer conhecer, tornar acessível pelos signos”.

Desta forma, Hofstetter e Schneuwly (2009) adotam o ponto de vista da prática e abordam o saber a partir da sua mobilização e colocam os saberes formalizados no centro de suas reflexões, buscando definir seu papel nas profissões de ensino e da formação. Os autores diferenciam os saberes envolvidos em sala de aula em dois grandes tipos: os saberes para o ensino e os saberes para ensinar (savoirs pour enseigner et savoirs à enseigner). Sobre esta distinção, os autores afirmam:

(...) parece-nos possível definir dois tipos constitutivos de saberes aos quais se referem a esses profissionais: saberes para ensinar, isto é, os saberes que são os objetos de seu trabalho; e os saberes para o ensino, dito de outra maneira, os saberes que são as ferramentas de seu trabalho (HOFSTETTER & SCHNEUWLY, 2009, p.17, tradução nossa)12.

Os autores definem os saberes para ensinar não como produzidos pelos pesquisadores, mas como o objeto de trabalho dos professores-formadores. Para esses autores, há três tipos de saberes envolvidos nos saberes necessários ao professor para ensinar: saberes sobre “o objeto” do trabalho de ensino e de formação (saberes para ensinar e sobre alunos, seus conhecimentos e desenvolvimentos, maneira de aprender,

12 “(...) il nous semble possible de definir deux types constitutifs de savoirs auxquels se réfèrent ces professions: les savoirs à enseigner, c’est-à-dire les savoirs qui sont les objets de leur travail; et les savoirs pour enseigner, autrement dit les savoirs qui sont les outils de leur travail” (HOFSTETTER & SCHNEUWLY, 2009, p.17).

etc), saberes sobre as práticas do ensino (métodos, dispositivos, delimitações de saberes para ensinar, modalidade de organização e de gestão, encaminhamentos); e saberes sobre a instituição que define seu campo da atividade profissional (plano de estudos, instruções, etc).

Assim sendo, o formador-professor forma outros ao ensinar saberes. Sua função é, portanto, construtivamente definida pelos saberes a ensinar. Estes saberes constituem um objeto essencial de trabalho do professor. Sendo assim, o contrato entre a instituição que emprega define o que será ensinado, explicitado principalmente pelos planos de estudos ou currículo, dos manuais, dos dispositivos de formação, dos textos prescritivos de diferentes tipos. (Bronckart e Machado, 2005).

Em nossa tese, podemos compreender que os saberes para ensinar se referem aos conhecimentos de como realizar um ensino produtivo da língua, por exemplo, através de gêneros, tendo em vista a língua em uso, considerando seu contexto de produção bem como a seleção linguística de itens lexicais, estrutura sintática e construção semântica, como ferramenta de seu trabalho, ou seja, para o ensino de PLE. Para Hofstetter e Schneuwly (2009) ensinar e formar sempre tem necessariamente por objeto os saberes em sentido amplo. Neste sentido, para os autores, a escolha de saberes e sua transmissão em saberes a ensinar é o resultado de um processo complexo que transforma fundamentalmente os saberes afim de lhes tornar ensináveis.

Hofstetter e Schneuwly (2009) com base em Wittorski (2007) afirmam que para identificar e definir as propriedades dos saberes, ao se tornarem objetos de conhecimento, é que eles se constituem em conjuntos de enunciados coerentes e reconhecidamente válidos por uma comunidade científica, profissional ou de especialistas. Assim, a atividade do formador-professor consiste em utilizar o conhecimento a partir de enunciados comunicáveis e socialmente válidos, ou dito ainda de outra forma: com os saberes didatizados.

Buscamos analisar através do discurso do professor, em situação de ensino de tópicos gramaticais em sala de aula de PLE, como os aspectos do conhecimento científico são transformados em saberes a ensinar, tal como na explanação de Bronckart (1999, p. 87) ao explicitar que esse esquema ideal de ensino de língua não deve ser aplicado como tal.

Em primeiro lugar, porque uma reforma pedagógica não pode consistir em uma aplicação ou em uma transposição direta das concepções teóricas (qualquer que seja sua pertinência intrínseca) ao campo prático. Qualquer intervenção didática implica, em primeiro lugar, a consideração da situação de ensino de

uma matéria, isto é, da história de onde ela provém, assim como a consideração das restrições atuais do sistema escolar em que essa situação se insere.

Para compreender como acontece o ensino dos conteúdos gramaticais em sala de aula de PLE é importante atentarmos para o discurso produzido pelo professor concernente a este saber a ensinar em situação de interação, ou seja, em sala de aula. Sendo assim, a investigação do trabalho real do professor se torna possível a partir das interações estabelecidas em sala de aula, mediadas pela linguagem, e por meio desta é que podemos analisar o discurso do professor quando mobiliza saberes a ensinar e saberes para o ensino, bem como quando reflete sobre a sua prática de ensino13.

Acreditamos que no seu agir, o professor mobiliza um conjunto de “saberes”, que também estão interligados aos saberes a ensinar e para o ensino, já que em seu exercício profissional estão em jogo várias questões relacionadas às suas condições de trabalho, às suas vontades, às suas intenções e dos objetivos envolvidos.

Neste sentido, fazemos nosso recorte e optamos, para analisar os saberes mobilizados pelo professor em situação de ensino da gramática, pelos saberes a ensinar e saberes para o ensino, na perspectiva apresentada por Hofstetter e Schneuwly (2009). Acreditamos que estas categorias nos permitirão analisar as estratégias em que se ancoram os professores para ensinar tópicos gramaticais em aulas de PLE, tendo em vista os objetivos estabelecidos e os mundos representados.

Concebemos, particularmente nesta pesquisa, que um objetivo significativo, dentro os vários objetivos a serem alcançados na formação dos professores, é o de instrumentalizar o professor teoricamente e didaticamente para o ensino de conteúdos gramaticais de forma a contribuir para o desenvolvimento das capacidades de linguagem dos alunos. Visamos contribuir com este objetivo através das análises e reflexões que propomos com este estudo.

A Foucault (2013) interessa saber como se dá a transformação de um saber prático em um saber teórico. Antes de tudo, ele compreende que há dois tipos de saberes e que um se transforma no outro. Depois, ele pontua o seu interesse pelo processo de transformação.

13 O trabalho real de que mencionamos é uma categoria analítica surgida a partir de pesquisas desenvolvidas na França, sobre a adaptação do homem ao trabalho, o que deu origem a denominada ergonomia da atividade. A Ergonomia de base francesa apresenta e diferencia as noções de trabalho prescrito e trabalho real, pois elas possibilitam a compreensão do conceito de trabalho dentro de uma abordagem ergonômica que nos permite observar as várias nuances que constituem as práticas docentes. Essa distinção pode ser vista em Ferreira (2000).

Trata-se de saber, por exemplo, como um conceito – carregado ainda de metáforas ou de conteúdos imaginários – se purificou e pôde assumir status e função de conceito científico; de saber como uma região de experiência, já demarcada, já parcialmente articulada, mas ainda atravessada por utilizações práticas imediatas ou valorizações efetivas, pôde constituir-se em um domínio científico; de saber, de modo mais geral, como uma ciência se estabeleceu acima e contra um nível pré-científico que, ao mesmo tempo, a preparava e resistia a seu avanço, e como pôde transpor os obstáculos e as limitações que ainda se lhe opunham. (FOUCAULT, 2013, p. 229).

Neste sentido, os saberes que são da ordem do senso-comum, àqueles veiculados e adquiridos em ambientes não institucionais, podem assumir a função de conceito científico, a partir do momento em que são vistos sob determinado ponto de vista científico. A ciência formaliza os saberes a partir da formação discursiva a qual se insere. Sendo assim, os saberes mobilizados pelo professor provêm de conceitos, sejam eles de ordem empírica ou científica, que emergem de práticas discursivas.

Na sequência, retomamos o quadro do ISD e apresentamos os mecanismos de posição enunciativa como uma categoria de análise que nos permite analisar as avaliações do professor sobre os saberes que envolvem o ensino de gramática em sala de aula de PLE.

3.3 As atribuições modais como um sinalizador das avaliações do professor sobre os