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1. QUILOMBO: USOS HISTÓRICOS, CONVERSÃO SIMBÓLICA E

1.1 Mocambos e quilombos: notas introdutórias

O Brasil foi uma das primeiras nações do chamado Novo Mundo a organizar o escravismo e a última a aboli-lo. Logo, nenhum outro país teve sua história tão modelada e condicionada pela escravidão, pois, como coloca Reis e Gomes (1996), estima-se que dos africanos trazidos como escravos para a América, cerca de 40% vieram para o Brasil, assim, ―aqui, não obstante o uso intensivo da mão-de-obra cativa indígena foram os africanos e seus descendentes que constituíram a força de trabalho principal durante os mais de trezentos anos de escravidão‖ (REIS; GOMES, 1996, p. 09).

Dentro desse contexto, cabe-nos uma observação quanto a força e a intensidade da escravidão na formação social, territorial, cultural e econômica do Brasil, sendo impossível discutir determinadas questões na atualidade sem fazer referência à mesma, principalmente no que tange aos quilombos, tanto em seu contexto histórico quanto contemporâneo, uma vez que, como afirma Costa (1998), a escravidão marcou os destinos da nossa sociedade e com uma intensidade singular marcou também a trajetória de inúmeras comunidades negras rurais que chegam ao século XXI invisibilizadas social e simbolicamente. Justamente por esse motivo, a discussão aqui proposta não pode nem deve fugir do campo da invisibilidade e da opressão, assim como do campo da resistência em seu contexto mais amplo, abarcando as

ações empreendidas por grupos de negros no Brasil, sobretudo no que concerne a multiplicidade de trajetórias e estratégias.

Igualmente, cabe ainda uma contextualização quanto aos termos utilizados inicialmente para denominar os agrupamentos negros no Brasil, pois, segundo Gomes (2015), desde as primeiras décadas da colonização, as comunidades negras ficaram conhecidas primeiramente com a denominação de mocambos e logo depois de quilombos; estes, por sua vez, eram termos da África Central, usados para designar acampamentos improvisados, utilizados para guerras ou mesmo apresamentos de escravizados. Gomes (2015) explica que no século XVII, a palavra quilombo também era associada aos guerreiros imbangalas e seus rituais de iniciação; já mocambo, significava pau de fieira, tipo de suporte com forquilhas utilizados para erguer choupanas nos acampamentos. Nesse sentido, vale salientar que inúmeros estudiosos no Brasil abordaram a etimologia da palavra quilombo, com destaque para ―Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edison Carneiro, Gilberto Freyre, Décio Freitas e por último, Kabengele Munanga‖ (GOMES, 2015, p. 10).

No entanto, segundo Gomes (2015), sabemos pouco sobre como os fugitivos se autodenominavam, e menos ainda por que os termos africanos mocambo e quilombo se difundiram no Brasil, diferente de outras áreas colonizadas por espanhóis, franceses, holandeses e ingleses que também receberam africanos e tiveram comunidades de fugitivos. Para Gomes (2015), existe uma explicação que faz certo sentido e seria a da disseminação dessas terminologias a partir da administração portuguesa, que se utilizava da palavra tanto para caracterizar as estratégias militares na África pré-colonial quanto as da resistência à escravidão na América portuguesa, ocorrendo que as autoridades coloniais tinham ocupado postos na Ásia e na África, e que através da circulação de agentes administrativos em várias partes do Império português pode ter havido uma tradução dos termos africanos na linguagem e na documentação.

Assim, o termo quilombo só viria aparecer no final do século XVII, pois, em geral, a terminologia usada era mocambo, principalmente na Bahia, sendo quilombo utilizado em Minas Gerais e aparecendo em Pernambuco somente a partir de 1681. Logo, ―mocambos (estruturas para erguer casas) teria se transformado em quilombos (acampamentos), e tais expressões ganharam traduções transatlânticas entre o Brasil e a África, desde o século XVI‖ (GOMES, 2015, p. 11), sendo importante pensar o processo de transição do mocambo para o quilombo também no sentido de uma estrutura que foi se complexificando: de estruturas para erguer casas evoluiu para as casas propriamente ditas.

Igualmente, dentro desse contexto de escravidão, o quilombo sempre foi um tema que instigou o imaginário político e social do Brasil, tanto que a sua primeira definição encontra-se no corpo da legislação colonial de 1740 quando o Conselho Ultramarino o definiu como ―toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não se achem ranchos levantados nem se achem pilões neles‖ (ALMEIDA, 2002, p. 47), sendo essa a definição de quilombo que vai perdurar durante Colônia e Império chegando, inclusive, ao texto da Constituição Federal de 1988, sobretudo por meio da categoria jurídica ―remanescente‖, fazendo alusão ao que teria sobrado do que outrora havia sido um quilombo nos termos da legislação colonial, com um caráter restritivo e limitado, tanto que indagava-se se essa categoria seria capaz de comportar a experiência de segmentos negros no Brasil.

Logo, caminhando na direção da proposta colocada inicialmente para este capítulo, irei abordar de maneira cronológica as construções em torno do conceito de quilombo nos diferentes períodos históricos do Brasil. No entanto, esclareço que situá-lo na história não significa abdicar de seu sentido na contemporaneidade, sobretudo porque a ciência antropológica tem demonstrado que a perspectiva tradicional do quilombo deve ser repensada, levando em consideração a amplitude desse fenômeno.

Dessa forma, a proposta se alarga no sentido de abarcar as diversas ações empreendidas por esses grupos sociais para fazerem frente aos antagonismos presentes ao longo de suas trajetórias, implicando romper com a concepção de resistência centrada apenas na fuga e no dualismo geográfico (oposição à plantation e fora dos limites físicos) ou mesmo na oposição entre ―civilização‖ e ―natureza‖, pois como menciona Almeida (2002), o quilombo nem sempre esteve fora dos limites das fazendas, como no caso de Frechal no Maranhão, em que o quilombo estava a 100 metros da casa-grande, ou seja, na própria senzala, pois se tratava de famílias de escravos que mantinham uma forte autonomia em relação ao controle da produção pelo proprietário que não era mais o organizador absoluto da produção, havendo registros de que nos períodos de declínio dos preços do algodão no século XIX, a produção de farinha em algumas regiões aumentava, podendo-se apreender que essas famílias de escravos produziam outros produtos alimentares como farinha e arroz e colocavam no mercado de forma autônoma.

Dessa forma, as reflexões aqui empreendidas visam sair do modelo monolítico e da dicotomia da resistência versus dominação, considerando os contextos e as múltiplas formas de ocupação e uso do território, as negociações e as organizações sociais, econômicas e políticas dos quilombolas; desvendando esse leque ainda em muitos aspectos fechado na história, sobretudo porque segundo Gomes (2015), mais interessada em analisar os grandes

quilombos, a historiografia da escravidão deu pouca atenção aos pequenos grupos que se incrustavam nos morros e nas encostas das cidades e, nesse caso, nas próprias fazendas.

Logo, o que há de fato no debate que irei travar aqui quanto ao quilombo histórico é justamente a crítica que tem sido feita pela Antropologia a essa noção tradicional amplamente utilizada no contexto do art. 68 para deslegitimar os agrupamentos negros rurais, ou, nos termos colocados por Almeida (2002), as terras de preto, sendo essa uma expressão nativa e não uma denominação importada historicamente e reutilizada, como coloca O‘Dwyer (2002).