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1.2 Os modelos assistenciais e o atendimento das necessidades sociais e de saúde

1.2.5 O modelo em defesa da vida

A partir do final da década de 1980 e início dos anos 1990, o Laboratório de Planejamento e Administração em Saúde – Lapa, criado no Departamento de Medicina Preventiva da Unicamp, em Campinas, buscou sistematizar uma proposta de modelo assistencial nomeado “Em Defesa da Vida”, cujo manifesto foi publicado em 1991, na revista Saúde em Debate nº 33 e divulgado na 9ª Conferência Nacional de Saúde, em 1992 (40).

No artigo, os autores apresentam como princípios do modelo a gestão democrática (co-gestão entre usuários organizados, prestadores e governo), a saúde como direito de cidadania e serviço público de saúde voltado para a defesa da vida individual e coletiva. Entendiam que os indivíduos expressam processos coletivos de viver e que, portanto, toda situação individual é uma situação coletiva, não havendo conflito entre a atenção individual e a coletiva. Desta forma, os serviços de saúde podem atuar sobre um indivíduo como pertencente a um projeto integrado de ações de saúde, no qual a ação individual se articula com as coletivas (29):

Consideramos que um não atendimento a demanda espontânea é uma maneira de não incorporar o modo como o coletivo construiu a relação entre o usuário e os serviços de saúde, entre um dado cidadão e seu acesso a determinados serviços, mesmo identificando a parcialidade deste momento. Pois o que o serviço deve fazer é ir além desta situação, sem negá-la, isto é, deve realizar uma leitura do conjunto das demandas espontâneas a partir de instrumentais e saberes que a compreendam como fenômeno coletivo e, assim, permitir a incorporação de novas ações para compor o elenco de serviços de saúde oferecidos, em resposta a perspectiva de defesa da vida e da cidadania, em termos mais plenos (p. 85).

Por outro lado, os autores criticavam o modo neoliberal de produção e atenção à saúde que toma como imperativo da clínica a atenção ao indivíduo destituído de suas relações sociais, dicotomizando as ações coletivas das individuais, em benefício das suas relações com as regras do mercado.

Para organizar as instituições de saúde em defesa da vida, o grupo argumentava a necessidade de i) estabelecer relações entre usuários e instituições que permitissem o controle social e a gestão democrática dos serviços, a humanização no conjunto das relações estabelecidas entre usuários, trabalhadores e ampliação de uma consciência sanitária dos cidadãos em geral; ii) organizar o processo de trabalho em saúde incorporando as amplas dimensões das questões referentes aos problemas e necessidades de saúde, posicionando-se contrário à visão programática das ações de saúde que cerceava a demanda, barateava custos e burocratizava a assistência; e iii) organizar o sistema articulando regionalmente os diferentes tipos de produtores (públicos e privados), e todos os produtores de serviços de saúde deverian estar submetidos ao controle público e não somente os do Sistema Único de Saúde (29).

Para Campos (30), a proposta de programação das ações e serviços de saúde parte de uma premissa que reduz a análise do fenômeno “demanda espontânea”, incorrendo em uma negação da pertinência técnica e da legitimidade social, “como se este movimento pulverizado de inúmeros sujeitos sociais expressasse somente a ideologia capitalista da medicalização nos seus aspectos mais distorcidos, como o é o consumismo de medicamentos, por exemplo”.

O modelo defende a necessária “elevação” da consciência sanitária das pessoas e grupos organizados na sociedade em relação à saúde como direito e em defesa da vida, pautada em uma relação pedagógica crítica para tratar as relações entre problemas de saúde, causas sociais, serviços, direitos. Para tanto, aposta em metodologias de planejamento e gestão que aliem agilidade gerencial com participação dos interessados, compreendendo a aliança entre o planejamento estratégico situacional e a garantia da participação e envolvimento dos grupos organizados com grande potencial para implantar tal modelo. Advertiam que atitudes corporativistas de algumas categorias profissionais poderiam gerar

importantes conflitos no sistema que, no entanto, deveriam ser administrados para não acarretar falta de adesão ou prejudicar a eficiência e eficácia das ações de saúde (29).

O modelo se alinha às proposições do Relatório Dawson, quanto à organização do sistema de saúde a partir de territórios, estruturando-se todo o sistema a partir da rede básica de atenção primária, evitando-se que os serviços de retaguarda12 captem clientela por

si, visto que não são “autônomos” em relação ao sistema e à rede básica. No território, os serviços de saúde devem se responsabilizar pela “defesa da vida” daqueles que ali vivem, considerando o tamanho dos recursos materiais e da força de trabalho, a situação epidemiológica e a dinâmica política dos grupos pertencentes à região. Destaca-se que a proposta não é de “aprisionar o usuário a uma área restrita, a oferta é que deve garantir isso”(p.87) (29).

A concepção de “distritos sanitários” neste modelo é a de “uma rede de serviços que garantissem uma resolutividade de ação individual e coletiva diante dos problemas identificados em uma dada região alvo […] com a existência de retaguardas hospitalares”. O colegiado de gestão dos distritos deveria, desta forma, possuir representação de todos os dirigentes de serviços da área (29).

Coelho (17) destaca neste modelo assistencial a ênfase na necessidade de reformar a clínica, o processo de trabalho do conjunto dos trabalhadores de saúde e a mudança nas relações entre gestão e trabalhadores e entre estes e os usuários dos serviços. Sugere a ampliação do objeto de saber e de intervenção da clínica, incluindo o sujeito e o contexto e buscando superar a limitação da clínica tradicional e hegemônica ao abordar os problemas de saúde apenas do ponto de vista biológico da doença, ignorando os aspectos subjetivos e sociais do doente.

Segundo Silva Junior (40), a tentativa de implantação dessa proposta deu-se, inicialmente, em Campinas (SP), entre 1989 e 1991 e nos municípios de Piracicaba (SP), Ipatinga (MG), Betim (MG) e Volta Redonda (RJ). As experiências contaram com assessoria de Carlos Matus e apostaram na adaptação de “ferramentas” do planejamento

12 A proposta de modelo assistencial “Em defesa da vida” considera como serviços de retaguarda os

ambulatórios de especialidades, os serviços de apoio diagnóstico e terapêutico, os hospitais e os serviços de urgência e emergência, devendo ser dimensionados em função das necessidades identificadas e atendidas na rede básica (29).

para o cotidiano da equipe de saúde e na construção de um novo desenho organizacional para as unidades de saúde e para a gestão.

A burocracia institucional, principalmente em relação à área de administração e finanças, que dificultavam, sobretudo, alterações relacionadas à política de pessoal e à composição com o setor privado foram dificuldades apontadas para a implantação da proposta. Em 1991, o afastamento de Gastão Wagner de Sousa Campos da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, prejudicou a continuidade do desenvolvimento da proposta “Em defesa da vida” que buscou manter-se e avançar em outras experiências (40).

No entanto, grande parte desta proposta institucionalizou-se no âmbito federal, nos anos 2000, tendo inspirado a produção técnica de documentos que embasaram a Política Nacional de Humanização e as diretrizes para sua implementação (47). Esta política contribuiu para a divulgação dos principais aspectos operativos e filosóficos do modelo assistencial “Em defesa da vida”: a clínica ampliada, as equipes de referência13, o

apoio especializado matricial14, a formação de vínculo entre usuário e equipe para alterar as

relações do tipo queixa-conduta, co-responsabilização clínica e sanitária entre equipes e usuários, trabalho em equipe, construção de autonomias, elaboração de projetos terapêuticos singulares e de intervenção na comunidade (17).

Coelho (17) observa que, ainda que a ênfase de cada modelo recaia sobre aspectos diferentes, há mais convergências entre essas alternativas de organização dos serviços de saúde do que divergências. E no Brasil, pode-se dizer que a realidade da maior parte das experiências de organização dos serviços de saúde e de suas práticas resulta da composição de vários aspectos dos modelos apresentados. Exemplo disso está expresso na Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011, que aprova a Política Nacional de Atenção Básica (11). O texto menciona como um dos fundamentos e diretrizes da atenção básica:

[...] coordenar a integralidade em seus vários aspectos, a saber: integração das ações programáticas e demanda espontânea; articulação das ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde, tratamento e reabilitação e manejo das diversas tecnologias de cuidado e de gestão

13 Equipes de referência são aquelas aos quais se vinculam certo número de cidadãos ou famílias pelos quais

a equipe se responsabiliza, acompanhando-os ao longo do tempo, seja nos aspectos que envolvem o controle de suas doenças, seja em relação à promoção de sua saúde (17).

14 Apoio matricial especializado é tido como a prática de assegurar retaguarda especializada, tanto às

necessárias a estes fins e à ampliação da autonomia dos usuários e coletividades; trabalhando de forma multiprofissional, interdisciplinar e em equipe […] Essa organização pressupõe o deslocamento do processo de trabalho centrado em procedimentos, profissionais para um processo centrado no usuário, onde o cuidado do usuário é o imperativo ético-político que organiza a intervenção (11 - grifos nossos).

O texto da portaria menciona, ainda, a clínica ampliada, os projetos terapêuticos singulares, a organização do fluxo na rede de atenção à saúde e outros elementos identificados com vários dos modelos assistenciais alternativos propostos no Brasil.

O conceito de território é exemplo desta convergência. Basicamente, os modelos alternativos sugerem que a possibilidade de construir práticas de saúde mais próximas e adequadas às necessidades de saúde de uma população, está associada ao estabelecimento de territórios adscritos a equipes de saúde. Portanto, considerando que a territorialização é um dos eixos comuns aos modelos assistenciais alternativos para a organização de processos de trabalho mais resolutivos na saúde, esta categoria é analisada a seguir.

1.3 A saúde coletiva e a categoria “território”: possibilidades de aproximação das