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1.2 Os modelos assistenciais e o atendimento das necessidades sociais e de saúde

1.2.2 O modelo das ações programáticas de saúde

Inicialmente voltadas para a atenção a doenças infecto-contagiosas e parasitárias (hanseníase, tuberculose, malária etc.), as ações programáticas de saúde estenderam-se para outros grupos da população como mulher, criança, adulto, idoso, doenças sexualmente transmissíveis, a partir da década de 1970. Este formato de organização da oferta de serviços de saúde, em grande parte limitado aos centros e postos de saúde da rede de atenção primária, era utilizado pela proposta de medicina comunitária nos Estados Unidos, como forma de estender o atendimento a uma população

marginalizada, sem acesso aos pronto-atendimentos privados, com racionalização dos custos com os serviços públicos.

No Brasil, houve grande influência deste modelo de organização da oferta de ações de saúde na rede básica de saúde e, até os dias atuais, ainda é encontrado em grande parte das redes básicas municipais como meio de enfrentar problemas e situações de saúde que ocorrem com frequência e continuamente na população.

Para Dalmaso (42), a proposta de organizar programas na rede pública de saúde deu-se como contraponto ao modelo de pronto-atendimento, inicialmente utilizado para a atenção médica às urgências e, posteriormente expandido a todo atendimento clínico individual realizado por meio de convênios entre o Estado brasileiro e o setor privado, a partir da década de 1970, como meio de ampliar a cobertura de atendimento médico previdenciário. Desta forma, ampliou-se também uma “cultura do atendimento imediato” como qualidade desejável aos serviços de saúde e da consulta médica como momento privilegiado de atendimento. As necessidades de saúde tendem a ser reduzidas a problemas do corpo, conformando uma demanda “espontânea” motivada pela queixa do doente, reconhecida ou “traduzida” pelo médico. A queixa individual e imediata é a razão do modelo de pronto-atendimento.

Como instrumento isolado, o pronto-atendimento possui baixa potencialidade para alterar as condições de saúde da população, uma vez que não há garantia de acompanhamento ao longo do tempo, o foco do atendimento é o “motivo principal da consulta” e o diagnóstico é quase sempre “sindrômico”e a conduta terapêutica sintomática. Como o tempo da consulta é restrito, para a realização do diagnóstico é solicitado um arsenal de exames laboratoriais e, geralmente, são desconsideradas as determinações sociais dos problemas. O risco de atuação ineficaz, desnecessária ou prejudicial é proporcionalmente crescente em relação à ampliação da demanda (42).

A base do conceito de “programa”, para Nemes (8) é “articular instrumentos de trabalho dirigidos a indivíduos, entre eles a assistência médica individual, a instrumentos diretamente dirigidos a coletivos, objetivando potencializar a efetividade epidemiológica de todos os instrumentos” (p. 54).

A partir da década de 1970, no Brasil, especificamente o Estado de São Paulo, a política designada “Programação” foi o modo como a rede de serviços de saúde pública

ampliou a assistência médica para as populações excluídas da medicina previdenciária privada. As características desta proposta eram:

a) operação a partir de atividades eventuais (para a demanda espontânea que procurasse o serviço por qualquer motivo) e atividades de rotina (para a demanda triada para os programas);

b) programas definidos por grupos populacionais (crianças, adultos...) e subprogramas para situações específicas de assistência (menores de um ano, gestantes...) e doenças de essencial importância sanitária (tuberculose, hipertensão...);

c) finalidades e objetivos gerais assentados em categorias coletivas;

d) hierarquização interna de atividades (consulta médica, atendimento de enfermagem, grupos de atendimento, visita domiciliar...);

e) utilização de equipe multiprofissional;

f) padronização de fluxogramas de atividades e de condutas terapêuticas principais;

g) sistema de informação que permitia avaliações na própria unidade; h) gerência de unidades por médico-sanitaristas;

i) regionalização e hierarquização das unidades (p.55) (8).

Esta maneira de organizar o trabalho no interior dos postos e centros de saúde não foi capaz de alterar a estrutura do sistema de saúde vigente naquele período, caracterizada pela dicotomia entre o atendimento médico previdenciário e as ações públicas de caráter coletivo. Com o fortalecimento do movimento da reforma sanitária brasileira (MRS) e a instituição do SUS, após a década de 1980, a necessidade de aumentar o volume de assistência médica na rede pública, em direção a superar o caráter compensatório da rede municipal de saúde, as unidades básicas foram incentivadas a prestarem assistência médica, no modelo do pronto-atendimento à demanda espontânea e as proposições de “programação” foram destituídas de força política (8).

Nemes (8) observa que a universalização do direito à saúde, defendida pelo movimento de reforma sanitária brasileira e institucionalizada com o SUS, tem sido objetivada na expansão do acesso à assistência médica individual, sobretudo, como pronto- atendimento. Por outro lado, a definição de grupos prioritários ou das doenças alvo de atenção e a organização a priori de demandas a serem atendidas pelo serviço a partir de fluxogramas assistenciais padronizados e hierarquização de procedimentos técnicos, burocratizaram e estabeleceram relações autoritárias e alienantes no modelo de

programação, visto pelos trabalhadores e usuários como um entrave à demanda “espontânea” da população por assistência médica.

Nemes (8) adverte que, ao mesmo tempo em que busca estabelecer prioridades de alguns problemas e necessidades de saúde a serem atendidos pelos serviços, o modelo de programação em saúde deveria comprometer-se com a “criação de instrumentos que possam favorecer o desenvolvimento de sujeitos por meio do trabalho”, evitando “potencialmente a redução dos agentes à competência técnica e dos usuários a passivos objetos de intervenção”, permeando o trabalho com “avaliações que incorporem valores abertos […] que estão na base das diferentes opções de vida dos indivíduos e grupos sociais” (p. 61-3).

Campos (30) analisa criticamente a proposta de programação em saúde9.

Centralmente, o autor aponta limites na proposta quanto à sua capacidade de estabelecer normas organizacionais e de trabalho mais eficazes, apoiadas na epidemiologia para planejar os serviços, quanto à sua potencialidade para controlar os efeitos iatrogênicos da clínica e assegurar a supremacia do coletivo na organização do processo de trabalho. Adverte, ainda, que tal modelo tenderia a distanciar a oferta dos serviços das aspirações dos cidadãos.

Para o autor (30),

programas são simplesmente recortes de um conjunto de problemas sanitários, definidos segundo critérios supostamente técnicos e epidemiológicos; mas que, na verdade, são escolhidos e selecionados antes da aplicação de técnicas de programação a partir de pressões sociais, políticas ou econômicas (p.59).

Os programas assemelhar-se-iam a “linhas de produção” para o enfrentamento de algumas doenças ou problemas mais frequentes, em geral aqueles marginais ao interesse do setor privado, com intuito de minimizar os gastos estatais com políticas de atenção integral à saúde.

9 Para aprofundamento desta crítica, sugere-se a leitura na íntegra do texto de Campos GWS. O autor critica

as noções que fundamentam o método de “programação em saúde”. In: Campos GWS. A saúde pública e a defesa da vida. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1994 (30).

Quanto à contraposição do modelo de programação em saúde ao do pronto- atendimento centrado no atendimento clínico individual, Campos (30) afirma que a adoção da prática programática seria uma “renúncia velada ou envergonhada à possibilidade de reformar a prática clínica”. Esta prática clínica do pronto-atendimento ou da “consultação”, na visão do autor, é “uma vertente distorcida e essencialmente medicalizante” da prática social concreta da clínica, enquanto “campo onde a humanidade acumulou saberes, técnicas e procedimentos profissionais que permitem tornar a vida mais leve e mais longa”, com “possibilidades de reorganização operacional e renovação teórica”.

Campos (30) não diferencia a demanda “espontânea” por atendimento médico individual das lutas coletivas por acesso a serviços de saúde ou em defesa do meio ambiente ou de condições adequadas de trabalho, posto que ambos os movimentos refletem e são consequência da relação dinâmica entre sofrimento, subjetividade, doença, morte e vontade/necessidade de viver. Advoga que a “legitimidade” das necessidades de saúde, pretensamente “revelada” pela epidemiologia, é socialmente definida, dependendo da cultura, da história política e econômica de cada povo e de cada época, por milhões de sujeitos sociais inseridos em classes sociais distintas e com capacidades diversas de influenciar a composição final desta conjuntura.

Portanto, é necessária a efetivação de espaços para a expressão e acolhimento destas necessidades, demandas e expectativas dos sujeitos envolvidos - usuários, trabalhadores de saúde e gestores - sejam estes espaços coletivos, como no caso de reuniões dos conselhos e conferências de saúde e outros fóruns, como também, os outros espaços na rede de serviços aos quais os indivíduos tenham acesso e consigam expressar tais necessidades, demandas e expectativas: o balcão da unidade de saúde, o consultório médico, na visita domiciliária ou no leito hospitalar. Nesse sentido, para Campos (30):

O desafio gerencial dos sistemas públicos, em consequência, não é negar legitimidade a esta demanda aparentemente espontânea, mas sim conseguir, por via do seu reconhecimento, elevar os padrões de consciência sanitária, garantindo a insubstituível expressão individual das aspirações e desejos das pessoas, sem deixar de trabalhar criticamente as noções e comportamentos considerados equivocados do ponto de vista da clínica e da epidemiologia e, ao mesmo tempo, agregando ações sanitárias consideradas necessárias do ponto de vista destes saberes (p. 73-74).

Apesar das críticas, o modelo de programação em saúde é ainda bastante difundido na rede de serviços básicos de saúde de todo o país, em grande medida, por incentivo de políticas federais de saúde que tem neste modelo o principal instrumento para induzir ações consideradas prioritárias nestes serviços.