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Com relação aos processos envolvidos na coconstrução dos valores e no desenvolvimento da trajetória de vida dos indivíduos, é importante considerar o Modelo de Regulação Afetiva proposto por Valsiner (2007/2012). Nesse modelo, os valores correspondem ao nível mais elevado da hierarquia, o nível hipergeneralizado (Nível 4), capaz de controlar os demais níveis afetivos. Segundo Valsiner (2007/2012), o ser humano estabelece diferentes signos – signos generalizados – que lhe permitem se regular em direção ao futuro, ou seja, antecipar-se à própria experiência. Os signos generalizados podem atuar como signos promotores:

Fenomenologicamente, esses signos promotores são profundamente

internalizados e operam como orientações pessoais baseada em valores... cada significado – signo – que está em uso durante a janela de tempo infinitamente pequena que nós, convenientemente, cham mos ―o pr s nt ‖ é um spos t vo de mediação semiótica que se estende do passado em direção ao possível futuro – antecipado, ainda que desconhecido (p. 53).

Assim, o ser humano se antecipa ao futuro criando permanentemente significados nos campos afetivos. Ao ser internalizado, um signo pode funcionar potencialmente como um signo promotor de desenvolvimento, quando reiteradamente atua como orientador da atividade humana. Ele possibilita que o sujeito pense sobre o futuro e considere possíveis trajetórias de desenvolvimento. A construção e o uso de signos permitem a regulação dos fenômenos psicológicos que aparecem tanto no campo da cultura pessoal quanto no campo da cultura coletiva, de maneira interdependente. Desse modo, a cultura pessoal está constituída por aqueles significados pessoais subjetivamente construídos, enquanto que a cultura coletiva é coconstruída pelas mensagens comunicativas mediadas interpessoalmente pelos signos (Valsiner, 2007/2012). A partir dessa conceituação, é possível afirmar que cada indivíduo terá sua própria interpretação e internalização das mensagens da cultura coletiva, o que torna a cultura pessoal e a forma de agir de cada pessoa singulares. Valsiner (2007/2012) t m ém r ss lt omo pr m ss ntr l su propost qu ―a vida psicológica hum n m por s nos é f t v m su n tur z ‖ (p 251) Ass m s n o o nosso sistema de valores desenvolve-se fundamentalmente a partir da nossa afetividade.

Levando em consideração as afirmações anteriores, ressaltamos, no presente trabalho, o papel da afetividade como elemento central da experiência humana. No Modelo de Regulação Afetiva apresentado na Figura 1, baseado em Valsiner

(2007/2012), a afetividade encontra-se organizada em diferentes níveis, começando desde o Nível 0 (fisiológico: excitação e inibição) até o Nível 4 (campo afetivo hipergeneralizado). O Nível 1 é definido como um estado antecipatório, no qual não é requerida a mediação semiótica (pré-verbal). Já no Nível 2, a pessoa poderá nomear verbalmente as suas emoções, por exemplo, ela poderá dizer se está triste ou feliz ao se referir às emoções ― omo s st s foss m propr s p rm n nt s v f t v hum n ‖ (V ls n r 2007/2012, p. 260). Este é considerado um nível de diferenciação, pois permite ao sujeito pensar com base em categorias sobre suas emoções, mesmo quando elas não estejam diretamente relacionadas com as emoções ‗sentidas‘ (poderia s r um n v l ―r on l‖) No N v l 3 o s t or s n r l z s o s nt r o suj to generaliza a emo o v o o ―uso x ss vo t or s mo o m s u própr o uto lo o nt rno‖ (p 261) l v n o a tristeza, por exemplo, a uma experiência de caráter mais generalizado o t po ― u m s nto m l, estranho‖ m s n o s z r ou especificar que emoção é essa que estou sentindo. Finalmente, no Nível 4, encontramos campos afetivos semióticos hipergeneralizados, produzidos por afetos poderosos que não podem ser traduzidos por emoções específicas, muito difíceis de descrever (daí se situarem em nível pós-verbal), mas que têm grande capacidade de regular todos os demais níveis. Neste nível, o indivíduo não consegue expressar com palavras os seus sentimentos, e aí estão localizados os valores e preconceitos, os quais, pelo seu enraizamento afetivo, têm o poder de orientar os processos de significação e as ações do indivíduo.

Figura 1. Processos de generalização e hipergeneralização na regulação afetiva do fluxo da experiência (com base em Valsiner, 2007/2012, p. 261)

Esse modelo fornece elementos interessantes para explicar a formação e organização do sistema afetivo. No entanto, precisamos criar categorias que mostrem o seu movimento dinâmico e de transformação ao longo do tempo. De uma perspectiva desenvolvimental, é fundamental identificar as mudanças acontecidas no nível microgenético e aquilo que perdura no nível ontogenético, assim, o modelo proposto por Valsiner (2007/2012), em interação com outras teorias, permite-nos uma aproximação ao estudo desses dois níveis (micro e onto). Consideramos que na organização do sistema afetivo é possível mapear hipoteticamente os campos afetivo- semióticos nos quais os sujeitos operam, e a partir do uso de outra categoria de análise omo ‗Pos on m ntos nâm os S ‘ (PDS), que acabamos por desenvolver neste trabalho, identificar as transformações que ocorrem, ao longo do tempo, no sistema de Self das crianças. Esses conceitos, integrados ao Modelo de Regulação Afetiva, serão explicados quando tratarmos da análise dos dados.

A seguir, apresentaremos a Teoria do Self Dialógico e suas contribuições para o desenvolvimento da presente pesquisa.

CAPÍTULO 2

SELF DIALÓGICO EM DESENVOLVIMENTO: ASPECTOS

TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

Neste capítulo iremos abordar os principais pressupostos da Teoria do Self Dialógico (TDS) (Hermans, 2001; Hermans & Hermans-Konopka, 2010) e algumas das pesquisas sobre seu desenvolvimento (Bertau & Gonçalves, 2007; Fogel, Koeyer, Bellagamba & Bell, 2002; Freire, 2008; Lyra, 2007; Padilha, 2010). Em vários países, incluindo o Brasil, diversos grupos de pesquisa trabalham ativamente na construção de um corpus empírico e teórico que permita ampliar o panorama da área (Lima de Souza, Oliveira, Silveira & Gomes, 2013; Lopes de Oliveira, 2013; Roncancio-Moreno & Branco, 2014; Simão, 2010). Em língua portuguesa, verificamos a produção de pesquisadores brasileiros (Branco & Madureira, 2008; Branco & Freire, no prelo; Lyra, 2010; Mattos & Chaves, 2013; Roncancio-Moreno & Branco, no prelo) e portugueses (Cunha, Salgado & Gonçalves, 2012; Gonçalves & Ribeiro, 2012; Rosa & Gonçalves, 2013; Salgado & Gonçalves, 2007). O interesse pelo tema vem promovendo, desde 2001, encontros bienais de âmbito internacional denominados ― lo l Self Conf r n ‖ on há significativo intercâmbio entre pesquisadores interessados no tema, que apresentam suas ideias e pesquisas. Destacamos, por exemplo, a publicação de livros seminais, omo ―Th lo l S lf: M n n s Mov m nt‖ (H rm ns & K mp n 1993) ― lo l S lf Th ory: Pos t on n n Count r-Positioning in a Glo l z n So ty‖ (H rm ns & H rm ns-Konopka, 2010). Recentemente, um n m ro sp l r v st ‗Int r õ s‘ (2013) pu l o m Portu l, em língua inglesa, reuniu alguns importantes avanços teóricos da psicologia dialógica. Atu lm nt v r os p squ s or s l os o GT ‗Psicologia Dialógica‘ a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), estão preparando um número especial a ser publicado na revista Psicologia (USP), tomando como plataforma teórica a abordagem dialógica.

A TSD proposta por Hermans e colaboradores (Hermans, 2001; Hermans & Hermans-Konopka, 2010) surge da síntese das ideias de George Mead, William James e Mikhail Bakhtin. A TSD propõe que, nos indivíduos, coexistem diferentes posições de Eu (I-Positions) que, o m smo t mpo st o onst tu s por v r os ‗s lv s‘ qu

emergem das relações estabelecidas entre o sujeito e o contexto social. Assim, o Self1 se configura a partir ― u‖ ( nstân t v ) s u r sp t vo ―self‖ ( nstân r fl x v ). Essas posições dialogam entre si e podem ser inferidas a partir das múltiplas vozes pr s nt s n s n rr t v s o suj to H rm ns (2001) f n qu ―o u flutu tr vés diferentes posições e tem a capacidade imaginativa de dotar cada posição com uma voz ss m s o st l s s r l õ s ntr pos õ s‖ (p 248) e que essas relações são de natureza dialógica.

A partir das mobilizações do Eu (em espaços imaginários), ou mobilização das posições, são produzidos campos dinâmicos nos quais múltiplos sentidos se constroem. Nesses campos, acontecem diferentes auto-negociações, auto-contradições e auto- integrações. Essas posições de Eu são tanto internas quanto externas, e funcionam de um m n r r l t v m nt utônom As pos õ s nt rn s s o o t po ‗ u omo m ‘ ‗ u omo spos ‘ ‗ u omo o lun ‘ J s pos õ s xt rn s s o xp r m nt s como parte do ambiente e consideradas pelo indivíduo, da perspectiva das posições internas, como relevantes. Posições internas e externas coexistem como posições de Eu no sistema do Self, form m p rt um m nt on o omo ―m u‖ Ass m posições internas e externas se relacionam e o Eu pode se mover no espaço, de acordo com a situação e o tempo. É possível que algumas posições externas, que tenham uma funcionalidade equivalente e um mesmo padrão de significado, ativem conjuntos de posições internas, consciente ou inconscientemente. Dessa maneira, os padrões de posições internas e externas emergem das interações entre as pessoas e o mundo. Dependendo da alteridade com a qual o indivíduo está se relacionando, certas posições internas têm maior ou menor carga em relação à posição externa. Por exemplo, uma pos o ‗ u-Int l nt ‘ ( nt rna) pode ter uma carga maior em relação aos meus colegas de sala de aula, mas uma menor carga em relação a meus professores. Essas diferenças são geradas pela natureza contextualizada dos processos de posicionamento, nos quais uma posição interna é mais ou menos destacada em relação a uma posição externa particular, e vice-versa (Hermans, 2001).

Recentes avanços teóricos na TSD estabelecem que devemos reconhecer a natureza espacial e temporal do Self dialógico; por um lado o espaço está vinculado ao mundo globalizado e, por outro, o tempo se vincula aos elementos da nossa história

1Será utilizada a palavra Self com letra Maiúscula, quando se referir ao Self dialógico, e se usará self com minúscula — self — quando se referir ao componente reflexivo do sistema de Self.

(Hermans, 2014). A TSD tem como base pensar os fenômenos psicológicos em seu caráter relacional, sendo essas relações não apenas entre indivíduos, mas também, em nível intrapsicológico, entre as diferentes posições de Eu. Conflitos e oposições coexistem no Self, em que f r nt s ‗vozes‘ ntr m m onfronto s n o l um s l s mais dominantes do que outras. Uma voz que esteja ocasionando algum conflito pode ser silenciada algumas vezes, mas não por muito tempo, pois ela permanece no Self. Essas vozes, carregadas de afeto, poderão ter momentos nos quais sejam mais proeminentes e outros nos quais se apaziguem, a depender da experiência subjetiva e das interações com o contexto. O conflito entre essas vozes leva a períodos de instabilidade no Self, que só consegue um equilíbrio quando uma das vozes assume, por um período mais ou menos permanente, o domínio sobre as outras. As tensões, os conflitos e as contradições no Self dialógico podem trazer consequências benéficas para seu funcionamento, pois levam a autorreflexões, autodiálogo e, inclusive, ao desenvolvimento de estratégias criativas de negociação. Os conflitos internos têm uma função adaptativa para o Self e estimulam o seu desenvolvimento (Hermans & Hermans-Konopka, 2010).

As elaborações teóricas de Salgado e Gonçalves (2007) podem ilustrar algumas das características da TSD:

1. A primazia relacional, as relações como o começo. Os autores afirmam que em toda teoria dialógica os processos de conhecimento são basicamente relacionais. O ser humano já não é mais considerado sozinho e as pesquisas devem estar focadas na natureza dinâmica e relacional das interações.

2. O princípio da dialogicidade: relações monológicas e dialógicas. Bakhtin e Marková propõem que todo conhecimento humano será sempre dialógico. Entretanto, existiriam relações monológicas caracterizadas pelo autoritarismo, as quais excluem o outro. Embora consideremos que a dialogicidade é uma característica fundamental na teoria, não concordamos com a divisão entre relações monológicas e dialógicas dos autores, pois, de nossa perspectiva, as relações estabelecidas são todas de natureza dialógica, e elas vão se diferenciar apenas pelo grau e qualidade dessa relação.

3. A relação dialógica implica a pessoa e o outro: o princípio da alteridade. É central, na teoria dialógica, o papel do outro na relação. Esse outro pode ser uma pessoa, um grupo, uma comunidade, a sociedade. É comum a nossa antecipação

à resposta do outro no ato enunciativo ou em nossas ações. A alteridade se configura, então, como uma característica fundamental da existência humana e da construção de significados. À vista disso, a instância dialógica rejeita qualquer tentativa de considerar a produção de conhecimento e a construção de significados como um assunto apenas da mente do indivíduo.

4. Natureza contextual da dialogicidade. A esfera psicológica existe a partir das propriedades dialógicas da nossa existência, e a dialogicidade está profundamente enraizada em um contexto cultural. O contexto cultural é o resultado do começo dialógico e histórico de uma determinada sociedade, e é constituído por diferentes significados.

A partir desses quatro princípios básicos, Salgado e Gonçalves (2007) discutem as implicações da teoria dialógica para a psicologia. O ponto central dessa proposta, com o qual concordamos, estabelece que a psicologia deva ser pensada com base em princípios relacionais e dinâmicos. Além disso, acrescenta-se à discussão a ideia de que a mente e a subjetividade pessoal são processos sociais.

Levando em consideração que a presente pesquisa está vinculada à área de desenvolvimento humano, especificamente na infância, apresentaremos uma síntese dos estudos sobre o desenvolvimento do Self dialógico que foram mais relevantes para a construção teórico-metodológica desta tese. Um artigo com todos os estudos aqui citados, apresentados de maneira mais extensa, encontra-se no prelo, para publicação (Roncancio-Moreno & Branco, no prelo).

A TDS tem sido desenvolvida, principalmente, com base na narrativa de adultos, mas, nos últimos dez anos, a literatura mostra um substancial incremento do estudo do Self dialógico durante os primeiros anos de vida (Bertau & Gonçalves, 2007; Bertau, Gonçalves & Ragatt, 2012; Branco & Freire, no prelo; Garvey & Fogel, 2007; Lyra, 2007, 2010). Consideramos fundamental discutir o que se tem produzido na investigação com crianças nos primeiros anos de vida, com relação à emergência do Self dialógico, pois isso permite ter uma ideia geral sobre os processos de desenvolvimento já estudados e aqueles que precisam ser desenvolvidos e aprofundados. Por exemplo, estudos com crianças entre os cinco e seis anos, população da presente pesquisa, são praticamente ausentes na literatura. Da mesma maneira, é importante revisar as concepções teóricas e epistemológicas adotadas pelas pesquisas relacionadas ao desenvolvimento do Self dialógico em crianças.