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O MODELO SOCIETÁRIO DA FAMÍLIA NO BRASIL E SUAS CONSTANTES TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS

FERRAMENTAS DE INTERAÇÃO

2. O MODELO SOCIETÁRIO DA FAMÍLIA NO BRASIL E SUAS CONSTANTES TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS

Difícil seria definir um único parâmetro para modelar o conceito de família. O poeta brasileiro Noélio Duarte (2017) em seu poema intitulado “Família” afirma que “Para uns, a família é só o pai, para outros, só a mãe, muitos só têm o avô… Mas é família: sinônimo de calor!”. A estrofe em epígrafe representa a multiplicidade e variedade de modelos familiares existentes. No entanto, nem sempre, essa pluralidade foi aceita e levada em consideração, e é essa transição que será analisada a partir de agora.

De acordo com o arqueólogo Timothy Taylor (2017, p. 42) “chegar à verdade acerca da Pré- História é quase impossível”, ou seja, quanto a pré-história é difícil dizer qual realmente é a realidade dos fatos. Embora, seja de conhecimento amplo que era um período marcado pelo sistema nômade com relação ao espaço físico de moradia e de interações sociais. Dessa forma, este trabalho iniciará a partir da primeira grande civilização, já que o histórico do modelo familiar está intimamente ligado a essa concepção.

A definição de família no período romano é bem representada pelo professor Sílvio de Salvo Venosa (2017), que assim a descreveu:

Em Roma, o poder do pater exercido sobre a mulher, os filhos e os escravos é quase absoluto. A família como grupo é essencial para a perpetuação do culto familiar. No Direito Romano, assim como no grego, o afeto natural, embora pudesse existir, não era o elo de ligação entre os membros da família. Nem o nascimento nem a afeição foram fundamento da família romana. O pater podia nutrir o mais profundo sentimento por sua filha, mas bem algum de seu patrimônio lhe poderia legar (Coulanges, 1958, v. 1:54). A instituição funda-se no poder paterno ou poder marital. Essa situação deriva do culto familiar. Os membros da família antiga eram unidos por vínculo mais

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poderoso que o nascimento: a religião doméstica e o culto dos antepassados. Esse culto era dirigido pelo pater. A mulher, ao se casar, abandonava o culto do lar de seu pai e passava a cultuar os deuses e antepassados do marido, a quem passava a fazer oferendas. Por esse largo período da antiguidade, família era um grupo de pessoas sob o mesmo lar, que invocava os mesmos antepassados. Por essa razão, havia necessidade de que nunca desaparecesse, sob pena de não mais serem cultuados os antepassados, que cairiam em desgraça. Por isso, era sempre necessário que um descendente homem continuasse o culto familiar. (VENOSA, 2017, p.20)

Dessa forma, é possível vislumbrar a estrutura patriarcal, religiosa, elitista e machista das famílias romanas, haja vista a figura de um chefe como centro de poder autoritário em seu domicílio. Além disso, importante mencionar que aqui também surge a figura do casamento como forma de validar e fazer existir a instituição familiar, no modelo acima mencionado.

A partir do século V, com a ascensão do cristianismo, mas especificadamente da Igreja Católica, o direito canônico passou a regrar a única forma de gerar um contexto familiar: o casamento. Era a igreja que definia as regras a serem seguidas para se constituir um casamento e, por consequência, ser parte de um meio familiar, e esse modelo perdurou durante muito tempo, inclusive, ainda hoje no direito de famílias brasileiro há resquícios do direito canônico.

Avançando nesse contexto, chegamos na constituição de 1824, que não disciplinou sobre a família de forma geral, apenas sobre a família imperial e suas atribuições e composição, demonstrando, veementemente, o posicionamento liberal e individualista do império. Neste sentido, o autor José Sebastião de Oliveira afirma que “As Constituições brasileiras reproduzem as fases históricas que o país viveu, em relação à família, no trânsito do Estado liberal para o Estado social. As

Constituições de 1824 e 1891 são marcadamente liberais e individualistas, não tutelando as relações familiares” (LOBO, 2018, pag. 30).

Entretanto, em 1891, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, em seu artigo 72, § 4º, decretou que “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. Mesmo que de forma simplória e comprimida, tínhamos pela primeira vez no Brasil, algo relacionado ao que posteriormente seria chamado de direito de família. Além de que, nesse momento, com esse texto, o constituinte rompe com a religião que interferia no casamento, deixando a livre escolha do casal sobre casar-se no religioso ou não.

Em 1916, temos a publicação do Código Civil Brasileiro, que demonstrou o contexto social em que estava inserida, bem como afirma Cristiano Chaves de

109 Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald (2018):

Deixando de lado digressões históricas e antropológicas atinentes à origem antiga da família na pré-história, toma-se como ponto de partida o modelo patriarcal, hierarquizado e transpessoal de família, decorrente das influências da Revolução Francesa sobre o Código Civil de 1916. Naquela ambientação familiar, admitindo-se o sacrifício da felicidade pessoal dos membros da família em nome da manutenção do vínculo de casamento. Mais ainda, compreendia-se a família como unidade de produção, realçados os laços patrimoniais. As pessoas se uniam em família com vistas a formação de patrimônio, para sua posterior transmissão aos herdeiros, pouco importando os laços afetivos. (FARIAS, ROSENVALD, NETTO, 2018, p.1670)

Diante disso o modelo familiar, foi caracterizado pela figura masculina paterna como centro de poder e ordem do domicílio e a sua esposa como aquela que cuida do lar, dos filhos e afazeres domésticos. Além disso, nesse contexto, pouco

importava o sacrifício da felicidade, já que o divórcio não era permitido. Essa visão patriarcal, hierárquica, biológica e heteroparental perdurou por um longo período no Brasil. Nesse sentido, ainda, o Código Civil de 1916, dispunha que só eram

considerados filhos aqueles concebidos na constância do matrimônio e que, portanto, os concebidos fora da relação conjugal ou sem a instituição desta, eram ilegítimos, havendo clara distinção entre os filhos frutos de um casamento e os gerados fora.

Essa distinção transvestia-se, já inicialmente, pela própria classificação discriminatória que se fazia entre a legitimidade ou não dos filhos, presente nos dispositivos do antigo Código Civil. Consideravam-se legítimos, conforme leitura do art. 337 do CC/1916, os filhos biológicos havidos na constância do matrimônio e ilegítimos, os não provindos de relação conjugal. Estes últimos, eram subdivididos em naturais, quando entre os genitores não havia enlace matrimonial e nem

impedimentos para o casamento ou espúrios, que por sua vez, ainda, classificam-se em adulterinos e incestuosos, sendo aqueles quando um dos genitores, ou os dois, eram casados e o filho era consequência de relação extraconjugal e estes, quando o filho era concebido por genitores com grau de parentesco muito próximo. Nesse sentido, percebe-se que a matrimonialização era pressuposto forte e determinante quanto a legitimidade dos filhos, pautando-se sobretudo no critério pater is est, entendido como presunção legal de paternidade em decorrência do casamento.

A partir de 1988, com a promulgação da nova Constituição Federal, o conceito de família e tudo aquilo que rodeava esse instituto passou por grandes modificações, conforme verifica-se a partir do pensamento de Maressa Maelly

110 Soares Noronha e Stênio Ferreira Parron(2011):

O artigo 1°, III, da Constituição Federal, que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana, é considerado por alguns doutrinadores, como o ponto de transformação do paradigma de família; “num único dispositivo espancou séculos de hipocrisia e preconceito”

14. Deste modo, com toda essa ordem de valores trazidas pela Carta Magna, o Código Civil, que estava em trâmite no Congresso Nacional antes desta ser promulgada, precisou passar por um 'tratamento profundo', para que se adequasse aos parâmetros constitucionais. Como leciona Maria Berenice Dias “daí o sem-número de emendas que sofreu, tendo sido bombardeado por todos os lados”. (NORONHA, PARRON, 2011, p.6)

Dessa forma, o modelo de família que foi apresentado pelo Código Civil de 1916 e pelas constituições anteriores a constituição de 1988, não tinha mais

validade ou abrangência no ordenamento jurídico brasileiro. O texto constitucional foi um “sopro” para um momento no qual os cidadãos brasileiros viveriam sob a égide de uma sociedade mais livre e justa, retirando todo estereótipo familiar existente anteriormente. Isto posto, a partir da vigência da CF/88 é que foram revogados diversos artigos do antigo Código Civil e instituído um novo modelo de família, baseados especialmente nos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da solidariedade. Aqui, foram garantidos os mesmos direitos e

qualificações aos filhos e expressamente vedadas as designações discriminatórias relativas à filiação conforme art. 227, §6º da CF (BRASIL, 1988).

Felizmente, como visto, após a promulgação da Carta Magna de 1988, houve a introdução e reflexão acerca de novos valores, os quais possibilitaram ampliação ao modelo de família e filiação e garantiram mais proteção e igualdade no que se refere ao tratamento designado aos filhos provenientes e concebidos dentro ou não de relação conjugal. A partir de então, não mais se falou em filhos ilegítimos e legítimos, conceituações estas que deixaram de existir e cederam lugar a institutos pautados, exclusivamente, na isonomia entre os filhos.

A partir desse viés, em 2002, o novo Código Civil foi promulgado em consonância com a Constituição de 1988, trazendo consigo todos os conceitos provenientes da Carta Magna, abraçando a concepção de diferentes tipos de família de forma ampla. Nesse sentido, veja-se o pensamento de Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald (2018):

Já em concepção ampla, o Direito utiliza-se do termo família para dizer respeito às pessoas que se uniram efetivamente e aos parentes de cada uma delas entre si. Tem-se, aqui, uma conceituação menos abrangente, mais preocupada em limitar o alcance normativo. No art.

1.595 e seus parágrafos da Lei Civil de 2002, detecta-se a utilização da família nesse sentido, ao ser regulado o instituto do parentesco, limitado às pessoas

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ali citadas. O sentido restrito de família, por seu turno, dirá respeito, tão somente, ao conjunto de pessoas unidas afetivamente (pelo casamento ou união estável, exemplificativamente) e sua eventual prole. Não se levam em conta, aqui, outras pessoas que podem se agregar. É o que se vê, por exemplo, nos arts. 1.711 e 1.722 da Codificação ao estabelecer que o bem de família pode ser constituído em favor da entidade familiar e de seus filhos. (FARIAS, ROSENVALD, NETTO, 2018, p.1673)

Com base no exposto, notou-se que com o novo Código Civil, o Estado brasileiro tornou-se obrigado a tutelar e proteger todos os institutos familiares, sejam eles sanguíneos ou não. A existência do instituto familiar, durante muitos anos foi estabelecida em uma única forma e modelo. A partir de agora, a perspectiva da instituição família, não pode mais ser definida, posto que há uma diversidade e multiplicidade familiar.

3. DA FILIAÇÃO

Como pontuado, o instituto familiar e a própria filiação, passaram por diversas lapidações em suas definições, nem sempre tão abrangentes e inclusivas, até chegar ao atual reconhecimento. Segundo Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald (2018, p. 1834) “sob o ponto de vista técnico-jurídico, a filiação é a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que estão no primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aqueles que a geraram ou a acolheram e criaram, com base no afeto e na solidariedade, almejando o desenvolvimento da personalidade e a realização pessoal”.

3.1 CLASSIFICAÇÃO

Para fins didáticos, como mera classificação técnica, o reconhecimento do vínculo parental é divido em 3 critérios, são eles: critério jurídico, biológico e afetivo. Assim, consoante Maria Berenice Dias:

Existem três critérios para o estabelecimento do vínculo parental: (a) critério jurídico- está previsto no Código Civil, e estabelece a paternidade por presunção, independentemente da correspondência ou não com a realidade (CC 1.597); (b) critério biológico- é o preferido, principalmente em face da popularização do exame do DNA; (c) critério socioafetivo – fundado no melhor interesse da criança e na dignidade da pessoa humana, segundo o qual pai é o que exerce tal função, mesmo que não haja vínculo de sangue. (DIAS, Maria Berenice, 2016, p.632-633)

Como citado, o critério biológico, é fundado na consanguinidade, o jurídico proveniente do que é consagrado como vínculo parental pelos diplomas legais e o afetivo, baseado nos laços de afeto e amor entre pai e filho, ainda que aquele não o seja por fator biológico.

112 Neste artigo, nos deteremos, mais precisamente, sobre o critério socioafetivo, no contexto atual, onde não mais se exige a geração de um filho biológico para que seja legitimamente considerado como tal, somente devido a herança genética, mas surge outra maneira de se enxergar a filiação, ligada ao ideal de felicidade, convivência e afeto.

3.2 DO AFETO COMO FORMADOR DA FAMÍLIA

Atualmente, o conceito de família ligado a paternidade superou a questão de simples, e unicamente, consanguinidade, encontrando agora sua base no elemento da afetividade, como princípio de valor primordial no que se refere a formação de uma família. Nos ensinamentos de Cristiano Chaves, Felipe Netto e Nelson Rosenvald (2018):

A filiação socioafetiva não está lastreada no nascimento (fato biológico), mas em ato de vontade, cimentada, cotidianamente, no tratamento e na publicidade, colocando em xeque, a um só tempo, a verdade biológica e as presunções jurídicas. Socioafetiva é aquela filiação que se constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento em mão dupla como pai e filho, inabalável na certeza de que aquelas pessoas, de fato, são pai e filho (FARIAS; NETTO; ROSENVALD, 2018, p.1850)

Ainda que não tenha previsão explícita, o valor e presença da afetividade apresenta-se como figura determinante nas novas relações, sendo o vínculo afetivo aquele construído em meio a convivência familiar, que possui pilares sustentados no amor, cooperação, zelo e respeito mútuo entre os membros que tenham ou não um vínculo biológico.

Neste ponto, o afeto insurge como elemento influente e tão forte, que por vezes é mesmo capaz de transpor as próprias ligações biológicas, tornando evidente que a figura do pai não se confunde com a do genitor, pois o pai, verdadeiramente, é quem cria, assume espontaneamente e aceita para si a responsabilidade de guarda e proteção e, sobretudo, ama e dedica-se ao filho. Assim indicam Cristiano Chaves, Felipe Netto e Nelson Rosenvald (2018, p.1850) quando inferem que “o pai afetivo é aquele que ocupa, na vida do filho, o lugar do pai ( a função)”.

O afeto tomou tamanhas proporções que tal entendimento já encontra-se pacificado pelos tribunais. Vejamos:

EMENTA: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. DISCUSSÃO SOBRE PATERNIDADE REGISTRAL E

BIOLÓGICA. SENTENÇA. PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE

SOCIOAFETIVA SOBRE A BIOLÓGICA. IMPROCEDÊNCIA DOS