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1.3 A S QUESTÕES ÉTICAS

1.3.1 Os modelos éticos de Andrew Chesterman

Para tratarmos das questões éticas envolvidas na tradução em questão, utilizaremos as definições dos modelos éticos propostos por Andrew Chesterman (2001). O autor propõe quatro diferentes definições, que possuem zonas de contato e superposições. Suas limitações são explicitadas pelo próprio autor: “esses quatro modelos são apenas parciais; cada um abrange apenas uma parte do campo ético geral da tradução, e todos eles parecem inadequados, portanto, quando considerados isoladamente” (CHESTERMAN, 2001, p. 144, tradução nossa)10. Mesmo assim, esse pensamento esquemático pode ajudar na delineação do enfoque principal das questões éticas envolvidas no ato tradutório sob estudo. Avançando numa ordem diferente da exposição de Chesterman, podemos começar por seu modelo da “ética do serviço” (CHESTERMAN, 2001, p. 140, tradução nossa)11. Esse tipo de ética é aquela estabelecida pelo vínculo comercial entre um cliente e um tradutor. O cliente contrata o tradutor, e este deve seguir suas prescrições, ou seja, deve ser leal ao compromisso firmado com seu contratante. Essa abordagem não é muito pertinente para uma tradução sem fins comerciais e sem clientes, cuja motivação inicial provém do próprio tradutor, como é o caso do trabalho em questão.

10 these four models are only partial ones; each covers only part of the general ethical field of translation, and

each seems therefore inadequate on its on.

Outro modelo proposto pelo autor é o de uma “ética baseada numa norma” (CHESTERMAN, 2001, p. 141, tradução nossa)12. Esse modelo pauta-se pelo respeito às expectativas que os leitores da cultura-alvo têm com relação à tradução. O tradutor deve levar em conta o papel da tradução nessa cultura. O que é entendido nesse contexto cultural por uma “boa tradução”? Ora, o nheengatu é uma língua de tradição oral, com pouquíssimo lastro literário. Não há uma norma estabelecida que possa guiar as traduções de material escrito para essa língua/cultura. A questão da tradição ágrafa da língua geral é muito importante para várias considerações a respeito do trabalho pretendido, mas esse modelo ético, apesar de evidenciar a situação “limítrofe” deste projeto, não proporciona uma análise muito útil dos elementos que guiam seu percurso.

Há também a “ética da representação” (CHESTERMAN, 2001, p. 139, tradução nossa)13, aquela que se relaciona à fidelidade que o tradutor deve ter para com o texto fonte ou para com as intenções de seu autor. Toda tradução relaciona-se de alguma forma com o texto na língua de partida que motivou sua produção, e há infindáveis discussões sobre a natureza dessas relações. Sem entrarmos em divagações mais profundas a esse respeito, e considerando que a interação entre textos fonte e traduzido é conduzida por um tipo de “fidelidade”, podemos perceber facil- mente que essa “conduta ética”, apesar de sempre presente, é mais importante em alguns casos e menos em outros. São Gabriel da Cachoeira, tendo como língua co-oficial o nheengatu, deve ter, conforme já aventado, todos os documentos legais traduzidos para esse idioma. Esse é um caso muito claro de contexto no qual a correspondência de sentido entre original e texto na língua-alvo serve de guia ético para uma boa tradução. Já no caso da tradução de obras literárias, a fidelidade com o original não tem necessariamente a mesma relevância. Se a intenção primeira é a de ajudar na construção e consolidação de uma literatura em nheengatu, o fundamental do ato tradutório não é a transmissão fiel das intenções de um autor para outro idioma, mas, sim, o resultado que é “criado” na língua-alvo. Nesse caso, o julgamento de “qualidade” do texto “em si” pode ser mais importante do que o de “fidelidade” deste com a respectiva obra na língua-fonte.

O modelo definido por Chesterman que melhor representa o encaminhamento ético de nossa tradução é o da “ética da comunicação” (CHESTERMAN, 2001, p. 140, tradução nossa)14. Não se trata da preocupação com o modo como se representa, mas, sim, com a comunicação que se estabelece por meio da fronteira linguística/cultural. Chesterman (2001, p. 141, tradução nos- sa), mencionando a contribuição de Pym para o esclarecimento desse aspecto ético, escreve:

12 Norm-based ethics 13 Ethics of representation 14 Ethics of communication

Para Pym, o objetivo da comunicação transcultural é o benefício mútuo de- corrente da cooperação, e o objetivo ético da tradução é promover a coope- ração intercultural entre as partes que se vêem como “Outro”. Um tradutor ético, portanto, traduz de maneira a otimizar essa cooperação.15

Para que uma “parte” ajude eficazmente a outra, é necessário que haja um reconhecimento da existência desse “Outro”. No Brasil, há, por boa parte da população, a sensação ilusória de que o português é a única língua falada pelos “brasileiros”. Mesmo a existência da LGA, “uma das línguas de maior importância histórica no Brasil” (RODRIGUES, 2011, p. 13), não é do conhecimento da grande maioria. As traduções português → nheengatu têm, assim, um papel importante quanto à cooperação intercultural que tem início com o simples reconhecimento de que existe um “Outro” (e na verdade existem muitos “Outros”) dentro do País. Esse reconhecimento estabelecido pela tradução diverge da mera “tolerância”. Alguns “toleram” o fato de haver diferentes línguas/culturas no País, mas há pouca atitude para a implementação de trocas e colaborações interculturais. A cooperação estende-se, é claro, e como elemento principal, para a tentativa de instigar e desenvolver, a partir das traduções, uma literatura em LGA, o que pode ser decisivo para o futuro do nheengatu. Esse idioma, por sua vez, sendo assim mais reconhecido e valorizado, tem melhores condições de continuar fornecendo à língua portuguesa elementos que a renovem e a enriqueçam.

Ainda sobre a “ética da comunicação”, Chesterman (2001, p. 141, tradução nossa) acrescenta: “Um tradutor ético também deve decidir, observa Pym, que, em algumas ocasiões, seria mais benéfico definitivamente não traduzir, mas recomendar outras formas de comunicação, como aprender a outra língua”.16

Nota-se, portanto, o papel utilitário da tradução na definição desse modelo de ética: o ato tradutório é um dos possíveis “meios” para se atingir um “fim”, ou seja, o objetivo último relaciona-se de forma um tanto indireta com a tradução, já que ele pode ser atingido, eventualmente, por outros caminhos. Essa situação aplica-se perfeitamente aos projetos de tradução com vistas ao fortalecimento da língua geral, para os quais o objetivo principal não depende exclusivamente das traduções: estas são, sim, importantes vias que podem ter êxito quando atuando em paralelo com outras ações. Chesterman (2001, p. 143, tradução nossa) explicita o caráter utilitário desse modelo de ética quando diz que “os modelos da

15 For Pym, the goal of cross-cultural communication is the mutual benefit deriving from cooperation, and the

ethical goal of translation is to further intercultural cooperation between parties who are “Other” to each other. An ethical translator therefore translates in such a way as to optimize this cooperation.

16 An ethical translator might also decide, notes Pym, that it would sometimes be more beneficial not to translate

representação, e especialmente da comunicação, são exemplos de ética utilitarista. Isso é, as decisões éticas são baseadas nos resultados previstos; decisões antiéticas podem ser criticadas por resultados indesejados”17.