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1.2 C ONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DAS TRADUÇÕES ENVOLVENDO A LGA

1.2.4 Quando?

Passemos à pergunta: Quando?

Em que épocas foram feitas traduções para o nheengatu e outras línguas que passaram por contextos análogos? Quais foram os momentos importantes para esses processos tradutórios? A LGA esteve envolvida desde seu início com a questão da tradução. A língua desenvolveu-se a partir do idioma veiculado pelos tupinambás das costas do Pará e Maranhão, uma variante dialetal do tupi antigo, idioma que teve, ao longo dos séculos 16 e 17, além da confecção de dicionários, vocabulários e gramáticas, a publicação de catecismos. Ou seja, obras que traduziam a doutrina cristã à língua dos indígenas da costa brasileira.

Ao final do século 17, é uma dessas traduções que indica o início do afastamento entre a LGA – que começava a ser falada por várias etnias e pela população mestiça – e o tupi étnico – a língua conforme era falada pelos próprios tupinambás . O Compêndio da doutrina christãa na língua portuqueza, & brasílica foi composto pelo missionário jesuíta João Felipe Bettendorff, sendo publicado em 1687. Essa produção foi feita na língua dos tupinambás, por isso o próprio Bettendorff elaborou outra versão do catecismo, especialmente em LGA: Doutrina christãa em lingua geral dos índios do Estado do Brasil e Maranhão, composta pelo P. Philippe Bettendorff, traduzida em lingua irregular, e vulgar uzada nestes tempos (EDELWEISS, 1969, p. 138).

Após a expulsão dos Jesuítas e a proibição da língua geral pelo governo português, cujo documento foi assinado em 3 de maio de 1757 (FREIRE, 2011, p. 126), medidas foram tomadas para a difusão da língua portuguesa no Estado do Grão-Pará, que compreendia as terras lusas em território amazônico. Tais medidas foram, entretanto, infrutíferas, e o nheengatu continuou sua expansão até o fim do período colonial. Em meados do século 19, diversos fatores levaram à entrada da língua portuguesa na Amazônia e ao início do processo de declínio da LGA. É na segunda metade do século 19 e começo do século 20, após o início desse processo de declínio, que um crescente interesse pelo idioma levou à composição de diversas obras sobre o nheengatu, como a gramática do amazonense Pedro Luís Simpson – também grafado Pedro Luiz Sympson –, cuja primeira edição é de 1877 (SÍMPSON, 1877), e o dicionário do conde italiano Ermanno Stradelli, publicado apenas em 1929 (STRADELLI, 1929). Além disso, nessa época, viajantes coletaram e traduziram a literatura oral que era transmitida em nheengatu, publicando-a em obras bilíngues nheengatu → português. São os casos do General Couto de Magalhães, cuja obra O selvagem foi publicada em 1876 (MAGALHÃES, 1876); do botânico João Barbosa Rodrigues, autor de Poranduba amazonense, publicado em 1890 (RODRIGUES, 1890); e de Antônio Brandão de Amorim, cujas Lendas em nheengatu e em português foram publicadas postumamente na revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1926 (AMORIM, 1987). Este último, na realidade, traduziu e organizou narrativas coletadas por um indígena chamado Maximiano José Roberto, que não levou créditos na publicação (FREIRE, 2011, p. 145). Essas obras marcam um período em que as traduções do nheengatu para o português foram importantes, tendo desdobramentos para a história da literatura brasileira, já que serviram como inspirações para o movimento modernista, não só pela linguagem mas também pelas tramas pioneiras. Segundo Bessa Freire (2011, p. 146), Mário de Andrade, com Macunaíma, e Raul Bopp, com Cobra Norato, talvez tenham sido os escritores que mais dívidas contraíram com os autores

desses textos. A obra de Guimarães Rosa também foi influenciada pelos registros em nheengatu e suas traduções, o que é mais patente na elaboração linguística do conto Meu tio o Iauaretê9.

Vale dizer que trabalhos muito análogos aos de Magalhães, Barbosa Rodrigues e Amorim foram realizados, na mesma época, em outros países. Isso demonstra que, para além das fronteiras brasileiras, houve, naquele período, um despertar para o interesse no folclore, nas narrativas orais e nas línguas indígenas ou ágrafas, e as traduções desempenharam impor- tante papel nesse contexto. Para citar um exemplo, podemos mencionar a obra Folk-tales of Angola, do suíço Héli Chatelain, publicado em 1894. O autor aprendeu o idioma quimbundo, falado em vasta região de Angola, e coletou 50 narrativas durante o tempo em que viveu no país africano. Seu texto foi publicado em formato bilíngue (quimbundo → inglês), tais quais as obras em nheengatu citadas acima.

Traduções de obras do português para o nheengatu também surgiram em fins do sécu- lo 19, como a Christu muhençáua çurimaan-uára arama nhihingatu rupi - doutrina christã destinada aos naturais do Amazonas em nhihingatu (AGUIAR, 1898), feita pelo primeiro Bispo da Diocese do Amazonas, Dom José Lourenço da Costa Aguiar. Esta doutrina foi pu- blicada em 1898, também em formato bilíngue (nheengatu → português), para atender às ne- cessidades da igreja quanto à catequização de populações ribeirinhas do Rio Solimões. O se- gundo Bispo do Amazonas, Dom Frederico Costa, também traduziu textos do português para o nheengatu, entre os quais algumas orações e um manual de como se celebrar casamentos na ausência de um padre, publicados em 1909 em seus Elementos necessários para aprender o nheengatu (COSTA, 1909). Outro texto que vale ser mencionado é da autoria de Couto de Magalhães, que publicou no jornal Reforma, de 10 de dezembro de 1875, sua tradução em língua geral – que Dom Pedro II entendia (FREIRE, 2009, p. 327) – do auto de batismo do neto do Imperador, filho da Princesa Isabel e do Conde D’Eu (MAGALHÃES, 1975, p. 134).

Atualmente, vivemos um novo momento de evidenciação do nheengatu, o que foi cor- roborado e intensificado pela já referida co-oficialização do idioma, ao lado das línguas tuka- no e baniwa, no município de São Gabriel da Cachoeira. Como consequência da lei de co- oficialização, todos os documentos devem ser traduzidos do português para essas línguas in- dígenas, e os órgãos públicos devem ter funcionários habilitados para atender aos cidadãos nesses idiomas. Este momento pode ser também propício para as traduções de obras literárias,

9 Para mais informações sobre a utilização do nheengatu na elaboração da linguagem do conto Meu tio o

Iauaretê, cf. ÁVILA, Marcel Twardowsky; TREVISAN, Rodrigo Godinho. Jaguanheném: um estudo sobre a

conforme tem ocorrido com outras línguas que, recentemente, ganharam maior respaldo ofici- al, como é o caso dos já citados mirandês, em Portugal, e o guarani, no Paraguai. Este último idioma pode servir de exemplo para ilustrar como é importante o momento de evidenciação de algumas línguas ameríndias, ao menos do ponto de vista legal.

O guarani, após ser oficializado no Paraguai, em 1992, foi também oficializado na Província de Corrientes, na Argentina, em 2004, e, mais recentemente, em 2010, na cidade brasileira de Tacuru, no Mato Grosso do Sul. Além disso, na proposta aprovada na XXIII Reunião do Mercosul Cultural, realizada no Rio de Janeiro, em novembro de 2006, o guarani foi declarado um dos idiomas oficiais dos países que fazem parte do Mercosul, em igualdade de condições com o português e o espanhol, o que, por princípio, obriga a tradução de todos os documentos do Grupo para, pelo menos, uma das variedades do idioma (pois há variações dialetais, como o guarani mbya, o guarani nhandeva, o guarani kaiowá, o chiriguano e o guarani paraguaio ou avañe’ẽ) (FREIRE, 2009, pp. 330-1). Para que as leis saiam do papel, e línguas como o guarani e o nheengatu possam atingir, ao menos em certas localidades, a pretendida igualdade de condições com os idiomas de maior prestígio, a consolidação de uma literatura escrita nessas línguas pode ser essencial, e as traduções, neste caso, serão primordiais.