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4. SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL NO BRASIL

4.1 Modelos e conceitos norteadores da Reforma Psiquiátrica Brasileira

Segundo Tenório (2001), o movimento da reforma psiquiátrica brasileira teve início na luta mais ampla pela redemocratização do país na segunda metade da década de 1970. Nesse processo, de acordo com as exigências concretas que sofreu, o movimento construiu soluções particulares, decorrentes, por vezes, da articulação com

modelos de reformulação da assistência em saúde mental de outros países, como as comunidades terapêuticas inglesas, a psiquiatria comunitária e preventiva norte- americana, a psicoterapia institucional francesa e a desinstitucionalização italiana. Desses, Tenório indicou que os dois últimos são os que tiveram maior influência direta no Brasil. Nos parágrafos seguintes, é feita uma síntese desses quatro modelos de forma a se apontar suas contribuições.

No modelo das comunidades terapêuticas, por meio do recurso à Psicanálise, foi desenvolvida uma proposta que permitia interpretar não apenas os pacientes, mas também a instituição e seus profissionais como forma de se resolver a questão da liberdade no interior do hospital. Essa foi uma experiência que acabou sendo “absorvida pelos manicômios privados não interessados em mudança, servindo ao

marketing do manicômio, que incorporava um verniz moderno, sem, no entanto, deixar

de ser conservador” (Tenório, 2001, p. 26). Considera-se que o principal crédito desse modelo foi ter dado voz aos pacientes, ao produzir uma aproximação efetiva da equipe com eles.

O movimento da Psiquiatria Comunitária e Preventiva americana instituiu as idéias de “saúde mental” em oposição à doença mental e de intervenção na comunidade. Ao caracterizar o hospital psiquiátrico como iatrogênico, propôs uma psiquiatria pautada num programa mais amplo de atuação social de forma a evitar o adoecimento mental. Apesar da aceitação inicial dessa proposta no Brasil, seus efeitos de psiquiatrização e normatização da vida em sociedade foram logo observados. Esse é um aspecto que possivelmente contribuiu para que os autores da reforma psiquiátrica brasileira adotassem o conceito de “território”, proveniente da psiquiatria democrática italiana, em vez de “comunidade” (Tenório, 2001).

Quanto à noção de “saúde mental”, embora em seu surgimento denotasse um padrão de normalidade externo à singularidade do sujeito e à clínica, pelo aspecto da crítica ao sistema asilar que a acompanhava, essa expressão veio a ser privilegiada pela reforma psiquiátrica brasileira. O lugar estratégico que ocupa hoje no discurso da reforma está relacionado a dois fatores: denotar um afastamento de um modelo biomédico da doença, que não leva em consideração aspectos subjetivos da existência concreta do sujeito que se assiste, e demarcar um campo de conhecimento e de atuação que não se restringe à medicina e aos saberes psicológicos tradicionais (Tenório, 2001).

Mesmo tendo sido suas propostas superadas pela reforma, os dois modelos anteriores tiveram sua importância na história da assistência psiquiátrica brasileira. No

movimento propriamente dito de reformulação nacional da assistência em saúde mental, duas posições sobre a natureza da mudança almejada se constituíram: uma que enfatiza a dimensão política e social, preconizando a superação da clínica, e outra que “considera haver no fato da loucura uma especificidade que só a clínica é capaz de acolher de forma positiva” (Tenório, 2001, p. 53). A primeira corresponde ao paradigma promovido por Franco Basaglia no processo italiano de desinstitucionalização e, a segunda, à influência conceitual da psiquiatria institucional francesa.

Na Itália, a tese de que o enfoque psiquiátrico tradicional reduz um fenômeno complexo, a existência, a uma noção por demais simplificada, a de doença mental, contribuiu para a abolição do hospital psiquiátrico do conjunto de serviços da rede de saúde mental. Essa tese trouxe a indispensável reflexão de que a instituição que se quer negar não é simplesmente o hospital psiquiátrico, mas a doença mental, tendo em vista as repercussões que essa idéia teve na sociedade e os instrumentos e serviços que se construíram a partir disso. O modelo italiano preconizou que o objeto da Psiquiatria “não pode nem deve ser a periculosidade ou a doença (entendida com algo que está no corpo ou no psiquismo de uma pessoa). Para nós, o objeto sempre foi a existência-sofrimento dos pacientes e sua relação com o corpo social” (Rotelli, 2001, p. 90).

Para que as instituições que têm como objeto a doença mental sejam desconstruídas “é preciso romper com o paradigma clínico” (Tenório, 2001, p. 53) e se inventar constantemente instituições que atuem no território como motores de sociabilidade. Segundo Rotelli (2001), a instituição a ser negada é o conjunto de aparatos científicos, legislativos, administrativos, de códigos de referência cultural e de relações de poder que fundamentou a função social do hospital psiquiátrico na sociedade. Esse conjunto é o paradigma intramuros, ao qual se visa superar pela construção de um trabalho extramuros, em que as instituições são feitas para desinstitucionalizar. Tratar significa, assim, ocupar-se aqui e agora para que se transformem os modos de viver e sentir do paciente ao mesmo tempo em que se transforma a sua vida concreta cotidiana. Isso exige a presença de poetas, pintores, jornalistas, atores, talentos, recursos e espaços inventores de vida.

A segunda posição – que tem relação com a psicoterapia institucional francesa, mas não só com essa – situa de modo diferente a questão da instituição psiquiátrica, sendo essa concebida como um lugar de laço social para quem, por estrutura, tem dificuldade de fazer laço. Segundo Tenório (2001), pode-se dizer que essa

vertente forneceu ensejo e sustentação teórica aos Centros de Atenção Psicossocial da reforma psiquiátrica brasileira. A psicoterapia institucional considera que a instituição psiquiátrica tem um inegável papel terapêutico, desde que ofereça acolhimento e diferentes estratégias que sirvam como um ponto de referência e de sustentação para o sujeito psicótico. É atribuída à instituição como um todo o papel de recolhimento e agenciamento da transferência, em que o significante “coletivo” é o conceito organizador do espaço terapêutico.

É uma proposta que requer que se marque concretamente a importância do ambiente como um agente que favorece todos os processos psicoterápicos, mas não qualquer ambiente. Precisa ser vivo, caloroso, que permita a liberdade de circulação. É um ambiente que não se esmorece com o imprevisto nem com a necessidade de improviso (Oury, 2003). Esse modelo lançou os fundamentos teóricos da política francesa de setor, que dividiu a assistência em diversas unidades na sociedade, mas colocando, ainda, o hospital psiquiátrico em posição central na rede e o médico como o chefe das atividades (Rabelo, Mattos, Coutinho & Pereira, 2006).

Diante da caracterização feita acerca das duas posições que contribuíram para a construção da reforma psiquiátrica brasileira, pode-se considerar que se, em sua origem, tinham aparentemente propostas dicotômicas, a forma como foram apropriadas pelo movimento brasileiro apontou sua complementaridade. O peso maior conferido a uma delas em algum estado ou cidade pode estar relacionado ao modo como a reestruturação da assistência em saúde mental foi desenvolvida.

Como indicou Tenório (2001), os avanços promovidos pela reforma brasileira se misturam aos desafios de reconhecer que a vivência psicótica marca uma condição que coloca a cidadania em suspenso, pois essa só pode se realizar concretamente na vida de cada um com a exigência da sustentação de práticas singulares de cuidado e de acompanhamento. Por essa via, a clínica, inicialmente rechaçada, retorna não mais como impedimento à cidadania, mas como sua condição efetiva. A proposta de se manter o paciente na comunidade e fazer disso um recurso se fundamenta no paradigma de tornar a rede social de suporte um instrumento de aceitação da diferença e não de normalização do social.

A passagem de uma estrutura de internação tradicional, na qual a privação da liberdade constitui imagem disciplinadora e modeladora das estratégias de cuidado, para um local de atenção integrada em saúde mental, onde a função manicomial unívoca é substituída por uma reestruturação das equipes com oferta de serviços especializados

(Pitta, 2001), demanda uma série de ações políticas e de dispositivos sociais que não se restringem à clínica. Por outro lado, a atenção junto às pessoas com transtornos mentais não pode prescindir da clínica, tendo em vista sua importância no que se refere à análise da singularidade das potencialidades e das limitações de cada sujeito. Desse modo, apresentam-se abaixo alguns conceitos norteadores do atendimento preconizado pelo movimento brasileiro de reforma psiquiátrica.

O conceito de cidadania circula, muitas vezes, no vocabulário do campo da saúde mental como uma noção auto-evidente. A esse conceito estão ligadas idéias de direitos – civis, sociais e políticos. Ao seu uso, é conectada, ainda, a díade inclusão/exclusão, relação bem mais problemática do que aparenta. Por fim, é a cidadania que se tem em mente quando se empregam termos como autonomia, reinserção, contratualidade, empowerment, competência social, etc. Dentre esses termos, provavelmente, o mais associado à noção de cidadania é o de autonomia, como se englobasse por si só todos os demais (Barreto, 2005).

Em relação à noção de autonomia da pessoa com transtorno mental, essa não é sinônima de independência ou de auto-suficiência (Tenório, 2001). É importante contribuir não apenas para a ampliação da execução das atividades pessoais da vida diária pelo próprio sujeito, mas para qualquer decisão referente à sua vida. Cabe considerar que a noção de autonomia preconizada não é pautada em modelos rígidos e exclusivos. É uma autonomia que requer a avaliação das condições de cada sujeito assistido e da oferta de ações que possibilitem o exercício de maior contratualidade. Essa noção implica haver maior horizontalidade das relações, o que requer a noção de que ali há um sujeito. É preciso, portanto, cautela ao se discutir cada um desses significantes para que não se empobreça a quantidade de possibilidades que a eles podem ser associadas, ao se reduzir, por exemplo, a relação de contratualidade a ter poder de consumo e o termo cidadão ao de consumidor (Barreto, 2005).

Outra noção associada a esse campo é a de reabilitação psicossocial. Nos CAPS, é comum haver uma separação entre as ações de tratar e de reabilitar (Leal & Delgado, 2007). A primeira é relacionada ao médico e, a segunda, ao restante da equipe. Para um emprego mais crítico dessa noção, cabe aos profissionais de saúde mental o reconhecimento de que tratar e reabilitar são ações indissociáveis. Cabe, ainda, a reflexão de que, no campo da saúde mental, é complicado o entendimento do termo reabilitar como um trabalho que implica o retorno ao momento anterior à eclosão da doença. Para que o paciente alcance um ótimo nível de independência (Tenório, 2001),

a equipe, o paciente e sua família precisam consolidar um diálogo acerca do que visam reabilitar.

A todos esses significantes, que remetem à esfera individual, devem ser somados conceitos que contemplem o contexto no qual o paciente psicótico está inserido, pois é a articulação com a sociedade como um todo que possibilita a efetivação dos que os termos acima pressupõem.

A rede de atenção à saúde mental brasileira, como parte integrante do SUS, adota o princípio de controle social de estimular o protagonismo e a autonomia dos usuários dos serviços na gestão dos processos de trabalho no campo da saúde coletiva. A rede se caracteriza por ser essencialmente pública, de base municipal. Não deve ser composta apenas pelo conjunto de serviços de saúde mental do município, como CAPS, Serviço de Residências Terapêuticas (SRT), centros de convivências, ambulatórios de saúde mental e hospitais gerais. Deve englobar e articular entre si outras instituições e espaços variados da cidade – como a Estratégia de Saúde da Família, escolas, cooperativas, associações de bairro (Delgado & cols., 2007).

Na assistência em saúde mental, a premissa do atendimento em rede é a de que os vínculos interpessoais que se estabelecem no cotidiano dos serviços de saúde são os principais mobilizadores da trama que se constrói. A multiplicidade de pessoas e relações que compõem uma instituição pode propiciar a tessitura de uma rede mais forte e com mais nós, capaz de gerar mais possibilidades, afetivas e materiais, melhorando a qualidade de vida de todas as pessoas participantes do processo (Melman, 2001).

Delgado e cols. (2007, p. 57) afirmaram que “a construção de uma rede comunitária de cuidados é fundamental para a consolidação da Reforma Psiquiátrica. A articulação em rede dos variados serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico é crucial para a constituição de um conjunto de referências capazes de acolher” a pessoa com transtorno mental. A idéia fundamental, portanto, é a de que somente uma organização em rede, e não apenas um serviço, como o CAPS, é capaz de garantir a promoção da autonomia e, conseqüentemente, da cidadania das pessoas com transtornos mentais. Para a organização dessa rede, por sua vez, a noção de território é a diretriz.

Conforme Rabelo e cols. (2006), o território é o lugar no qual se desenvolve a existência do sujeito. A concepção de território adotada pelo movimento da Reforma Psiquiátrica busca subverter a lógica hospitalocêntrica ao propor que o CAPS não seja um serviço intramuros, como as instituições tradicionais de saúde e de saúde mental.

Tem como paradigma atender o cidadão, dentro do possível, no próprio contexto de relações em que se apresenta seu sofrimento.

A noção de território não se refere apenas a uma área geográfica, mas as pessoas, instituições, redes e cenários, nos quais se processam a vida comunitária. Refere-se ao campo de abrangência do serviço, ao lugar de vida e de relações sociais do paciente, de forma a se ampliar seu poder de troca. Com isso, as ações de cuidado passam a acontecer onde o sujeito vive (Leal & Delgado, 2007). Trabalhar no território implica trabalhar com os componentes da comunidade e suas forças concretas, de acordo com o modo como apresentam suas demandas e propõem soluções. É um trabalho que requer a identificação dos saberes e das potencialidades dos recursos comunitários, de forma a se consolidar uma postura de construção coletiva de cuidados em saúde mental (Delgado & cols., 2007).

Segundo Leal e Delgado (2007), as redes são as linhas que preenchem o território, devendo ser pensadas como fluxos permanentes de articulação. Essas noções de território e de rede pressupõem, assim, a redefinição da idéia de clínica, ao propor a construção de um campo de conhecimentos e de ações que não dissociem o homem da sociedade que o constitui.

É a partir da concretização no cotidiano das ações das noções acima apontadas que se pode considerar que a clínica ampliada está, de fato, ocorrendo. A ampliação da clínica significa o resgate e a valorização de outras dimensões, que não somente a biológica e a dos sintomas, na análise singular de cada caso (Ministério da Saúde, 2004c). Como indicou Tenório (2001), a clínica ampliada não restringe a priori seu campo de pertinência. Deve ser maleável ao manejo de circunstâncias habitualmente tidas como extraclínicas. É um acompanhamento da vida das pessoas que são assistidas na e para além do serviço de atendimento. Tomada a noção de território como uma idéia processual e dinâmica, pode-se articular as atividades realizadas dentro do CAPS com a vida do paciente fora dele (Leal & Delgado, 2007), de forma a que as ações de cuidado e de promoção da qualidade de vida possam ser compartilhadas com outras instituições e grupos não restritos ao campo da saúde mental. Tendo em vista tais premissas, analisa-se, a seguir, o que possivelmente contribui para a manutenção de serviços e de relações que lhes são contrárias.