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Ainda que a refeição e o comer sejam permeados por relações simbólicas, como pontuaram Mary Douglas (1972) em Deciphering a Meal e Roland Barthes (2006) em Por Una Psico-Sociología de la Alimentación Contemporánea, o estudo dos aspectos socioantropológicos da alimentação pode e deve ir além das análises acerca desses atos propriamente ditos. Nesse sentido, seria redutor estudá-los apenas como componentes de influência individual, pois fatos cotidianos não são formados apenas por escolhas racionais, mas pelas relações construídas com o mundo e as relações nele estabelecidas (DELORMIER; FROHLICH; POTVIN, 2009).

A título de exemplo, tem-se a existência ou ausência da comensalidade − o ato em que se come e bebe junto –, que pode influenciar e indicar como o indivíduo se sente e o que irá comer; e se irá comer, sobretudo, na ausência de alguém para dividir a mesa. Isto é, o que compõe a refeição não perpassa somente as escolhas individuais e racionais, pois o contexto em que o ato ocorre é influenciador.

Assim, essa faceta do comer dispõe de potência para problematização da sociedade e, nesse caso, em seu contexto contemporâneo (DELORMIER; FROHLICH; POTVIN, 2009). Portanto, a partir do estudo de hábitos alimentares no âmbito das práticas e representações sociais, as escolhas relacionadas à alimentação podem ser compreendias como manifestações de um estilo de vida alimentar (POULAIN et al., 2015).

Desse modo, destacou-se anteriormente que o consumo e as escolhas alimentares são delineados por um sistema alimentar, cujas lógicas individuais, coletivas, “familiares, religiosas, econômicas ou profissionais” operam (FONSECA et al., 2011, p. 3854). Logo, a proposta de compreender as práticas alimentares contemporâneas por meio de processos sociais, “acomoda possibilidades simbólicas e materiais, bem como condições culturais e materiais” (DELORMIER; FROHLICH;

POTVIN, 2009, p. 218, tradução nossa). Ainda, no pensamento de Poulain, as decisões alimentares tomadas se desenvolvem num espaço de liberdade “delineado por determinantes etnoculturais e são construídas dentro de contextos sociais com diferentes tipos de interações sociais” (POULAIN et al., 2015, p. 2).

Referindo que a modernidade alimentar é caracterizada pela gastro-anomia, esse autor descreve três principais características para essa época: (1) a superabundância alimentar, (2) a diminuição dos controles sociais e (3) a multiplicação dos discursos sobre a alimentação. No terreno da superabundância, a questão agora “se centraliza em saber se a sua alimentação, escolhida mais ou menos livremente e entre numerosas opções, acaba por ser confiável em termos de qualidade e de inocuidade” (CONTRERAS, 2011, p. 21).

Consequentemente, algumas associações importantes podem ser pontuadas, como a existência lógica do consumo em (1), a ascensão do individualismo por meio de (2), e a multiplicação dos discursos dietéticos e estéticos quanto à característica (3) (POULAIN, 2004). Por sua complexidade, claro, essas características descritas se imbricam. Assim, multiplicam-se não apenas discursos quanto ao fenômeno alimentar, mas também o processo individualização, as opções de alimentos a serem consumidos, as dificuldades relacionadas à escolha, etc. Além disso, vive-se:

[...] uma multiplicação dos solitários, uma pluralidade das identidades individuais e uma dissolução das identidades de grupos, que muitas vezes só são reencontradas na transgressão às regras que buscaram aniquilá-las [...]. O que era cerimônia de encontro virou exercício de solidão e pressa, como o momento das refeições. Os restaurantes por quilo e as lanchonetes de fast food, que se disseminam como pragas nas cidades brasileiras, são um exemplo acabado disso. Comer devagar e saborear o prazer da comida não está em cogitação, há pessoas esperando por seu lugar à mesa e destilando olhares incriminadores para possíveis ruminantes deslocados (SILVA, J.C., 2012, p. 148)

Diante disso, práticas e padrões alimentares foram impactados, sobretudo, pelo contexto da Revolução Industrial. Novos canais para obtenção de moradia, vestimentas, alimentos e meios de locomoção. foram abertos e novas relações e métodos de trabalho foram estabelecidos. Ademais, objetos como forno micro-ondas e geladeira tornaram-se populares e a tecnologia foi ainda mais aplicada à manipulação de alimentos, especialmente para fins de conservação, ampla produção e redução dos custos desse processo.

Para mais, foi um momento de expansão demográfica que redesenhou a produção e, então, a economia alimentar (PEDROCCO,1998). Assim, industrializou- se também a alimentação. Levenstein (1998, p. 826-827) afirma que:

Na década de 1830 os progressos consideráveis dos transportes – estradas, canais e navios a vapor – e da agricultura começaram a transformar a economia de subsistência [...] em economia de mercado, e a estimular o rápido desenvolvimento do comércio e da indústria. Nesses termos, o amoldamento da sociedade para um factory system a conduziu para uma modernidade em que a racionalização do trabalho se apoderou da mente e do corpo, de todas as esferas da vida, e o sentido de produtividade passou a operar predominantemente no campo do trabalho. Como desdobramento, o ato de que cozinhar para si e família passou a significar também perda de tempo e dessa produtividade. Por que não comer em um restaurante próximo ao trabalho? Por que não comer no shopping com a família no dia de descanso? Não seria mais “produtivo” comprar algo congelado ou, ainda, utilizar aplicativos para smartphone para pedir a refeição?

Poulain relaciona o fenômeno urbano à tendência de estilização do consumo alimentar, em que também se busca a lógica da distinção social, analisando-a como efeito da modernização (POULAIN et al., 2015, p. 3). Claude Fischler, em História da alimentação, ressalta que “os modos de vida foram modificados profundamente pela urbanização” e, então, a alimentação deixa o lar e “torna-se um mercado de consumo de massa” (FISCHLER, 1998, p. 850).

Logo, em termos de principais processos influenciadores das práticas alimentares contemporâneas, tem-se a urbanização e o surgimento da sociedade de consumo. A saída do campo para a cidade, principalmente para buscar trabalho, trouxe ao indivíduo novos desafios e paradigmas a sua sobrevivência. Nesse novo espaço, o consumo é incentivado e tem o poder de hierarquizar, de definir a posição social do indivíduo. Trabalho, status econômico, vida e relações sociais se entrelaçam e se interdependem (TOURAINE, 1971).

Ademais, “a falta de controle e de gestão da ocupação do solo urbano e o aumento do consumo, muito além das necessidades básicas e do bem-estar, respondem em grande parte por essa degradação e deterioração de relações” (RIBEIRO; VARGAS, 2015, p. 17). Quanto a esse processo, destaca-se que:

Desde 2010, a maior parte da população mundial é urbana e cresce em taxas mais altas que a total. [...] Há, também, acelerada metropolização, pois o crescimento urbano tem sido mais expressivo

nas megalópoles. Em 2010, Tóquio, no Japão, com 36.933.000 habitantes, era a maior cidade, e Nova York, a quarta cidade do mundo, com 20 milhões de habitantes.

À vista disso, tomam-se as palavras de Massimo Canevacci (2004, p. 80) para considerar que “a cidade é um contexto bem poderoso e ‘falante’, que não se deixa reduzir a um simples pano de fundo.” Para além, complementa-se essa ideia por meio da asserção de Fortuna (2001, p. 5) de que “a cidade, equivalente à sociedade, mostraria a esta última a natureza dos seus processos evolutivos, dos seus equilíbrios e tensões.” (FORTUNA, 2001, p. 5).

Processos evolutivos que atingiram a própria cidade que, como expõe Hans Blumenfeld em A metrópole moderna (1970, p. 52), “sofreu uma transformação qualitativa de modo que, hoje, ela não é meramente uma versão maior da cidade tradicional, mas uma nova e diferente forma de agrupamento humano”: a metrópole. Reflexo da modernização, produto espaço-temporal do urbano e berço da sociedade pós-industrial, a metrópole é palco que atrai olhares ansiosos e devoradores daquilo que ela tem a oferecer. Atrai corpos que, carentes e dormentes, se enfileiram para o ato de consumir, para a busca de prazeres volúveis, que já não satisfazem − mas que muitas vezes viciam e solicitam o imediato −, que multiplicam os lucros do capital. Capital ou não, a metrópole é única e múltipla, individualiza e é fetichista de olhares, “dispersa entre pupilas dilatadas e ocas”, como profere Massimo Canevacci (2008, p. 16).

Dessarte, a metrópole é comunicacional, comporta “circuitos informacionais” que constituem as mentes individuais (CANEVACCI, 2004); é influenciadora da vida mental. Assim como a refeição, a metrópole veio a representar significado sociológico para Simmel (1973). Canevacci (2004, p. 81) também menciona que a análise feita pelo sociólogo alemão apresentou que a metrópole “[...] emanava estímulos conflitantes que plasmaram a psicologia do cidadão ‘moderno’. A nova grande cidade, com seus incessantes fluxos comunicativos, modela e reproduz a fragmentação e a justaposição dos cenários contemporâneos pós-modernos”.

Em seu texto A metrópole e a vida mental, Simmel (1973) caracteriza que a vida na metrópole enraíza seus ritmos e multiplicidades econômicas e ocupacionais e confere superficialidade aos relacionamentos e aos vínculos emocionais dos indivíduos. Além disso, a vida metropolitana verte a “Pontualidade, calculabilidade, exatidão, são introduzidas à força na vida pela complexidade e extensão da existência metropolitana” (SIMMEL, 1973, p. 15) em objetividade nas mentes individuais.

Com a divisão social do trabalho forma-se um cenário de intensa especialização que torna um indivíduo incomparável ao outro. Isso representa um fator que causa autonomia e liberdade, possibilitada pela vida na metrópole. Contudo, de acordo com Bauman (2001), esses dois aspectos não tornam o indivíduo imune ao processo de individualização nem garante sua autossuficiência. Isto é, ao passo que a autonomia é possibilitada, há um cenário em que “essa especialização torna cada homem proporcionalmente mais dependente de forma direta das atividades de todos os outros” (SIMMEL, 1973, p. 11), em que a heteronomia é potencializada.

Isso posto, também há uma multiplicação dos conteúdos individuais para que esse indivíduo possa parecer, provocando uma intensificação dos estímulos nervosos na metrópole. Por sua vez, tal aspecto produziria um fenômeno psíquico que Simmel (1973) designou de atitude blasé. Nesse contexto, o indivíduo é incapaz de reagir a novas sensações com energia apropriada.

Assim, os estímulos são demasiadamente intensos, fazendo com que o indivíduo se sinta incapaz de responder a novos estímulos a não ser que esses sejam muito mais intensos que os anteriores: “nesse fenômeno, os nervos encontram na recusa a reagir a seus estímulos a última possibilidade de acomodar-se ao conteúdo e à forma da vida metropolitana” (SIMMEL, 1973, p. 17). À vista disso, pode-se inferir que o consumo é fruto da permeabilidade do indivíduo blasé e pode representar a reverberação da busca pela intensidade.

Quando apresentou a teoria da modernidade líquida, Zygmunt Bauman (2001) referiu que não há como escapar do processo de individualização imposto pela época atual em que o consumo caracteriza a condição de vida do indivíduo. Então, na lógica do ato de consumir, a primazia é do que está a “curto prazo”. Não há mais significado para aquilo que é duradouro.

No contexto alimentar, a individualização, ao desestruturar as práticas alimentares como a refeição, vincula estritamente ao indivíduo a responsabilidade sobre sua alimentação. Ao passo que o imediatismo afeta os padrões alimentares e os uniformizam. Segundo Alan Warde (2001), isso ocorre por meio do processo de racionalização da economia, da propagação dos ideais do consumismo na mídia e pelas estratégias publicitárias empregadas pela indústria alimentar. Praticamente lugar do mundo e em qualquer época do ano é possível consumir determinado alimento, pois como o “longo prazo” não opera mais, não há tempo para esperar o

ciclo natural e a sazonalidade dos alimentos. A industrialização trouxe às prateleiras uma gama de alimentos que se conservam, inclusive, por anos a fio.

A sociedade era composta por indivíduos que sabiam a composição e procedência dos alimentos que consumiam. Contudo, se antes produzia seus alimentos, agora, a função do comensal se limita ao consumo intenso e imediato de alimentos que o habituam à rápida obtenção, preparo e consumo. “A indústria já cozinhava no lugar do consumidor; agora, propõe-lhe encarregar-se também do regime (FISCHLER, 1998, p. 847), oferecendo produtos que estão dentro dos padrões que o ritmo da vida metropolitana impõe.

Ainda assim, mesmo que a individualização não proteja o indivíduo da invasão da esfera privada, pode trazer consigo a ideia de liberdade. Mas será que ela se realiza? Bauman salienta que:

Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada. A autocontenção e a auto-suficiência (sic) do indivíduo podem ser outra ilusão: que homens e mulheres não tenham nada a que culpar por suas frustrações e problemas não precisa agora significar, não mais que no passado, que possam se proteger contra a frustração utilizando suas próprias estratégias, ou que escapem de seus problemas puxando-se, como o Barão de Munchausen, pelas próprias botas. E, no entanto, se ficam doentes, supõe-se que foi porque não foram suficientemente decididos e industriosos para seguir seus tratamentos (BAUMAN, 2001, p. 43).

As opções apresentadas nas prateleiras estrategicamente posicionadas dos supermercados são feitas para dar a falsa ideia de que a escolha é do consumidor. A sociedade de consumo apresenta múltiplas escolhas, mas dentro de um sistema em que a publicidade de alimentos as pré-determina.

Se, devido ao trinômio moderno do individual, do consumo e do imediato, as relações sociais se tornam líquidas e a vida, fragmentada, transpõem-se ao fenômeno alimentar “a individualização e a desestruturação das práticas alimentares” (FISCHLER, 1998). O indivíduo metropolitano, na análise de Simmel (1973), tem sua vida marcada por relações breves e escassas.

Nesse contexto, as questões alimentares não deixam de ser perpassadas pela fragmentação. O ritmo da metrópole pauta o ritmo alimentar, que “é pautado pelas exigências da sociedade”, como alude Renato Ortiz (1994, p. 85):

“A refeição estruturada (entrada, prato principal, sobremesa) cede lugar a uma alimentação fragmentada. Contrariamente à refeição tradicional, que se fazia em horários fixos, come-se agora em horas

variadas. Ocorre ainda uma dessincronização entre o tempo e o lugar no qual os alimentos são ingeridos. Se antes os membros da família se sentavam regularmente à mesa, partilhando um momento em comum, hoje, cada um tende a coordenar seu tempo em função de suas próprias atividades. Há uma deslocalização do ato de comer”. O consumo como meio para diferenciação se tornou uma das faces da modernidade, que “gera uma ambivalência face a um constante desejo de experiências permanentemente renovadas e a uma profunda ansiedade derivada da perda de segurança, contida na rotina e na continuidade” (MARTIN, 1981; BERMAN, 1983 apud WARDE, 2001, p. 125).

A modernidade é fruto das incertezas, e o indivíduo não está preparado para lidar com elas. Na metrópole, os estímulos estão em toda parte, poluem, e as transformações são rápidas demais: “o fast-food é uma das expressões (existem outras) do movimento de aceleração da vida” (ORTIZ, 1994, p. 86). Ortiz (1994, p. 82) ainda diz que “interessa menos no caso McDonald’s sua americanidade, do que o fato de ele exprimir um novo padrão alimentar, o fast-food. [...] Não há tempo para se comer em casa, daí a necessidade de se conseguir uma boa refeição a preços módicos”. (ORTIZ, 1994, p. 82).

Símbolo da modernidade alimentar, o processo de McDonaldização trouxe caráter nômade à refeição, a cozinha ou a sala de estar deu vez a locais públicos em que se come perto de pessoas, mas com elas não se conecta. Assim, “as novas modalidades alimentares favorecem a mobilidade (restaurante, cafés, cantinas, automóvel, etc.)” (ORTIZ, 1994, p. 85). Por sua vez, a McDonaldização dos costumes que Ritzer (1983) referiu é a metáfora para se pensar a racionalização da sociedade e entender o porquê da predictability padronizar a alimentação.

Se esses desdobramentos tornam a vida amarga, os produtos industrializados são atrativos e podem propiciar uma sensação de leveza. Desse modo, como pontuam Rocha e Silva (2007, p. 9), “o consumo, fenômeno sensorial e cognitivo, opera na atualidade como um potente agenciador de ‘estados de espíritos’ e não apenas de estilos-de-vida ou de estilos mentais”.

Bauman (1999, p. 88) caracteriza que a sociedade moderna molda seus indivíduos a fim de formatá-lo ao papel de consumidor: “a norma que nossa sociedade coloca para seus membros é a da capacidade e vontade de desempenhar esse papel.” Desse modo, perde-se a real criticidade quanto aos “alimentos” consumidos e as substâncias químicas adicionados a eles. Como diria Michael Pollan, tratam-se de

food-like substances, compostas por ingredientes cujos nomes são desconhecidos e

difíceis de pronunciar. Come-se o que é ditado por terceiros, perde-se de fato a liberdade de escolha. Dessa maneira,

[...] com a chamada cozinha industrial, nem a composição nem a forma dos alimentos evocam um significado preciso e familiar; pelo contrário, podem evocar já qualquer coisa como, por exemplo, “iscas de carne” ou “palitos de caranguejo”. Assim, o risco maior que parece projetar a modernidade alimentar refere-se à incapacidade dos consumidores modernos para classificar os produtos da indústria alimentar. (CONTRERAS, 2011, p. 26)

Portanto, o discurso sobre o controle individual sobre o corpo e a saúde é tão falacioso quanto os métodos dos chamados “gurus das dietas, que aparecem constantemente, como tem aparecido por quase duzentos anos, vendendo seu ‘conhecimento especializado’, seus regimes, seus alimentos” (FOXCROFT, 2013, p. 236). Pierre Dukan e Robert Atkins, por exemplo, foram alguns desses “profissionais da dieta”, que segundo a autora, lucraram milhões e tiveram suas orientações dietéticas seguidas por inúmeros pacientes.

Ainda que os focos de contracultura despertem algum tipo de interesse à indústria de alimentos, como o caso de alimentos para pessoas veganas e vegetarianas, visto que, como diria Simmel (1973, p. 22), a indústria “precisa sempre buscar atender a novas e diferenciadas necessidades do consumidor atraído”, há supremacia do que provoca lucros de modos injustos. Afinal, “a economia do dinheiro domina a metrópole” (SIMMEL, 1973, p. 22).

Resultados de uma das revoluções sociais mais transformadoras, a lógica capitalista e a metrópole são os meios e fins que representam uma sociedade de consumidores, o surgimento de desregulações no âmbito alimentar e da individualização, que parece suplantar vigorosamente aquilo que nos faz estabelecer, conviver, criar laços e compartilhar a mesa − a comensalidade − e nos tornar blasé. O que tudo isso pode causar à relação indivíduo/sociedade?

2 ALIMENTAÇÃO, SOCIEDADE E CINEMA: PARA PENSAR A CONTEMPORANEIDADE

É mais provável que a ficção contenha mais verdade que o fato. Virgínia Woolf

Caverna simbólica na qual o homem se mostra como verdadeiramente é, despojado das amarras das instituições e do caráter prosaico do cotidiano, o imaginário cinematográfico fornece pistas para o entendimento da cultura contemporânea.

Edgard Carvalho

Quando nós falamos sobre alimentação, ainda que possamos não perceber, falamos sobre a sociedade. Isso ocorre porque o ato alimentar, além de estar relacionado a “normas, proibições, valores, símbolos, mitos, ritos, ou seja, ao que há de mais especificamente cultural” (MORIN, 2003, p. 40), revela vínculos que estabelecemos com nosso corpo, mente e espírito, com entes próximos e a sociedade, bem como os modos com que esses retroagem sobre nós.

Ainda que estejamos num cenário permeado pela herança científica positivista, cujo caráter objetivo suplanta nossa dimensão subjetiva e as dimensões e vínculos que comporta, a busca pela compreensão do fenômeno alimentar – e de questões que se estendem a ele – por meio de uma ciência aberta e complexa tem trilhado caminhos promissores.

À vista disso, fundamentados a partir das designadas ciências humanas, intelectuais como Émile Durkheim, Georg Simmel, Michel Foucault, Roland Barthes, Friedrich Nietzsche, Pierre Bourdieu, Mary Douglas, Claude Lévi-Strauss, Margareth Mead, Luís da Câmara Cascudo, etc. indicaram em seus escritos que a alimentação, para além de sua dimensão biológica, comporta e reflete aspectos socioantropológicos, culturais, morais, psicológicos, políticos, econômicos e assim por diante.

Com base nisso, é relevante considerarmos que somos (células, tecidos, órgãos, indivíduos, grupos) resultantes de fenômenos transformativos biológicos, históricos e sociais. Logo, resultamos de “um longo e vagaroso processo no passado e que, cada vez mais, apressa seu ritmo dada a rapidez das transformações que

vivemos do ponto de vista ecológico, tecnológico, alimentar, cultural” (ALMEIDA, 2014, p. 78).

Por isso, pensar e fazer ciência de modos que nos considerem em toda nossa complexidade, ou seja, que abarquem nossa condição de ser “totalmente biológico e totalmente cultural” (MORIN, 2003, p. 40) pode nos conduzir à compreensão e trazer mais reflexões, questionamentos acerca de um (f)ato que nos faz respirar, pensar, criar, evoluir, comunicar e transformar; isto é, o ato de comer. Como nos apontou Claude Levi-Strauss, o fenômeno alimentar marca uma passagem da natureza à cultura: “trata-se de realizar a passagem entre o alimento cru e o alimento cozido, de fazer do ato de se alimentar uma operação cultural e mediatizada” (LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 450).

Predominantemente, a ciência se trata de uma maneira de narrar fenômenos de modo técnico, linear, determinista, “sisudo, mal-humorado e compenetrado demais” (SILVA, J. C., 2010). Porém, tal modus operandi tem mostrado sua fragilidade e continuado a fragmentar a ciência. No campo da alimentação, ainda que presenciemos copiosas descobertas científicas, muitos alimentos têm funcionado como nosso veneno ao invés de nosso remédio. Temos, de fato, refletido, atribuído sentido ao pensamento, frente aos paradigmas que a contemporaneidade nos impõe? Edgar Morin nos direciona a possíveis respostas ao referir que:

[…] a inteligência que só sabe separar fragmenta o complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. Sua insuficiência

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