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Pelo exposto, pode-se perceber como a noção de sabedoria prática guarda vínculos profundos e estruturais com o universo espiritual clássico. A reorganização radical desse universo, da qual surge a modernidade, atinge em cheio o domínio das “coisas humanas”, provocando uma reformulação drástica da teoria do agir humano, ao termo da qual a razão prática será desenhada em perspectiva distinta daquela que levou Aristóteles a estabelecer a estrutura conceptual da ética antiga. Os fundamentos do campo da racionalidade da praxis serão revolvidos, e quando seus novos contornos surgirem já não haverá o mesmo lugar nem a mesma função para a sabedoria prática, que será então definida de modo significativamente distinto da sua versão antiga. Estando o destino e as perspectivas da phronesis ligados a essa experiência radical, é preciso equacionar a sua situação por referência ao espírito que inaugura o novo regime mental que é designado pelo termo “modernidade”.

A literatura que tenta abarcar o fenômeno da modernidade é vastíssima e sobretudo complexa, como o próprio objeto sobre o qual ela versa. Muitas são as formas de se abordar esse tema, e o seu exame compreensivo torna-se cada vez mais amplo, exigindo um esforço necessariamente interdisciplinar. Por outro lado, o uso indiscriminado da noção de modernidade traz consigo um desgaste da mesma, a qual tende assim à imprecisão e ao esvaziamento que marcam o destino dos conceitos que se tornam chavões dentro de um jargão vulgarizado. Assim, de partida é conveniente e necessário delimitar o uso específico que faremos da noção de modernidade.

Tomada em sua acepção propriamente filosófica, que é a que nos interessa aqui, “modernidade” é uma categoria que exprime uma forma típica de leitura do tempo pela razão. O exame da etimologia do termo nos fornece um ponto de partida valioso para a captação dessa forma. Substantivo abstrato, “modernidade” deriva do adjetivo “moderno”, que por sua vez remonta ao advérbio latino “modo”, que significa “há pouco” ou “recentemente”. Assim, etimologicamente, “moderno” exprime a qualidade daquilo que aconteceu no tempo recente, enquanto “modernidade” refere-se ao caráter

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Baseamo-nos nessa seção nos seguintes textos de H.C.L.Vaz: “Ética e Razão Moderna”, in Síntese Nova Fase, v.22, n. 68, 1995, p. 53-84; “Fenomenologia e axiologia da modernidade”, in Escritos de Filosofia VII – Raízes da Modernidade, p. 11-30; e Escritos de Filosofia III – Filosofia e Cultura, p. 225- 230.

ou essência que determina tudo o que se diz “moderno”, por contraposição àquilo que determina o que se diz “antigo”, ou então “tradicional”. Portanto, o que o exame preliminar da etimologia de “modernidade” nos revela é a pressuposição de uma diferença ao mesmo tempo qualitativa e essencial na representação do tempo.

Essa diferença corresponde a um certo privilégio conferido à experiência presente, no sentido de que o tempo presente liberta-se da primazia do “antigo” ou “tradicional”. O passado deixa de ser uma instância normativa auto-legitimadora para submeter-se a uma outra estrutura axiológica, inaugurada pela novidade qualitativa atribuída ao tempo presente, diante da qual a tradição precisa ser ou justificada, ou desqualificada criticamente, vale dizer: racionalmente. Desta forma, percebe-se como existe uma vinculação intrínseca entre modernidade e razão crítica. A normatividade desloca-se da tradição para a razão: para uma consciência moderna, a manutenção da normatividade tradicional só pode ser entendida como recuperação reflexiva, assim como a sua desqualificação só pode legitimar-se como superação crítica.

Neste sentido fundamental e abrangente, pode-se dizer que há uma equivalência conceptual entre modernidade e filosofia, o que explica a razão de a experiência moderna ser genuinamente ocidental, pois somente a cultura ocidental, a partir da experiência grega, colocou a razão no centro de seu universo simbólico, definindo-se como civilização da razão. Assim, podemos acolher a definição proposta por Henrique Vaz: “modernidade significa a reestruturação modal na representação do tempo, em que este passa a ser representado como uma sucessão de modos ou de atualidades, constituindo segmentos temporais privilegiados pela forma de Razão que neles se exerce.”115

Dado que a razão crítico-filosófica pode assumir várias formas, segue-se que haverá tantas formas de modernidade quantas forem as formas de razão que historicamente ocuparem o centro do sistema simbólico-cultural. Em outras palavras: as variações e modalidades distintas de razão crítica obrigam-nos a falar de modernidades, no plural, para depois qualificarmos a modernidade de que tratamos segundo a forma hegemônica de razão que a especifica. A história da razão filosófica pode ser encarada, pois, como uma sucessão de modernidades distintas.

A modernidade que nos interessa, aquela que virá excluir a forma clássica de sabedoria prática de seu sistema de razões, é a que recebe de Descartes a sua certidão de

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nascimento, podendo ser chamada de modernidade moderna ou pós-renascentista (em que o qualificativo refere-se a uma cronologia histórica ou a um movimento da cultura) ou então de modernidade pós-cristã (qualificada pela referência à substituição de um universo ético fundamental). A partir de agora, salvo indicação em contrário, referir-

nos-emos à modernidade moderna, por comodidade, simplesmente como “modernidade”.116

Segundo a definição apresentada, uma fenomenologia da modernidade deve expor os traços distintivos da forma específica de Razão por referência à qual se organiza o universo da cultura moderna. O evento especulativo que dá a chave de acesso e compreensão a toda a modernidade pode ser enunciado de forma concisa: no centro do novo sistema de razões instala-se o Eu legislador. A metafísica da subjetividade assim inaugurada, substituindo a metafísica clássica do ser, dará o tom fundamental de toda a nova mentalidade que se constituirá por aluviões sucessivos a partir da Renascença.

Na antevéspera dessa revolução encontramos a crise institucional que sacode a Universidade de Paris no último quartel do século XIII, selando o fim do projeto de conciliação entre razão e fé que define toda a cultura teológica medieval.117 Por um paradoxo que só a visão histórica pode apreender, a dissolução desse projeto será feita em perspectiva teológica e com a finalidade precípua de salvaguardar o espaço da fé diante da ameaça pressentida no impropriamente chamado “averroísmo latino”. A possibilidade de uma restauração do naturalismo necessitarista antigo, em concorrência e mesmo em oposição ao modo de vida cristão, determina a condenação de 1277. Após esse ato de autoridade, todo o pensamento teológico move-se no sentido de uma crítica ao auxílio que a razão filosófica poderia prestar à compreensão da fé. Ao termo desse processo, deflagrado em nome da defesa da fé, abre-se um espaço para um saber natural não mais regido pelo programa da fides quaerens intellectum, saber que portanto fica entregue a si mesmo e a objetivos que não dizem respeito à vida na fé.

Como já foi assinalado por Étienne Gilson118, não é casual o fato de justamente nos meios onde se realiza a dissociação entre razão e fé surgirem as primeiras descobertas e

116 Essa questão aparentemente terminológica oculta uma outra, polêmica, a respeito de avaliações críticas

da modernidade moderna, que não podem ser desqualificadas meramente como uma defesa regressiva e restauradora de uma atitude “pré”-moderna. Esse tipo de desqualificação supõe uma espécie de univocidade histórica da experiência moderna, que é recusada já na própria definição de modernidade aqui utilizada.

117 A esse respeito, ver as magistrais análises de Henrique Vaz em Escritos de Filosofia VII – Raízes da

Modernidade.

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fórmulas de uma nova forma de saber, que prenuncia o advento da moderna ciência experimental, destinada a substituir a visão de mundo antiga, solidária da cosmologia e ontologia aristotélicas, pela concepção mecanicista do universo infinito e homogêneo. A destruição crítica dos pilares da metafísica aristotélica, levada a cabo principalmente nos meios ockhamistas-nominalistas, prepara o terreno para a implantação moderna da metafísica da subjetividade. Na verdade, já no final do século XIII o conceito unívoco de ser, formulado por Duns Escoto, aliado ao primado do esse objectivum, igualmente de proveniência escotista, abre o caminho para a reorganização da ontologia em torno ao pólo da representação e do Sujeito.119

Seguindo esta linha de evolução, aberta com a inflexão que a condenação de 1277 impõe ao pensamento teológico tardo-medieval, as diversas racionalidades ou figuras da Razão moderna encontrarão seu denominador comum na peculiar relação que se estabelece gradualmente, num itinerário que conduz de Descartes a Hegel, entre os pólos de inteligibilidade do Ser e do Sujeito. Ao passo que a Razão clássica inscrevia as raízes do Cogito no Ser, distinguindo rigorosamente o domínio lógico do metafísico e subordinando aquele a este, a Razão moderna opera uma inversão em que o Ser passa a ser absorvido pelo Cogito, resultando na logicização do Ser que caracteriza a metafísica da subjetividade e que estará consumada na Ciência da Lógica hegeliana.120

Essa inversão radical, por sua vez, sustenta-se sobre a primazia atribuída à racionalidade lógico-matemática, que se converte assim em racionalidade-matriz para todo o universo da Razão moderna, segundo a qual se decide sobre a legitimidade racional de qualquer saber que aspire a ser reconhecido como conhecimento válido. Em face desse novo critério, adianta-se a racionalidade empírico-formal própria das ciências da natureza assentadas sobre a originalidade do método experimental de fundamento cartesiano-galileano. Assim, a inversão metafísica que está na base do sistema de razões moderno faz com que se multipliquem e se ordenem as formas de racionalidade

119 Sobre esse ponto, cf. Escritos de Filosofia VII, p. 186-189; cf. ainda Escritos de Filosofia III, p. 156-

166. Para as antecipações medievais de linhas de desenvolvimento do pensamento filosófico posterior (contemporâneo), veja-se também MURALT, A. de L`Enjeu de la Philosophie Médiévale: Études Thomistes, Scotistes, Occamiennes et Grégoriennes. Leiden: E.J.Brill, 1991.

120 A linha de evolução da metafísica da subjetividade recapitula, em sentido inverso e evidentemente em

contexto hermenêutico distinto, a dialética da medida que conduzira, na Grécia clássica, da crise instaurada pela sofística com a submissão das coisas à medida do homem (representada pela célebre sentença de Protágoras) à submissão platônica do homem e das suas coisas a Deus (cf. Leis, IV, 716 c) e à submissão aristotélica do cognoscente à medida da verdade das coisas (cf. Metafísica X, 1, 1053 a 30-b 3). Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p.38-39 nota 8. Cf. também Escritos de Filosofia III, p. 156-166.

segundo os procedimentos metódicos fundamentais da experimentação e da construção lógico-matemática.121

Como conseqüência dessa inversão, a Razão moderna será estruturalmente

operacional, unindo indissoluvelmente theoria e poiesis, e tornando-se potente instrumento para a dominação seja da natureza, seja da sociedade e dos indivíduos.

Arrastada pela irresistível atração exercida pela racionalidade tecnocientífica, atração exponenciada pelo fulgurante sucesso na dominação efetiva da natureza, a racionalidade filosófica será como que aprisionada à interlocução privilegiada com a Nova Ciência, com a qual ela compartilha a mesma base metafísica.

Correlativamente, a cosmologia que se apoiava sobre a ontologia clássica das essências cede lugar a uma nova imagem de mundo, construída principalmente a partir da revolução científica. A noção eminentemente grega de um kosmos qualitativamente diferenciado, intrinsecamente regido por um finalismo universal, estampando visivelmente o domínio da ordem, da razão, da beleza e da proporção122, é substituída pela imagem do universo infinito e homogêneo, concebido segundo o modelo de uma máquina, funcionando mecanicamente sem qualquer sentido imanente, limitando-se a simplesmente existir. A idéia de natureza subjacente a esta imagem é traçada exclusivamente de acordo com a racionalidade matemática. A nova concepção da natureza, objeto de dominação e exploração com vistas à satisfação das necessidades vitais humanas, já não guarda nem remotamente qualquer traço de ligação com a antiga e venerável physis, que na imutabilidade de sua ordem oferecia-se à theoria como o fundamento de um nomos objetivo ao qual a praxis humana deveria referir-se.123 A cosmologia moderna vem assim neutralizar o mundo, tornando-o eticamente indiferente.

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Cf. VAZ, “Ética e Razão Moderna”, in Síntese Nova Fase, vol. 22, n. 68, 1995, p. 65.

122 A respeito da formação da idéia de kosmos na Grécia Antiga e a consolidação definitiva do seu sentido

de “mundo” no Timeu, veja-se BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 29-38.

123 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 163. Barbara Cassin ressalva que “a predominância da idéia de

natureza não poderia de modo algum caracterizar de maneira global a Antiguidade”, relembrando a crítica ao conceito de natureza desenvolvida no movimento da sofística (Cf. CASSIN, B. Aristóteles e o Logos. Contos da Fenomenologia Comum. São Paulo: Loyola, 1999, p. 124-127.) Ainda assim, é inegável a existência dessa predominância ou, pelo menos, de uma função de destaque concedida ao conceito de natureza na maior parte das escolas representativas da filosofia antiga, mesmo que com articulações e sentidos diversos, atestando um preceito comum: não fazer violência à natureza e deixar-se guiar por ela. E, como quer que seja, é no naturalismo grego antigo que os meios teológicos do século XIII vão identificar o perigo a que se expõe a fé no ensino dos averroistae, estando pois historicamente ligado o processo que abre caminho à modernidade com uma concepção de natureza de feitio antigo.