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1. Sabedoria Prática: linhas fundamentais da concepção de phronesis

1.3 Phronesis, Orexis e Phantasia

Sob o ponto de vista da psicologia do ato moral, a sabedoria prática orienta teleologicamente o campo da escolha (prohairesis), na medida em que esta sempre implica uma forma de raciocínio e reflexão relativos às coisas humanas, sendo portanto escolha deliberada. Referida ao desejo que expressa o fim intencionado de forma não- racional, a sabedoria prática torna-o um desejo refletido (orexis dianoetike), que assim move o processo de decisão. Desse modo, na decisão unificam-se a faculdade apetitiva e a faculdade intelectiva como intelecto desejante ou desejo razoável. O que torna possível essa unificação é a capacidade natural das tendências e impulsos que pertencem

87 Cf. PERINE, M. “Phronesis: Um Conceito Inoportuno?”, in Kriterion, v. XXXIV, n. 87, 1993, p. 31-

55, aqui p. 45-46. Sendo a natureza da relação entre phronesis e sophia em Aristóteles objeto de discussão polêmica entre os especialistas, adotamos aqui uma das posições defendidas nesse debate sem retomá-lo a fundo, o que estaria além de nossa competência e dos objetivos desse trabalho.

à alma sensitiva e concupiscível, sendo por si não racionais e desmedidos, de participarem de certo modo da razão ao se adequarem ao seu domínio88.

O desejo (orexis) na concepção aristotélica cobre um amplo arco e surge em diferentes níveis, indo da epithymia não racional à prohairesis e à boulesis racionais.89 Enquanto princípio motor único da psyche, o desejo goza de um certo primado face ao intelecto prático, já que o intelecto não pode mover sem o desejo.90 Ontologicamente, o nível do desejo é anterior ao do nous, o que implica em que o intelecto deve apoiar-se no desejo para realizar sua atividade própria. Por outro lado, se o desejo guia o intelecto prático, este por seu turno fornece-lhe uma regra que permite superar a conflitividade potencial existente entre os vários tipos de desejo: o bem prático, objeto do desejo e causa final do agir ético, é da ordem daquilo que pode ser diferente do que é, o que significa que pode ser um bem verdadeiro (to agathon) ou somente um bem aparente (to

phainomenon agathon) – abrindo-se desse modo a possibilidade para o desejo ser reto

ou não, donde a necessidade do intelecto para retificá-lo ou torná-lo justo.91 Ademais, dada a ambivalência característica dos desejos, que permeiam a totalidade do composto humano, podendo ser alógicos ou lógicos, é preciso lembrar que o desejo alógico pode mover contra o raciocínio e prevalecer sobre a deliberação (boulesis), ou então a deliberação pode esclarecer e refrear o desejo alógico, orientando-o para o fim verdadeiro conforme suas diretrizes racionais.

Cabe observar que o desejo, encerrado no presente mas aberto ao futuro sob influência da razão, é fundamentalmente temporal92, podendo ser desejo da imediatidade ou do prazer iminente – como seria o caso da epithymia entregue a si mesma - ou então ordenar-se a uma satisfação planejada por motivos refletidos – caso em que prevalece o comando de boulesis e prohairesis e a respectiva instrução racional. Aristóteles afirma que só em seres que possuem a percepção do tempo ocorre a presença de tendências desiderativas contrárias em um mesmo indivíduo, “pois neles a razão leva em consideração o futuro, onde se encontra o bem a que aspiram, mas o desejo [alógico] percebe apenas o prazer iminente.”93 A oposição entre desejo e razão instala a

88 Cf. Ética a Nicômaco, I 13, 1102 b 23-31.

89 A esse respeito, cf. FRÈRE,J. Les Grecs et le Désir de l’Être. Des Préplatoniciens à Aristote. Paris: Les

Belles Lettres, 1981, p. 321-365.

90 Cf. De Anima 433 a, 22-23.

91 Cf. De Anima 433 a, 26-30. Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 361-362. 92 Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 362. Cf. também De Anima 433 b, 5-10. 93

fragmentação no ser humano; a sua unificação representa a forma ideal da auto- realização.

Percebe-se como o desejo, sendo uma potência (dynamis) da alma, desempenha na concepção aristotélica uma função eticamente essencial. Jean Frère chega mesmo a afirmar que a inteligência prática é o mais alto grau do desejo94, na medida em que, ao

aspirar a uma meta, ela deseja ordenar meios em vista de um fim, determinando assim a praxis. Contudo, parece necessário enfatizar a distinção entre inteligência prática e

desejo, mesmo reconhecendo o entrelaçamento profundo entre ambos, pois afinal a sabedoria prática é uma virtude intelectual, que – repita-se – fornece a regra indispensável ao desejo, ao passo que o resultado exemplar obtido mediante essa submissão do desejo à razão, estampada na mediania (mesotes), encarna-se nas diversas virtudes éticas.

Na verdade, toda a reflexão ética grega encaminha-se no sentido de se constituir como uma ciência da medida que tem como referência analógica a medicina. Aristóteles encontrava na arte médica o modelo para desenvolver o método adequado ao objeto da ética. A analogia terapêutica faz da sabedoria prática uma genuína forma de terapia, construída em torno da noção de medida (metron) e orientada para a cura dos excessos do desejo.95 Nesse sentido, sendo o desejo uma das forças fundamentais da psyche, podemos afirmar que a phronesis é constitutivamente uma forma de psyches therapeia.

Além da referência recíproca entre inteligência prática e desejo, há também uma interação mútua entre desejo e imaginação (phantasia), assinalada pelo parentesco profundo entre a espontaneidade de ambos96, e é assim que desejo, imaginação e inteligência prática encontram-se entrelaçados indissoluvelmente.97 Se, como assinalado anteriormente, o desejo é o princípio motor único da psyche, deve-se observar que sem imaginação não há desejo98, pois é a phantasia que representa o bem para o qual o desejo tende, constituindo por isso o aspecto cognitivo presente no próprio desejo. A imaginação, por seu turno, pode ser perceptiva (aisthetike) ou deliberativa (logistike), a primeira modalidade sendo encontrada em outros animais, e a segunda sendo

94 Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 357.

95 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 45-46. Ver também as obras de Pedro Laín-Entralgo e Martha

Nussbaum que mencionamos em nossa introdução.

96 Cf. De Anima 427 b,14 – 429 a, 9. Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 353. 97 Cf. De Anima 433 a, 13-21. Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 361.

98 Cf. De Anima 433 b, 27-29. Cf. sobre esse tema ENGBERG-PEDERSEN, Aristotle’s Theory of Moral

prerrogativa humana, segundo Aristóteles99. A distinção faz eco àquela entre desejos alógicos e desejos lógicos, e põe em evidência a comunicação das faculdades não racionais com o nous.

Assim, no ato da deliberação confluem e encadeiam-se desejo, imaginação e inteligência, que participam portanto da obra de phronesis. Ao implantar a sabedoria prática tanto na inteligência (nous) quanto no desejo (orexis)100, Aristóteles a estabelece como a mediadora privilegiada da auto-realização humana, que fornece o melhor sentido para o grego “eudaimonia”. A própria definição aristotélica do ser humano pelo princípio da decisão racional (prohairesis), na medida em que esta é simultaneamente intelecto desejante (orektikos nous) e desejo refletido (orexis dianoetike), permite entrever um aspecto da unidade antropológica fundamental a partir da qual a sabedoria prática realiza sua atividade.