• Nenhum resultado encontrado

1. Sabedoria Prática: linhas fundamentais da concepção de phronesis

1.4 Phronesis e Empeiria

Tendo sido apresentada até aqui em sua face interna ou subjetiva, por assim dizer, é necessário agora voltarmo-nos para a outra face da sabedoria prática, que diz respeito às circunstâncias e condições objetivas de seu exercício. As situações humanas, que compete à sabedoria prática apreciar e julgar, caracterizam-se por uma indeterminação essencial que pode ser resumida numa palavra: contingência101. Aristóteles apresenta o domínio em que se exerce a sabedoria prática como o daquilo que pode ser diferente do que é, ou seja, aquilo que não é necessário e que não pode, por isso, tornar-se objeto de ciência (episteme). O contingente está submetido à temporalidade, e assim pode-se compreender que a concepção da sabedoria prática é solidária de uma concepção do tempo ou, como diz Pierre Aubenque, de uma ontologia da contingência.102

Disso resulta que uma condição fundamental para a possibilidade concreta da sabedoria prática é a pressuposição de algum tipo de inteligibilidade do contingente. De fato, se o contingente não possui a inteligibilidade mais “forte” que caracteriza o necessário, objeto da theoria e de sua episteme, nem por isso ele é ininteligível,

99 Cf. De Anima 433 b, 29-30 e 434 a, 5-10.

100 A razão é a causa formal, o desejo a causa eficiente e o bem a causa final do agir ético. Cf. VAZ,

Escritos de Filosofia II, p. 120-123.

101 Para um exame mais preciso das noções diferenciadas de contingência e indeterminação em

Aristóteles, ver ZINGANO, M. “Particularismo e Universalismo na Ética Aristotélica”, in Analytica, vol. 1, nº 3, 1996, p. 75-100.

102

podendo portanto ser objeto do conhecimento próprio à doxa e à phronesis. É esta inteligibilidade mais “fraca” (daquilo que se verifica não sempre, tou aei, mas muitas vezes, tou pollakis) que atravessa o campo ético, constituindo a racionalidade da praxis e assinalando a presença do logos regulador e ordenador no domínio contingente das coisas humanas.

O que “enfraquece” a inteligibilidade das coisas humanas não é uma ausência de lei, que significaria simplesmente anulação de qualquer inteligibilidade, mas a distância insuprimível entre a lei em sua generalidade e a realização da mesma na complexidade infinita de relações particulares. Dito de outra forma: a determinação do particular pela lei geral se dá sempre pela interveniência de múltiplos fatores variáveis que conformam a diversidade das circunstâncias. Contudo, no fundo de toda a variabilidade das situações e circunstâncias ainda persiste a determinação pelo bem como fim, entendido como telos imanente. A relativização deste pela contingência não implica na sua pulverização, como acontece em um relativismo que simplesmente nega a objetividade do finalismo do bem, a qual é consubstancial à abordagem naturalista e metafísica em Aristóteles. A “boa ação” (eupraxia) constitui a felicidade (eudaimonia), que é o fim (telos) absoluto do ser humano, ou, em outros termos, o seu bem supremo. Desse modo, o bem, que assume infinitas faces de acordo com as circunstâncias, continua sendo, na teoria aristotélica da praxis, o pólo objetivo que sustenta a inteligibilidade das coisas humanas, iluminando todo o campo da decisão e suportando a racionalidade da

praxis.103

A sabedoria prática refere-se a essa inteligibilidade do contingente pela mediação decisiva da experiência (empeiria). Na verdade, a articulação à empeiria é absolutamente crucial para se compreender a operação da phronesis. Entendida como a memória atual de muitos casos particulares semelhantes, é a experiência que permite à sabedoria prática avaliar a situação particular em vista da decisão. Por sua vez, o que torna semelhantes os casos particulares é a forma de universalidade implícita, imanente ao dinamismo do bem, que é captada na e pela experiência, e formulada no âmbito da razão pela sabedoria prática.

103

Aristóteles alinha-se à tradição ontológica antiga que afirma a identidade entre o ser e o bem (ens et bonum convertuntur, segundo a fórmula escolástica medieval). No interior dessa tradição, o dever-ser, relativizado pelas circunstâncias, inscreve-se no horizonte maior do ser e estampa, ao mesmo tempo, a não coincidência do imperfeito com o bem e sua tendência – implantada na forma como sua causa final – à atualização plena no ser. Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 135-137.

A correspondência entre experiência e memória põe a claro a necessária vinculação entre empeiria e o tempo. Não é outra a razão de Aristóteles insistir em que não se pode ser sábio quando se é jovem, pois a experiência, componente fundamental da sabedoria prática, desenrola-se no tempo, sendo-lhe correlativa. No entanto, deve-se observar que a temporalidade própria à empeiria é eminentemente qualitativa, uma vez que supõe o reconhecimento e a distinção de diferenças e semelhanças nas configurações que compõem as circunstâncias vividas, registradas na memória e comparativamente organizadas na construção da própria experiência. Em outros termos, não aristotélicos: a experiência não se adquire por mero acúmulo de eventos experimentados na seqüência cronológica de um tempo físico quantitativo, mas pela organização desses eventos em unidades significativas do tempo vivido, nas quais as relações ou o entrelaçamento entre os diversos elementos que compõem uma dada configuração empírica, única e ao mesmo tempo comparável por semelhança a outras, desempenham um papel essencial. Além disso, como sustenta o dinamarquês Troels Engberg-Pedersen, as virtudes éticas, adquiridas por habituação, incluem experiência, e o próprio processo de habituação já é um modo de se adquirir empeiria (ao mesmo tempo em que o desejo está sendo conformado à medida dos valores próprios do ethos).104

O tempo próprio à experiência e à ação que nela se apoia é o kairos dos antigos, precisamente o tempo entendido em sua dimensão qualitativa, o “bem no tempo” (en

chrono).105 É ele que participa da deliberação presente comandada pela sabedoria prática, sob a forma da ocasião apropriada ou momento oportuno para a realização de um ato com vistas a determinado fim, constituindo-se pois em um ingrediente fundamental das circunstâncias contingentes a serem consideradas pelo phronimos na determinação de sua ação.106 Em um outro sentido, mais amplo, kairos indica não apenas uma circunstância temporal estrita, mas “a circunstância em todo o seu

104 Cf. ENGBERG-PEDERSEN, Aristotle’s Theory of Moral Insight, p. 218. A propósito da analogia

entre o hábito e a experiência, ver PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 311.

105 Cf. Ética a Nicômaco 1096 a 26, e o comentário em PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles,

p. 319.

106 Após avaliar a natureza de um dado kairós, o sábio deve decidir “se é recomendável proceder

imediatamente à sua fruição ou antes se é desejável buscar ulteriormente outras ocasiões (ou melhor: uma ocasião única) mais proveitosas ainda, situadas em um futuro direta ou indiretamente determinável.” E. MOUTSOPOULOS, “La fonction du kairos selon Aristote”, in Revue Philosophique, 1985, n. 2, p. 224- 225. Segundo Moutsopoulos, para Aristóteles a temporalidade seria “reestruturável segundo um critério determinável e determinado, a saber o kairos, zona simultaneamente modal e nodal, que colore, axiologicamente, por sua própria nuance, a realidade objetiva, como também a realidade dos vividos”, exibindo assim a “aplicabilidade funcional (...) do intencional ao objetivo, nos limites do campo de atividade da consciência”. Op. cit., p. 226. Tal aplicabilidade será fundante do “espaço hermenêutico” antigo. Ver adiante, capítulo segundo.

complexo de variáveis temporais, locais, relacionais e finais”107, assinalando em uma situação concreta “a totalidade, a plenitude implícita a cada momento de uma ação”108, o que torna explícita a significação axiológica da temporalidade.

A correspondência entre a ação humana e o tempo propício vem relativizar o bem humano, fazendo com que ele só possa ser concretamente determinado no contexto complexo de uma situação particular. Dessa correspondência nasce para a sabedoria prática a sua tarefa específica, que consiste no difícil problema de adaptação recíproca entre os meios disponíveis no momento presente e os fins prescritos pelo eidos humano e apresentados nas virtudes éticas109.

A contingência temporal implica, assim, o sacrifício inevitável de uma parte do bem integral em favor de outra, introduzindo um mal menor, como agudamente observa Pierre Aubenque110. A indeterminação do mundo, sendo por um lado, a “forma propriamente aristotélica do mal”111, abre por outro lado o espaço especificamente humano da deliberação e da ação. Se a praxis é necessariamente relativizada pelo bem humano, e se este por seu turno se relativiza pelas circunstâncias, então a virtude da sabedoria prática só pode ser pensada como uma imersão num mundo afetado por uma espécie de inacabamento ou de indefinição, que representa um convite à ação humana no sentido de determiná-lo e conduzi-lo à meta da perfeição segundo o orthos logos.

Vê-se assim que a sabedoria prática observa tanto a indefinição ou desmedida das paixões e desejos quanto a indeterminação do mundo para realizar sua obra própria. Em face da contingência que afeta a esfera das “coisas humanas” incluindo os elementos constitutivos da situação, a phronesis ordena-se pela sophia, contempladora da ordem racional reinante na parte celeste do cosmos, para então implementar no tempo o ideal moral, que consiste numa espécie de imitação concretizada daquela ordem cósmica onde impera a razão112. A indeterminação das circunstâncias, que favorece a

107 PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 321. 108

Ibid., p. 322.

109 “A ação será virtuosa quando ela ocorrer no momento oportuno (kairos), ou seja, não podemos afirmar

para muitos tipos de ação que elas são em sentido absoluto (aplos) virtuosas ou não, sem analisá-las em sua facticidade constitutiva.” PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 320.

110

Cf. AUBENQUE, A Prudência em Aristóteles, p. 159.

111 AUBENQUE, A Prudência em Aristóteles, p. 144. Cf. Metafísica, Θ, 9, 1051 a 17-21. Cabe notar,

contudo, que o mal definido negativamente como privação de determinação é, por outro lado, carência que aspira à determinação pela forma, o que significa aspiração ao ser pleno, e portanto ao bem. A prioridade ontológica da forma sobre a matéria exclui por princípio qualquer modalidade de dualismo metafísico que pretendesse ver na matéria um princípio positivo do mal.

112 Aristóteles dá à idéia de contemplação (theoria) sua forma clássica, mas deixa sua doutrina inacabada

ou mesmo indefinida, o que abre espaço para a controvérsia das interpretações. Se a contemplação é inequivocamente apresentada como o modo de vida mais elevado (Cf. Ética a Nicômaco, X), seu objeto

determinação pelo acaso (tyche), é também o fundamento da ocasião propícia (kairos) que se abre à deliberação humana para a determinação pela razão113.

Em resumo: a sabedoria prática, sendo uma virtude intelectual, pressupõe contudo tanto o desejo e a imaginação quanto a experiência, que são não-racionais, em sentido técnico aristotélico, apesar de não serem irracionais (o que tornaria o desejo impermeável à razão prática, a imaginação um estorvo a mais para a repressão dos desejos, e a experiência desprovida de uma forma de conhecimento racionalmente formulável). A realização do fim absoluto do ser humano – a eudaimonia – formalmente determinado pelo eidos efetiva-se pela interpenetração das faculdades anímicas que misturam profundamente suas raízes na psyche. Do jogo entre a determinação eidética e a contingência da situação, mediado pela ação conjunta de razão, desejo, imaginação e experiência, resulta a diversidade de formas humanas de auto-realização, que têm em comum a razoabilidade que pode lhes conferir a presença da sabedoria prática. E, finalmente, toda a compreensão aristotélica do agir humano inscreve-se no marco do objetivismo antigo, que se caracteriza pela lei da mútua reflexão entre kosmos e psyche, a qual rege por extensão a operação da phronesis.

pode ser o deus da Metafísica, ou o próprio intelecto humano entendido com “deus interior” (cf. Ética a Eudemo, VIII, 3, 1249 b16), ou ainda o kosmos em sua ordem divina (Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 143-144). A opção interpretativa que considera o kosmos como objeto de contemplação tem como conseqüência alinhar o pensamento aristotélico com as correntes dominantes na Antigüidade sobre esse ponto: a cosmologia tem uma dimensão ética, e, reciprocamente, a tarefa de conformar as situações humanas segundo o modelo cósmico, que estampa visivelmente a realidade do bem, confere à ética uma dimensão cosmológica. Rémi Brague diverge de Aubenque quanto a esse ponto. De fato, na concepção aristotélica de phronesis não seria apropriado falarmos de uma imitação do cosmos no sentido restrito que Brague dá a essa expressão: diante da infinita diversidade das situações contingentes que circunscrevem o espaço da vida moral, a constância das revoluções celestes não poderia fornecer regras satisfatórias para as decisões particulares no âmbito das coisas humanas. Porém, parece-nos exagerado dizer que as escolhas da sabedoria prática “não repousam em nada sobre a estrutura do universo físico” (BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 177 e nota 146). Pois a articulação entre antropologia, ontologia e ética em Aristóteles parece-nos evidente, e a consideração dos fins humanos, referidos à essência, na determinação da ação, inscreve-se num cenário maior de afirmação da ordem objetiva que sustenta a concepção orgânica de natureza e de kosmos própria do espírito grego, ao qual evidentemente Aristóteles não faz exceção (lembremos, de passagem, que a antropologia do De anima é um capítulo integrante da física do Estagirita, sendo pressuposta em toda sua reflexão ética). É por não perceber ou não concordar que a “natureza humana”, elucidada pela “ontologia do humano” ou antropologia filosófica, é verdadeiramente natureza, embora com sua conformação única, que Brague não afirma que “realizar concretamente a perfeição da humanidade do homem por uma praxis que torna possível o desdobramento dessa essência” ( La Sagesse du Monde, p. 136) significa no fundo uma imitação do cosmos entendido como ordem. Isso o levaria a ampliar a sua noção de “sabedoria do mundo” na direção da “consciência cósmica” de Pierre Hadot.

113 Aubenque observa como há aqui uma reabilitação antropológica do tempo, em face da sua

desvalorização física como “degradação da eternidade”: a estrutura contingente do kairos torna-o um “auxiliar benevolente” da ação humana. Cf. A Prudência em Aristóteles, p. 170. Cf. Ética a Nicômaco, I, 7,1098b 24. No mesmo sentido, ver PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 327.