• Nenhum resultado encontrado

SÓ AS MÃES SÃO FELIZES?

Só as mães são felizes porque elas não podem mudar a vida...

Cazuza1

Vivemos hoje tempos de incertezas, de total insegurança e fluidez que trazem a sensação de inconstância que, em contra-ponto aos tempos vividos “pelas mães”, parece refletir o distanciamento de um passado tão próximo, mas tão distante, do qual só resta uma vaga miragem que espelha a segurança perdida e uma dolorosa angústia:

a que se relaciona com a instabilidade da identidade da própria pessoa e a ausência de pontos de referências duradouros, fidedignos e sólidos que contribuiriam para tornar a identidade mais estável e segura (BAUMAN, 1998 [original 1997], p. 155).

As mães “não podem mudar a vida”, como diz o verso da música de Cazuza. O que elas fazem é acompanhar o mundo no fluxo da história da humanidade que caminha para um mundo melhor, no qual progresso significa melhoria da vida. É que elas têm uma verdade a seguir, perseguir ou negar – um deus, o destino, o governo, a razão, a identidade, o Estado, a nação... - que lhes dá a certeza de que a vida permanece e de que ela, mãe, se mantém mãe. Essa é sua fonte de felicidade. Vivem suas identidades como mães, ou pais, ou políticos, ou estudantes, ou filhos, ou padres, ou... E sua segurança está no ou. As identidades estão mais claramente postas, as referências são duradouras e a vida não pode ser mudada, ela segue o seu fluxo, que é mutante e veloz, mas dá a certeza de que a identidade se mantém e vai sendo modificada em sua permanência, em sua constância. O rio, por mais que

1Cazuza, cantor e compositor brasileiro. Um verdadeiro poeta popular da pós-modernidade: cantou as

angústias, as imprudências, as inseguranças de se viver neste mundo contemporâneo. Morreu em 1990, vítima da AIDS.

seja veloz, segue sempre entre suas duas margens. A velocidade com que as coisas mudam convive com a permanência com que elas se mantêm.

Escolhi essa alegoria caricaturada para pensar a contemporaneidade e as crises do contemporâneo. Entretanto não estarei apresentando uma tomada de posição frente às chamadas teorias do contemporâneo2 ou à chamada pós- modernidade. Ao contrário, procurarei explicitar questões que possam fomentar reflexões acerca do contemporâneo e da pós-modernidade3. Portanto, partirei da reconhecida crise pela qual nossa sociedade passa hoje, em diferentes níveis e aspectos, e de muitos questionamentos, dúvidas e incertezas que com ela emergem.

É importante aqui fazer uma pausa para discutir uma questão de terminologia:

modernidade e modernismo. Existem grandes divergências quanto ao que deve

ser chamado de “modernidade”. Habermas, ao comentar a afirmação de Hegel de que a subjetividade seria o princípio dos tempos modernos, afirma:

Partindo desse princípio [Hegel] explica simultaneamente a superioridade do mundo moderno e sua vulnerabilidade à crise, a qual se revela no facto de o mundo ser um mundo do progresso e de ser ao mesmo tempo o mundo do espírito alienado de si próprio. É por isso que a primeira tentativa de conceptualizar a modernidade coincide com uma crítica à modernidade (HABERMAS, 1990 [original 1985], p. 27).

Em meio a estas dificuldades, apontamos, basicamente: a modernidade como um estágio da história da Civilização Ocidental e a modernidade como conceito estético. Estaremos denominando, esta última, de modernismo, que teve seu apogeu no início do século XX. Modernidade será tomada aqui como

um período histórico que começou na Europa Ocidental no século XVII com uma série de transformações sócio-estruturais e intelectuais profundas e atingiu sua maturidade primeiramente como projeto cultural, com o avanço do iluminismo e depois como forma de vida socialmente consumada, com o desenvolvimento da sociedade industrial (capitalista e, mais tarde, também comunista). (BAUMAN, 1999 [original 1991], p. 299-300).

O modernismo é visto, por Bauman, como uma condição preliminar da pós- moderna. Ele afirma que “com o modernismo, a modernidade voltou o olhar sobre si mesma e tentou atingir a visão clara e a autopercepção que por fim revelariam sua

2Para uma introdução às teorias do contemporâneo, ver CONNOR (1996 [original 1989]).

3Não estou me eximindo de uma tomada de posição, ao contrário, a própria construção do texto, a

escolha dos autores e a dinâmica que o texto imprime ao trabalho devem dar conta de expor posições e disposições.

impossibilidade, assim pavimentando o caminho para a reavaliação pós-moderna” (p. 300).

Igualmente, a discussão em torno da pós-modernidade e pós-modernismo também apresenta dificuldades quanto às terminologias a elas empregadas. Primeiramente, estaremos seguindo a mesma distinção terminológica usada para modernidade e modernismo. Assim, pós-modernismo refere-se às transformações de ordem estética ocorridas nas sociedades contemporâneas, a partir, aproximadamente, da década de 50, do século XX, com o fim do modernismo (SANTOS, 2000 [original 1980]). O termo pós-modernidade refere-se às transformações ocorridas nas sociedades, nas ciências, nos meios acadêmicos, que têm suas origens mais imediatas no fim do século XIX. Muitas vezes preferiremos usar os termos “condição pós-moderna” ou “discursos pós-modernos” como referência à pós-modernidade.

Terminadas a pausa e a digressão voltemos, pois, às discussões anteriormente iniciadas acerca do contemporâneo: o que vivemos, contemporaneamente, são momentos de intenso despertar de novas idéias, cores e nuanças que surgem, de maneira urgente, imediata, desordenada, da séria crise no

paradigma da modernidade. Essa crise é inegável. Contudo há diferentes

posicionamentos quanto às suas conseqüências: para alguns pensadores, o projeto da modernidade ainda está incompleto, ou seja, as crises atuais não estão provocando uma ruptura com a modernidade, mas antes, o projeto da modernidade deve ser cultivado para que possa se implementar completamente. O filósofo alemão Jürgen Habermas talvez seja o maior defensor de tal posição. Para ele, a pós- modernidade estaria colocando obstáculos ao andamento da realização do projeto da modernidade. Para Habermas, as questões postas pela pós-modernidade - tais como a rejeição das grandes narrativas/, a recusa das bases epistemológicas do conhecimento centradas na razão moderna1, os questionamentos em torno da noção de verdade e de certeza - são um retrocesso nos avanços alcançados pela modernidade, sobretudo no que se refere à democracia, representando, portanto, uma ameaça ao projeto da modernidade (HABERMAS, 1990 [original 1985]).

/Margem Crises das Metanarrativas.

Segundo Giroux, Habermas “injeta no debate modernista versus pós-modernista a primazia do político e o papel que a racionalidade pode desempenhar a serviço da liberdade humana e dos imperativos da ideologia e das lutas democráticas” (GIROUX, 1999 [original 1992], p. 64).

Numa outra perspectiva, que poderíamos chamar de evolucionista, a pós- modernidade seria vista como uma continuidade da modernidade, como sua etapa “mais evoluída”. Para os autores intitulados pós-modernos, a pós-modernidade, no entanto, representaria uma ruptura, total ou parcial, com a modernidade. Na verdade, a noção de pós-modernidade está condicionada à visão que se tem de modernidade. Além disso, os discursos pós-modernos não são homogêneos, ao contrário, há uma grande diversidade de tendências teóricas que se posicionam, ou são posicionadas, como pós-modernos.

Muitos pensadores contemporâneos se dizem pós-modernos; outros negam, rejeitam ou se opõem aos discursos pós-modernos, são antimodernos – isto é, romperam com a modernidade, mas podem não aceitar os discursos pós-modernos - ou, ao contrário, permanecem decididamente modernos e

continuam acreditando nas promessas da ciência, ou nas da emancipação, ou nas duas. Contudo, sua crença na modernização hoje não soa muito bem nem na arte, nem na economia, nem na política, nem na ciência, nem na técnica (LATOUR, 1994 [original 1991], p. 15).

Os discursos pós-modernos seguem sugerindo polêmicas acerca da sociedade contemporânea e seus valores; levantando suspeitas com relação às noções de razão, verdade, conhecimento e ciência1; incendiando debates relativos à subjetividade/; minando certezas acerca de absolutismos de toda espécie e fundamentos sólidos de qualquer ação ou pensamento//.

Afora as discussões atribuladas acerca de modernidade e pós-modernidade, o século XX foi marcado por uma crise de credibilidade4: as instituições e organizações deixam de ser críveis, a ciência e a tecnologia perdem a credibilidade

1

Ponte Pontes e Margens: conhecimentos e etnomatemáticas.

/Margem Crise do Sujeito Moderno.