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Essa ordenação espacial assume contornos políticos e ideológicos na medida em que acaba reproduzindo as distribuições distorcidas de poder.

Espacialidades em Laranjal do Jari.

ambivalências 1 Essa ordenação espacial assume contornos políticos e ideológicos na medida em que acaba reproduzindo as distribuições distorcidas de poder.

Portanto a representação espacial é, necessariamente, política e ideologicamente comprometida, mesmo que se pretendesse, ao se dar um tratamento matemático à questão, livrá-la destes condicionantes, tornado-a neutra e abstrata. As representações espaciais são etnocêntricas e, devido à expansão da cultura européia ocidental nas explorações e colonizações, acabaram se tornando eurocêntricas. Elas têm a Europa como centro do planeta: tanto em termos de proporções quanto em termos de posicionamento privilegiado nas representações. Assim, tal qual na Idade Média, quando Jerusalém, por outras motivações e finalidades, assumia o centro do mundo, a cartografia moderna, por conta da dominação econômica, política e cultural que a Europa exercia sobre outros povos, acaba sendo colocada no centro das representações espaciais.

Diferentemente daquilo que pretendia a “ciência do rigor”, em seu extremo – eliminar as “interferências humanas”, reduzir as possibilidades da crítica e da criatividade, eliminar a interpretação – toda cartografia atende a uma escala de

valores que acaba por definir o “real” a ser representado. Assim,

Um mapa é, antes de tudo, um tema, e seu desenvolvimento dependerá da forma pela qual o cartógrafo define – independentemente, neste contexto, dos motivos que o levam a realizar suas próprias escolhas – o que é significante e a maneira pela qual sua escala de valores se transformará numa mensagem mais ou menos explícita a seus leitores (SANTOS, 2002, p. 55-6).

Ou, em outros termos,

O mapa pode também ser compreendido como um sistema de representações. Ele, por si só, já é uma leitura, uma síntese, uma introdução à interpretação, realizadas por quem o elabora. [...] o mapa, assim, é compreendido como um texto-imagem-representação, referente à espacialidade das coisas (HISSA, 2002, p. 30).

Sendo assim, os mapas acabam reproduzindo muito do ambiente cultural no qual se desenvolve, inclusive o etnocentrismo instalado naquela cultura. O trecho abaixo refere-se ao mapa de Toscanelli21 (Figura 07) e dá uma clara noção disto:

A fantasia, no entanto, amplia-se quase que na ordem direta da distância (o que, de certa maneira, significa cartografar o desconhecido). Um olhar um pouco mais minucioso sobre o mapa mostra-nos uma Europa e uma costa norte-africana marcadas pela presença de castelos. Com o distanciamento, as imagens de animais ferozes vão tomando o lugar principal até que sereias, grous e outros seres imaginários passam a marcar a identidade do oceano Índico, do sul da África ou mesmo do nordeste da Ásia (SANTOS, 2002, p. 55).

Assim, os “seres imaginários” vão ajudando a compor a imagem que se faz do outro, do diferente, do desconhecido, delimitando o espaço no qual se pode circular. O outro é identificado, portanto, com o “monstro” a se temer, a se evitar, a se eliminar: as diferenças são, neste contexto, necessariamente elimináveis. Sua eliminação pode se dar tanto pela “domesticação”, pela “catequização” e pela “civilização”, quanto pela própria eliminação física.

Por outro lado, a presença de tais “monstros” ajuda a afastar o interesse no “novo”, no “desconhecido”. Ou seja, “É possível, por exemplo, que os mercadores medievais tenham intencionalmente, disseminado mapas que descreviam a existência de serpentes nas margens de suas rotas para desencorajar outras explorações e estabelecer monopólios” (COHEN, 2000 [original 1996], p. 42). Tais suspeitas foram baseadas, segundo Cohen, em pesquisas realizadas por Keeryung Hong, da Universidade de Harvard, acerca de cartografias medievais. Entretanto o que interessa destacar aqui é a não neutralidade das representações espaciais, mesmo as consideradas “científicas”: estão situadas nas redes de significados culturais.

21Mapa-múndi genovês, produzido em 1457 e conservado na Biblioteca Central de Florença, utiliza-se

Dessa maneira, como a modernidade é marcada por uma experiência de espaço ordenado com vistas a um mundo ordenado, homogêneo e totalmente racional, as “cartografias modernas” estão impregnadas deste ambiente cultural. Entretanto, diversas mudanças no contexto social, cultural e histórico da Europa Ocidental Moderna/ provocaram uma transformação também na forma de conceber e lidar com o espaço; a ordenação espacial pensada e implementada pelo Iluminismo não se consolidou: não foi possível eliminar as ambivalências, nem promover a homogeneização das culturas e das economias. Neste contexto, o outro, o estranho não permanece confinado ao seu “lugar”, ele ameaça a ordem do mundo: “O estranho solapa o ordenamento espacial do mundo – a batalhada coordenação entre proximidade moral e topográfica, a união dos amigos e a distância dos inimigos” (BAUMAN, 1999 [original 1991], p. 69). A total ordenação espacial do mundo parece impossível.

Além disso, com a expansão do capitalismo e da cultura européia ocidental, tanto a economia quanto as culturas deixam de ser locais, passando a ter efeitos “globais”. A segurança do “local” é ameaçada e a ordenação espacial do mundo comprometida. Portanto “A certeza do espaço e do lugar absolutos foi substituída pelas inseguranças de um espaço relativo em mudança, em que os eventos de um lugar podiam ter efeitos imediatos e ramificadores sobre os outros” (HARVEY, 1992 [original 1989], p. 238).

A grande crítica que vem sendo feita contemporaneamente à cartografia física, em suas pretensões iluministas totalizantes, é que o mapa, com seu rigor matemático, “substitui o espaço descontinuamente remendado dos caminhos concretos pelo espaço homogêneo e contínuo da geometria” (HARVEY, 1992 [original 1989], p. 230). Ou seja, “a geometria mostra como seria o mundo se fosse geométrico. Mas o mundo não é geométrico. Ele não pode ser comprimido dentro das grades de inspiração geométrica” (BAUMAN, 1999 [original 1991], p. 23).

As crises de conhecimento e de ciência1, de subjetividade//, de

fundamentações e metarrelatos/// estão situadas no espaço-tempo e as

/Margem Modernidade e Discursos Pós-Modernos.

1Ponte Pontes e Margens: conhecimentos e etnomatemáticas. / /Margem Crises do Sujeito Moderno.

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maneiras de experimentar esse espaço, assim como esse tempo, vêm modificando- se diante de tais crises. Hoje, a pós-modernidade/ é marcada por uma modificação nesta relação espaço-temporal:

À medida que o espaço parece encolher numa “aldeia global” de telecomunicações e numa “espaçonave terra” de interdependências ecológicas e econômicas – para usar apenas duas imagens conhecidas e corriqueiras –, e que os horizontes temporais se reduzem a um ponto em que só existe o presente (o mundo do esquizofrênico), temos de aprender a lidar com um avassalador sentido de compressão de nossos mundos espacial e temporal (HARVEY, 1992 [original 1989], p 219).

A velocidade com que as informações circulam, as notícias correm, as distâncias são abrandadas é quase desastrosa... Os meios de transporte e de comunicação são cada vez mais aprimorados e revelam um mundo de novidades diante dos olhos perplexos de homens e mulheres em todo o mundo... A banalização da notícia e das informações leva a uma escassez de reflexão e de produção de idéias22. De mais a mais, a distribuição espacial do acesso às tecnologias de informação e de transporte sobre o planeta é cada vez mais desigual, reproduzindo desigualdades sociais, políticas e econômicas. Sobretudo, para além da distribuição do acesso, a própria distribuição espacial da produção de saberes, de notícias e de informações reflete, mais fortemente ainda, tais desigualdades.

Espaços e representações espaciais não são, pois, descomprometidos, ao contrário, são produções que se desenvolvem sob determinadas condições sócio- culturais e político-ideológicas. São, pois, produções perspectivais e como tais são múltiplas, não objetivas e não neutras. Portanto são interpretativas. Estamos, pois, assumindo o conhecimento como perspectival e interpretativo. Diferentemente da concepção hegemônica na modernidade – que procura o rigor extremo e a neutralidade como garantias de obtenção de “conhecimentos verdadeiros” ou ‘verdades absolutas” – o conhecimento interpretativo// assume, conforme

/Margem Modernidade e Discursos Pós-Modernos.

22É preciso deixar claro que tanto a circulação de informações quanto à ampliação do acesso a elas

são fundamentais para quebrar monopólios e aprofundar a participação política: democratização das informações e do acesso a elas. Entretanto, o que estou destacando aqui é o caráter da “banalização da notícia”: a velocidade excessiva com a qual as informações circulam não informa, ao contrário, desinforma, na medida em que acaba gerando desinteresse e conformismo.

Nietzsche, que sentimentos, sensações e instintos entram na composição das interpretações.

Nietzsche, ao conceber o mundo como vontade de potência, trabalha com uma noção de espaço bem distinta daquela hegemônica na modernidade e situa uma relação espaço-tempo que revela uma visão de mundo que ele, em sua genialidade poética23, expressa assim:

E sabeis sequer o que é para mim “o mundo”? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de forças, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo, uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimento, cercada de “nada” como de seu limite, nada de evanescente, de desperdiçado, nada de infinitamente extenso, mas como força determinada posta em um determinado espaço, e não em um espaço que em alguma parte estivesse “vazio”, mas antes como força por toda a parte, como jogo de forças e ondas de força ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes, com descomunais anos de retorno, com uma vazante e enchente de suas configurações, partindo das mais simples às mais múltiplas, do mais quieto, mais rígido, mais frio ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo, e depois outra vez voltando da plenitude ao simples, do jogo de contradições de volta ao prazer da consonância, afirmando ainda a si próprio, nessa igualdade de suas trilhas e anos, abençoando a si próprio como Aquilo que eternamente tem que retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço [...] quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz para todos nós, vós, os mais escondidos, os mais fortes, os mais intrépidos, os mais da meia-noite? –

Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós

próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso! (NIETZSCHE, 1999 [original 1884/1888], p. 449-450).

23O editor Gerard Lebrun de Nietzsche: Obras Incompletas, da Coleção Os Pensadores, chama a

atenção do leitor para coletânea que fez referente às obras A Vontade de Potência (que Nietzsche considerava fundamental e estava preparando quando foi atingido pela doença) e Textos Póstumos: abordará dois temas: o niilismo e o eterno retorno. Lebrun adverte: “o que vai ser lido agora, que se leia como devem ser lidas todas as palavras que foram dilaceradas pelo tempo ou pelo destino [...]. Como? Sobretudo não tentando extrair delas uma doutrina. Zaratustra não gostava dos que

acreditavam nele. Como? Detendo-se em certas palavras, analisando certas frases. E nada mais”