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1.3. O Método Científico

1.3.1. A revolução científica moderna

1.3.1.1. Modernos problemas e modernas soluções

Justificação. Mas justificar o quê? Para Johannes Hessen, a preocupação científica moderna com a verdade, ou melhor, com o conhecer a verdade gira em torno de cinco perguntas, ou problemas, centrais, que se debatem invariavelmente dentre as possíveis relações entre sujeito e o objeto: (1) O sujeito é capaz de apreender o objeto? (2) A fonte do conhecimento humano é a razão ou a experiência? (3) Relativamente à essência do conhecimento, é o sujeito que determina o objeto ou o oposto? (4) Existe um conhecimento intuitivo, além do conhecimento racional? E (5) Qual é o critério que me diz em cada caso se um conhecimento é verdadeiro ou

não?124. De acordo com Johannes Hessen, toda a tradição filosófica ocidental a partir do século XVII, ou seja, moderna, vai invariavelmente esbarrar e confrontar-se com um desses problemas. O antagonismo que a modernidade contrasta quando de sua comparação com a antiga tradição cristã está no fato de a fé ou o conhecimento da verdade a partir da figura de Deus em qualquer um de seus desdobramentos se esvai, não figurando mais como método científico qualquer manifestação de verdade divina. Tanto o é que qualquer um dos principais problemas citados acima, que dizem respeito à dicotomia sujeito/objeto e suas possíveis relações já não se escora na vontade de Deus.

Portanto, é em oposição ao saber aristotélico medieval vigente que nasce a ciência moderna no início do século XVII, numa Europa em plena transformação pela atividade dos engenheiros e burgueses comerciantes. (...) O burguês vive num mundo onde as direções (norte, sul...) se definem abstratamente e todos os lugares (objetivamente falando) se equivalem. (...) Neste sentido, podemos dizer que nossa cultura no famoso princípio (posteriormente desenvolvido) segundo o qual a sociedade moderna deve ser natural: precisa eliminar o artificial ( ordens arbitrárias, privilégios, costumes sociais) a fim de agir em nome de regras universais.125

O indivíduo emancipado, neste contexto, é aquele que identifica os possíveis caminhos da verdade sem a ajuda de Deus ou de qualquer um de seus representantes. Assim:

124

Teoria do Conhecimento. pp. 23-28.

125

Enquanto nos vilarejos medievais tudo estava ligado às pessoas, a seus projetos, à sua vida afetiva e prática, o negociante moderno começa a falar de acontecimentos sem história, existindo nele mesmo um mundo desprovido de encantos, por conseguinte, desencantado ou separado do sagrado. Nasce um conceito novo: o da objetividade pura, do que permanece quando despojamos o mundo de tudo o que é pessoal, particular e subjetivo, de seu vínculo com este ou aquele indivíduo, este ou aquele grupo, esta ou aquela história: o que existe fora de nosso pensamento, independente dele.126

É também nesta linha que Wolfgang Stegmüller situa sua abordagem acerca da filosofia moderna. No que concerne ao indivíduo moderno, este se situa em uma posição de maior esclarecimento com relação ao funcionamento do mundo e da forma pela qual o homem interage com ele. Afirma-se aqui também uma relação de afastamento relativa à concepção científica medieval, o que, no posicionamento de Wolfgang Stegmüller afasta a modernidade da concepção metafísica de mundo.

O homem moderno é, em geral, mais cético que o homem da Antiguidade e da Idade Média. Falta-lhe aquela atitude ingênua de fé que constitui o fundamento de todas as religiões e, conseqüentemente, também na metafísica. Pois, quase toda metafísica ou possui uma base religiosa direta, ou, então, procede historicamente de uma fé, que, com o encrudescimento da atitude de imanência da existência, que olha os assuntos transcendentes com extrema desconfiança, estejam diminuindo o interesse por discussões metafísicas e a confiança no êxito de uma solução das questões metafísicas.127

126

Ibidem. p. 65.

127

Na visão de Wolfgang Stegmüller, existem dois motivos científicos para tanto: (1) A matematização da ciência revestida do rótulo de rigor científico, ou seja, toda a relação do homem com o mundo passa a ser quantificável, palpável e materializável, o que dá à lógica um papel preponderante na modernidade, e (2) a historicização da ciência e, como conseqüência, da filosofia, o que implica numa visão contextual e datada do conhecimento e da forma como buscá-lo resultando em uma relativização tanto dele, como da verdade.128

Isso resulta uma determinante forma de visão moderna de ciência. A separação entre Teoria e Prática (Theorie/Praxis). Quando se escora a ciência na comprovação de premissas e teses - que resultam na sua validade, ou Geltung - a mera formulação de uma intuição passa a depender de sua aplicabilidade no mundo concreto, o que resulta na visão de Stegmüller, em um aumento do caráter não intuitivo e abstrato da visão física do êüóìïò.129 A conceito moderno de teoria latu sensu tem por tarefa instrumentalizar o homem e orientá-lo para as ações práticas. Uma antecede a outra, sem, contudo, se confundirem.

128

Ibidem. p. 05.

129

A modernidade se caracteriza (como mostra Descartes) pelo projeto de converter em ação todo esse progresso científico. (...) Ver e fazer de outra forma, eis a ruptura galileana. (…) Newton costumava dizer que “a combinação realizada, portanto, uma ciência ao mesmo tempo Matemática , Experimental, Mecanicista e Social.130

Neste sentido, de nada valeria a comprovação da existência de Deus se não se conseguisse, enquanto indivíduo comunicar-se com Ele, ao mesmo tempo, não se agiria conforme Sua vontade se não se tivesse a real comprovação de que aquela era, de fato, sua vontade. O método científico é enraizado por um ceticismo que, ao dividir a orientação do indivíduo entre conhecimento e ação, claramente rompe com o pensamento medieval, no qual a ação do homem estava ligada à sua fé, fonte medieval de sabedoria.

Assim, ao lado da busca de uma fundamentação filosófica das diversas ciências, surge também a exigência de uma fundamentação filosófica das outras áreas da cultura – religião, moral, arte, sociedade – que, naturalmente, nunca deve ser considerada como substituta dessas áreas da vida espiritual. E mesmo onde não se crê na possibilidade de uma fundamentação filosófica da vida sócio-espiritual, como na filosofia existencialista, aspira-se, contudo, mostrar ao homem, no sentido de uma “orientação para o mundo”, um caminho através do mundo do espírito questionado e ameaçado de ruína; aspira retornar-lhe palpável o absoluto que ele já não pode mais encontrar nas configurações culturais concretamente perceptíveis, ou conduzi-lo a esse absoluto.131

130

Hilton Japiassu. Idem. p. 73.

131

E assim, da forma como o moderno lida com o conhecimento, que é retomada e revisitada a questão entre sujeito e objeto. É daqui que toda a concepção de öáéíüìåíïí herdada da filosofia antiga, mesmo que filtrada por aquilo que fora identificada como fenômeno na idade média, está completamente independente da concepção divina ou encantada que se ouvia dizer com a escolástica, conforme nos mostra a interpretação de Martin Heidegger sobre ela132. A subjetividade, no sentido de um individualismo secular, se constitui então como o caminho e única fonte possível de conhecimento. É do homem que se irrompe o mundo e não seu inverso. Mesmo que esta afirmação já seja bastante corriqueira nos livros sobre a modernidade, como bem afirma Renaut, é desse novo modelo de conhecimento que será lida e relida tanto a ciência como seu método, restando, até mesmo à metafísica, um relativismo histórico, que ganhará sua mais célebre formatação, primeiro com Kant e logo após com Hegel.

Aquilo que na Antiguidade e mais ainda na época medieval era o “lugar de Deus” torna-se na época moderna o “lugar do homem”, que reivindica para si (definindo esta dupla reivindicação os valores da modernidade) os dois atributos tradicionais de Deus, a omnisciência (donde uma apresentação da cultura moderna como cientista: nada, em direito, escapa à ciência) e a omnipotência (donde a insistência da dimensão técnica de nossa cultura).

132

Embora esse individualismo nos apareça, de fato, sob diversas formas por toda a tradição moderna, de Descartes à Martin Heidegger o que se mostra como centro de transformação não se mostra propriamente como uma ruptura, mas sim como uma suplantação paulatina de uma concepção conceitual dada a partir da necessidade emergente de nova justificação e que, ao longo de toda uma tradição científica - ou seja, a partir de membros de uma subdivisão da comunidade científica, nesse caso, os filósofos ou teóricos humanistas - fora reconhecidamente acatados, transformando todo um hábito teórico em outro, com novas formas de abordagem, novas premissas e novos métodos. Dessa forma, podemos reconhecer a modernidade como uma forma de revolução, mas de revolução científica, nos moldes e quadrantes esclarecidos por Thomas S. Kuhn, dos quais nos valemos anteriormente. E desta substituição paradigmática que a concepção de praxis toma espaço na modernidade e criando a necessidade de um método não só de conhecimento da verdade, do fenômeno, ou do objeto, mas também à métodos pragmáticos de aplicação das novas premissas teóricas. A dicotomia não antagônica, mas complementar de Theorie/Praxis se desdobra em outra também continua e complementar dicotomia, qual seja Método/Técnica, da qual nos atentaremos a seguir.

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